Mia Couto: “Mulher de mim” ou da dialética do eu e do inconsciente[1]
Francis Utéza[i]
Como epígrafe de “Mulher de mim”, a mais curta2 das onze estórias publicadas em 1990 na coletânea Cada homem é uma raça, Mia Couto escolhe um provérbio: “O homem é o machado; a mulher é a enxada”. Esse provérbio, que o escritor identifica como “moçambicano”, figura sob o número 250 nos Provérbios macuas coligidos pelo Padre Alexandre Valente de Matos, que comenta:
Machado: o homem enquanto se mete à selva e derruba o arvoredo onde fará o seu campo de cultura; enxada: a mulher enquanto capina e amanha a terra onde semeia e acompanha o crescimento dos produtos alimentares (à imagem do machado que golpeia com golpes cavos, o homem é capaz de suportar com paciência os sofrimentos e a mulher entra em exasperos à menor contrariedade, à imagem da enxada que tilinta ao chocar em pedra (1982, p. 206)
Essa interpretação, marcada de misoginia visceral, pouco ajuda a entender o conto em pauta, o qual, além de se situar num ambiente urbano pouco condizente com a eventual simbólica de ferramentas agrárias, ilustra antes a paciência da mulher frente à exasperação machista do homem, para finalmente resolver na harmonia de uma caminhada conjunta o conflito surgido entre ambos. Vejamos.
Um narrador masculino, que nunca será identificado a não ser através de pronomes pessoais, evoca o encontro com uma desconhecida, também anônima, no decorrer de uma noite de dezembro muito quente – portanto, no hemisfério sul – em que ele não conseguia conciliar o sono. Num cenário esquematizado que o leitor atento poderá reconstruir – uma cidade sem nome,3 um quarto com móveis imprecisos, uma janela, uma porta, uma escada sonora, um espelho – a intrusa teria se manifestado duas vezes:- primeiro, antes que o narrador-protagonista caísse no sono, tendo com ele uma relação marcada pela sexualidade sem, no entanto, chