Literatura, insularidade e emigração em Cabo Verde1

Geni Mendes de Britoi

 

RESUMO

Em “Literatura, Insularidade e emigração em Cabo Verde” veremos que a produção científica sobre a temática da insularidade é objeto de escrita muito recorrente na literatura. Suas representações são múltiplas em narrativas ficcionais: espaço de isolamento e reconstrução; um lugar acolhedor e materno de sobrevivência ou um lugar de perda, inóspito e prisional, tornando a insularidade um tema nodular na literatura. Propomo-nos neste artigo, analisar a questão da insularidade no arquipélago de Cabo Verde, assim como encontrar os elementos ligados ao fator de distanciamento físico entre as ilhas e as implicações que resulta na intensa emigração do cabo verdiano para a “terra longe” uma das expressivas características desse povo insular. Em geral, as ilhas ocupam um lugar de destaque na imaginação geográfica, são locais com uma poética especial, como dizia Gaston Bachelard (1957), e isso explica que circulem na sociedade tantos pressupostos e ideias feitas a respeito da insularidade. No entanto, o espaço da ilha não está presente apenas em histórias de aventura.  Qualquer que seja a abordagem sobre Cabo Verde e a insularidade, ela sempre segue essa interação primordial entre o ilhéu e seu espaço, que participa da formação de sua identidade, seja positiva ou negativa, simbolicamente ou comportamentalmente.

Palavras-chave: Cabo Verde. Ilha.  Insularidade. Emigração. Literatura.

“Pensar a condição de ilhéu é também refletir sobre partidas e chegadas.”

(SALÚSTIO, 2017, p. 21)

Desde os tempos antigos, os espaços ilhéus sempre despertaram curiosidade nas pessoas, que através de contadores de histórias, de relatos de viajantes aventureiros, imaginavam os mais fantásticos e misteriosos acontecimentos. Dentre essas ilhas, destacamos aqui, Cabo Verde, como sendo um objeto frequente de estudo, por possuir particularidades próprias que o diferencia dos demais países de língua portuguesa. Uma questão recorrente e conhecida é a insularidade como fator identitário do povo cabo verdiano, que se manifesta tanto na música, como na poesia, ora na pintura ora na literatura.

A questão da insularidade revela-se como uma das vertentes temáticas mais presentes no percurso cultural identitário do povo e da literatura cabo-verdiano. Para Elsa Rodrigues dos Santos,

A insularidade nasce do relacionamento do sujeito com o espaço das ilhas, ou seja, do sentimento de solidão, de nostalgia que o cabo-verdiano experimenta face ao isolamento e os limites da fronteira líquida que o separa do mundo, criando no ilhéu um estado de angústia e ansiedade. (SANTOS, 1989, p. 59).

Considerada além de um conceito físico (DELGADO, 2009, p. 168), a insularidade constitui-se como núcleo fundador ideológico de uma estética poética (LABAN, 1986, p. 96).

Conforme destaca Manuel Veiga, durante o longo caminhar de sua história, os cabo-verdianos tiveram por companheira inseparável uma insularidade “madrasta” que se manifesta através de fatores geográficos, climáticos, antropológicos, sociais, econômicos e políticos (VEIGA, 1998, p. 9). Os sentimentos do sujeito insular são reflexos do seu consciente, de sua vivência íntima e coletiva dentro de um espaço e de um tempo. Nesse contexto, o fator geográfico e climático do arquipélago e o confronto do sujeito com o mar marcam a “sentimentalidade e a maneira de estar” do cabo-verdiano (SANTOS, 1989, p. 61).

Esse sentimento de solidão e de nostalgia que o cabo-verdiano experimenta face ao isolamento imposto pelo mar, que separa as ilhas do arquipélago do resto do mundo, provoca no ilhéu um estado de angústia e de ansiedade que o leva a sonhar com outros horizontes além-mar. Para o povo dessas ilhas, o mar está em tudo. É o que sugere o próprio Jorge Barbosa, em seu “Poema do Mar”, publicado em 1941, no livro de poesia intitulado Ambiente:

O Mar! Dentro de nós todos,
No canto da Morna,
No corpo das raparigas morenas,
Nas coxas ágeis das pretas,
No desejo da viagem que fica em sonhos de
Muita gente!
Este convite de toda a hora
Que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
E ter que ficar!
(BARBOSA, 1941, p. 30) 

O mar mencionado na poesia de Jorge Barbosa é um símbolo que evoca uma das características mais marcantes da sociedade e da cultura cabo-verdiana: a insularidade, que, numa primeira instância, conforme Maria Teresa Salgado (2009, p. 164), “pode ser apreendida a partir do isolamento geográfico e existencial experimentado pelo ilhéu, da solidão daí decorrente, que encontra ecos e desdobramentos na humana condição em qualquer parte do globo”.

Pertencente ao oceano Atlântico e próximo da Costa Africana, Cabo Verde é um dos estados africanos de língua portuguesa que “compartilha com outras nações do continente uma característica insular” (PITA, 2017, p. 71), que marca a realidade cabo-verdiana na sua globalidade. Nesse sentido, Fernando Cristóvão pontua que:

A escala do continente a que pertence Cabo Verde, tal como outros países insulares, apresenta significativa individualidade geográfica, onde cada ilha é um pequeno microcosmo. Desabitadas aquando do seu achamento, as ilhas foram modeladas por cinco séculos de colonização portuguesa que gerou paisagens humanas originais, onde se reflete o efeito de uma luta constante e tenaz com a natureza saeliana. (CRISTÓVÃO, 2005, p. 373).

Devido ao seu posicionamento estratégico, em relação a outras nações do continente africano, “Cabo Verde apresenta características específicas e privilegiadas, na rota da circulação marítima, no âmbito do projeto de expansão europeia e na escala de navegação, entre o continente africano, asiático, europeu e americano” (SEMEDO, 2016, p. 3).

 Vale ressaltar que Cabo Verde despertou particular interesse da Coroa portuguesa devido à sua posição geoestratégica próxima à Costa Africana (as ilhas de Cabo Verde situam-se na margem do sul do Oceano Atlântico, a cerca de 600 km da costa da África Ocidental), durante muito tempo, as ilhas serviram como entreposto de escravizados retirados da África e enviados, posteriormente, para a América do Sul, constituindo, muito cedo, uma população mestiça. Formou-se, logo, uma comunidade composta por várias tribos, com grande variedade étnica, surgindo o que Manuel Ferreira (1972) chamou de “terra trazida”.

Conceituada como fator geográfico, a noção de insularidade está diretamente relacionada com a definição de ilha e, consequentemente, desta com o ilhéu. Definida como “trecho de terra rodeada de água por todos os lados” (FERREIRA, 2010, p. 408) “terra menos extensa que os continentes de forma sustentável nas águas de um oceano, de um mar, de um lago ou de um fluxo” (ROBERT, 1977, p. 541) ou, ainda, “aquilo que está isolado” (DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2011); nesta acepção, o isolamento é uma das expressões possíveis da insularidade que aporta consequências nas questões econômicas, sociais e culturais.

O tema da insularidade é também recorrente nos estudos relacionados à história e à economia, à literatura e à cultura, sendo aplicado em diferentes contextos e territórios, incluindo aqueles que são geralmente classificados na categoria de espaços continentais. O francês Jean-Luc Bonniol salienta o fato de que “l’insularité est toujours relative” (1998, p. 87)[2]. Isso não significa ser um conceito vago, mal definido, mesmo se “les îles offrent une palette inépuisable de cas particuliers”[3] (1998, p. 73)

Conforme Henriques (2009, p. 13-14), as certezas categóricas e definitivas sobre as ilhas e a condição insular estão associadas a conceitos negativos, como isolamento e solidão, separação e afastamento, fechamento e aprisionamento. Entretanto, essa visão nem sempre corresponde à realidade, uma vez que o sentimento insular varia de pessoa para pessoa, segundo realidades e contextos geográficos. Nesse caso, é importante conhecer os valores e projetos individuais e coletivos de um território insular, o modo de vida do povo e suas condições sociais.

O termo “insularidade” no arquipélago de Cabo Verde, em um primeiro momento, está relacionado à geografia física das ilhas, assim como às limitações que as atingem, uma vez que “o desenvolvimento destas depende de fatores geográficos, sejam humanos ou físicos; daí justifica-se uma abordagem dos aspectos geográficos de Cabo Verde para dar a conhecer, em parte, a realidade cabo-verdiana” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, p. 12).

 Um dos elementos ilustrativos da insularidade cabo-verdiana que apresenta grande relevância para a população local é o isolamento geográfico das ilhas, a distância entre elas. E, embora possuindo atributos especiais que as distinguem dos ambientes não insulares em certas características, “a questão insular propicia reflexos na fauna, na flora e nas atividades humanas, o que resulta em ecossistemas frágeis e vulnerabilidade política e social dos habitantes das ilhas” (DOS SANTOS, 2011, p. 58).

Subjetivamente e no contexto cabo-verdiano, a insularidade é uma percepção do espaço telúrico, da “terra-mãe” e da consciência de uma identidade, “resultado da luta e dos desafios nascidos do chão das ilhas” (VEIGA, 1998, p. 9). Muitas vezes, essa insularidade está imbricada no sentimento desejoso de evasão, no conhecido dilema do querer “bipartido”, do “ter que partir querendo ficar” e “ter de ficar querendo partir”, cujos traços ganham forma e conteúdo no confronto e reencontro “da água com a terra, do homem com o mar” (VEIGA, 1998, p. 9).

Conforme Elsa dos Santos (1989), a insularidade no contexto cabo-verdiano tem sua origem, desde o processo de povoamento, quando o negro africano “lançado no espaço insular e obrigado a adoptar a cultura e a língua do colonizador sofre [...] um desenraizamento” (SANTOS, 1989, p. 62). Ao mesmo tempo em que essa autora questiona a sentimentalidade insular cabo-verdiana, ela a justifica, nestes termos:

[...] a crioulização que conferiu ao cabo-verdiano a identidade, não o tornará, ao mesmo tempo, num exilado, numa ilha dentro de outra ilha? Exilado em relação à língua e à cultura que lhe é imposta em que sua própria língua de berço é proibida na escola oficial, exilado, portanto, pelo não reconhecimento da parte da autoridade portuguesa da sua cultura? (SANTOS, 1989, p. 62-63).

É importante ressaltar que o uso da língua cabo-verdiana – o crioulo - foi severamente proibido pelas estruturas coloniais, nos diferentes meios de socialização, começando pelas escolas, nas quais os professores eram obrigados a dar aulas em língua portuguesa e, consequentemente, os alunos eram proibidos de falar em sua língua nativa, dando espaço para o que se chamou de “contenção” que, de forma direta, contribuiu para a “agudização da insularidade”, sentida e manifestada nas líricas e na prosa de ficção cabo-verdiana.

Assim, desde a época colonial, no espaço geográfico das ilhas, a insularidade surge como sentimento existencial, de solidão, de nostalgia e de injustiça, que o ilhéu experimenta face à prisão. O cabo-verdiano não se conforma com os problemas sociais que deve suportar e dos quais é vítima. A imagem do isolamento e da tragédia de uma pequena ilha sempre em confronto com o mar, “agiganta no ilhéu os sonhos, agudiza a saudade do desconhecido e do longe, sobretudo, na alma do poeta” (SANTOS, 1989, p. 61) ou dos vários poetas e das suas “relações de amor com o cenário que eles percorrem” (SALÚSTIO, 1998, p. 35).

A escritora Dina Salústio afirma que “a literatura cabo-verdiana revela o cabo-verdiano a ele próprio, que só se compreende na insularidade” (SALÚSTIO, 1998, p. 42). Esta dá origem a outras representações temáticas como “o medo, a insegurança, a fragilidade, a saudade, sentimentos que acompanham o ilhéu, muitas vezes, limitado pelos mares, pelos medos e pelos mitos” (SALÚSTIO, 1998, p. 42).

A questão da insularidade e da relação desta com a identidade do cabo-verdiano vai mais além dos quilômetros e do isolamento físico que separa as ilhas das fronteiras terrestres com outras nações. O sentimento de insularidade cabo-verdiana como isolamento é o resultado das adversidades que as ilhas protagonizaram desde o período colonial (quando foram duramente exploradas). Mesmo após sua independência em 1975, essas adversidades não cessaram por não haver uma preparação que proporcionasse uma autonomia confortável e promissora para os habitantes do arquipélago.

 Para essa situação, Dina Salústio aponta a “viagem” como solução, e questiona: “que outro destino para as ilhas, para o ilhéu?" (SALÚSTIO, 1998, p. 40). A partir desse contexto, surgem as razões que motivam o cabo-verdiano a deixar sua terra, sua ilha, em busca de melhor qualidade de vida, em outros territórios, impulsionando a emigração, tão presente e intensa na vida do cabo-verdiano.

Para além do contexto histórico, social, cultural e político que a insularidade gera para os habitantes da ilha, ela, além de enriquecer a literatura cabo-verdiana, contribui para a afirmação da identidade do ilhéu, seja regional ou nacional. Para os cabo-verdianos que emigraram para diferentes zonas continentais, sua relação com a terra natal, com seu ambiente insular, nem sempre se perde ou se deteriora; pelo contrário, é reforçada pelos laços culturais que os unem.

A insularidade, de modo geral, provoca emoções contraditórias em seus diferentes atores, uma vez que está associada à ideia de vulnerabilidade, fraqueza, dependência. Porém, apesar de engendrar sentimentos de isolamento e fragilidade, não deixa de potencializar igualmente situações e oportunidades que, devidamente aproveitadas, podem servir de eixos para promover o desenvolvimento econômico, social e cultural dessas nações insulares.

Justificada pela grande concentração de recursos naturais numa reduzida superfície, a insularidade apresenta elevados níveis de vantagens comparativas, como o mar e suas temperaturas elevadas, durante todo o ano, os recursos geológicos, as águas termais tão solicitadas para a prática do turismo, os recursos biológicos, com sua vegetação exuberante e singular (palmeiras, coqueiros, mangais), e uma fauna diversa, com suas aves marinhas, além dos recursos culturais (música, dança, gastronomia, cultos religiosos, costumes, e folclore, etc.) que, em muitos casos, podem ser vestígios de civilizações passadas. Acrescenta-se a esses elementos a imaginação e a utopia que as ilhas proporcionam aos seus visitantes, “dando-lhes a sensação de segurança e orientação, a ilusão de estar-se perante um mundo completo e, ao mesmo tempo, complexo” (DOS SANTOS, 2011, p. 279-280).

A contrapartida do que se chama de insularidade como isolamento, em Cabo Verde, é o fenômeno da emigração, que representa um dos traços marcantes da identidade cabo-verdiana, como também um dos traços fundamentais na evolução econômica do arquipélago. As dificuldades enfrentadas pelos cabo-verdianos, desde as condições climáticas das ilhas agrícolas, com seus sucessivos períodos de secas e fome, à pouca oferta de trabalho, dão causa à emigração, “fenômeno que marcou e marca de forma estrutural a história da formação social cabo-verdiana”. (FURTADO, 2013).

Na pesquisa intitulada “Mulheres imigrantes em Portugal: vivência e percursos migratórios das mães solteiras cabo-verdianas” (2011), a pesquisadora Carla Suzana Silva Lopes, nos aponta que:

A história da emigração cabo-verdiana é relativamente longa. Ela faz parte da própria história do povo cabo-verdiano. Góis menciona (2006, p. 23), que “pode afirmar-se que o cabo-verdiano já nasceu (e) migrante”, ou, dito de outro modo, que a emigração é um dos fenómenos mais antigos e estáveis da sociedade cabo-verdiana, antecedendo em muitas décadas a independência do país, que ocorreu em 1975. Neste sentido, Cabo Verde é um exemplo, talvez único, de um Estado que nasce já “transnacionalizado”. Como salienta Lobo (2007, p. 171) na vida de qualquer cabo-verdiano é inevitável a ideia de emigração. (LOPES, 2011, p. 30).

A emigração cabo-verdiana remonta o século XVII e início do século XVIII, quando o mar era o meio principal e privilegiado para os que deixavam as ilhas. As primeiras emigrações tinham como destino os Estados Unidos, onde os ilhéus eram recrutados para trabalharem nos baleeiros. Com as prolongadas crises de seca e fome que assolaram o arquipélago por longos anos, ocasionando centenas de mortes, os cabo-verdianos se viram forçados a emigrar para trabalharem nas “roças de São Tomé e Príncipe”.

Em 1924, foi criada, nos Estados Unidos, a “Lei das Quotas”, que limitava a entrada de estrangeiros em território norte-americano. Com essa medida, houve uma emigração em massa para países da América Latina, como Brasil e Argentina, e para diferentes países da África Ocidental, como Senegal e Angola, respectivamente, formando outra “diáspora” cabo-verdiana (SPÍNOLA, 2004; QUERIDO, 2011). Além de um deslocamento físico e territorial, também houve um movimento de deslocamento identitário, cultural, político, social e ideológico. De acordo com Antônio Carreira (1983, p. 99), o maior êxodo da história do arquipélago em todos os tempos se deu nos anos de 1964, 1968 e 1969, com uma saída significativa de cabo-verdianos das ilhas.

 Devido às crises cíclicas de fome ocorrida nos anos 1930, 40 e 50 do século XX, assim como a falta de trabalho nas ilhas de Cabo Verde, houve uma emigração forçada de milhares de cabo-verdianos, sozinhos ou em família, para pesados trabalhos braçais nas roças de café e cacau nas ilhas de São Tomé e Príncipe (QUERIDO, 2011, p. 82-83).

Após a Segunda Guerra Mundial, fugindo da fome e da miséria que assolavam as ilhas, uma nova onda de emigrantes procurou os países europeus, como França, Holanda, Luxemburgo, Bélgica e Portugal, com destaque o país lusitano (52,9%) que formou, após os Estados Unidos, a segunda maior comunidade de cabo-verdianos da diáspora. Conforme João Lopes Filho, a Europa não constituía um destino tradicional dos emigrantes cabo-verdianos, mas devido às devastações da II Guerra, que deixaram alguns países europeus desprovidos de mão-de-obra para sua reconstrução, as correntes migratórias foram alteradas com o objetivo de suprir as necessidades desses países (LOPES FILHO, 2010, p. 135).

Desse fluxo migratório, assim como desse momento de trânsito e de entrelaçamento de valores, surgem novos sujeitos, reformados ou remoldados, que reproduzem seus valores crioulos em terras estrangeiras, em um novo território, significando:

Um Cabo Verde fora do lugar, permitindo que ‘identidades cabo-verdianas’ sejam reconstruídas em um novo espaço que não é o seu território de origem, que pertence a outros Estados, “mas efetivamente apropriados e reapropriados quotidianamente pelos imigrantes cabo-verdianos e sua descendência, como um “chão” cabo-verdiano”. (SAINT-MAURICE, 1997).

No contexto das sociedades africanas, o conceito de território não se limita apenas aos espaços físicos e geográficos, mas é, sobretudo, o portador de uma história mítica que liga povos, tradições culturais e ancestralidade. Cabo Verde é o exemplo concreto dessa identidade que ultrapassa as fronteiras, os territórios, uma vez que o cabo-verdiano é obrigado a reconstruir suas ilhas e a si mesmo nos novos territórios de acolhimento. É nesse contexto que Cláudio Alves Furtado (2013, p. 4) afirma que “o território comporta uma dimensão cultural e religiosa indiscutível que a colonização, pela sua expropriação, laicizou e, por via disso, buscou formas de legitimar a ocupação e a reclamação do direito de propriedade”. Assim, no contexto do continente africano pré-colonial:

O território define-se por isso, pela relação que sustenta com a história, e que se exprime não só na presença dos espíritos dos antepassados, mas pela acumulação de sinais e de marcadores, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, os outros provindos do imaginário do indivíduo e da sua sociedade. Um homem define a sua identidade por meio de alguns suportes: primeiro pelo facto de pertencer a uma família, a qual está integrada num clã, numa comunidade, numa nação. Esta aparente dependência do indivíduo e da família em relação às unidades superiores, não deve, contudo, enganar-nos: é a soma das pequenas identidades que autoriza a construção global da identidade, a qual está historicamente ligada a um território. (CASTRO, 2004, p. 5).

Do ponto de vista histórico, a ocupação das ilhas de Cabo Verde constitui, a um só tempo, primeiro, um processo de construção de um território (considerando esse território como processo de historicização do espaço físico e simbólico); segundo, um processo de desterritorialização, ou seja, o abandono forçado do território natal, implicando aqui tanto os escravizados africanos como os europeus, alguns considerados degredados, que foram expropriados dos seus territórios de origem e, por último, um processo de reterritorialização que, para Deleuze (DELEUZE; GUATTARI, 1992), significa a construção de um novo território (enquanto espaço geográfico) e a reconstrução de si próprio em um novo território (FURTADO, 2013, p. 5). Furtado acrescenta que:

Esse triplo processo de desterritorialização, territorialização e reterritorialização é um fator de construção de uma identidade de fronteira na justa medida em que impulsiona a necessidade de invenção de uma tradição identitária que deve estar permanentemente ritualizada e reatualizada em espaços físicos, identitários e étnicos extremamente fluidos. (FURTADO, 2013, p. 5-6).

Esses processos são concomitantes e indissociáveis, de modo que a emigração geográfica interfere na identidade humana. Tanto o nomadismo como a prática do deslocamento geográfico geram discussões em torno da identidade e das mudanças que sofrem os indivíduos quando migram, sobretudo, em suas posições sociais, chegando mesmo a desenvolver, em muitos casos, crises existenciais.

Por isso, consideramos as palavras de João Lopes, que aborda a emigração cabo-verdiana nestes termos: “a emigração está enraizada na própria origem e na formação da sociedade cabo-verdiana, fazendo mesmo parte do seu imaginário, pois está também presente na tradição oral, na música, na literatura, como característica marcante desse povo”. (LOPES FILHO, 2010, p. 135).

Frente aos fatores que compõem a identidade cultural cabo-verdiana, entende-se que esta foi construída a partir da combinação de elementos socioculturais de características africanas e de traços europeus. Do encontro direto entre essas duas culturas resultou um processo de aculturação mútua: “uma europeização dos africanos, bem como uma africanização dos europeus” (SEIBERTH, 2014, p. 41), dando origem a uma sociedade crioula, com suas manifestações culturais próprias, suas realizações materiais e simbólicas.

As manifestações culturais cabo-verdianas surgiram a partir de um esforço de sobrevivência e convivência entre europeus e africanos que, frente às dificuldades encontradas no arquipélago, “misturaram-se, étnica e culturalmente, originando, assim, um povo com uma personalidade e identidade definida, fruto de um trabalho lento de cinco séculos de aculturação” (RAMOS, 2009, p. 34). Assim como os reflexos do colonialismo português são visíveis nas ilhas cabo-verdianas, desde os séculos XV e XVI, as marcas das culturas africanas e europeias são perfeitamente reconhecíveis nessa sociedade insular crioula.

Referências

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Notas

[1] BRITO, Geni Mendes de, “Literatura, insularidade e emigração em Cabo Verde”- Fernandes, Maria de Fátima; Lima, Norma Sueli Rosa; Gomes, Simone Caputo (Org.) Dossiê: Sentir-se/estar apartado, estabelecer elos: tendências insulares na literatura de Cabo Verde. Revista SOLETRAS n. 42 2021.2.

[2] A insularidade é sempre relativa (tradução nossa).

[3] As ilhas oferecem uma gama inesgotável de casos (tradução nossa).

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[i] Geni Mendes de Brito é Doutora em Letras - Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Professora de Literatura portuguesa, brasileira e cabo-verdiana. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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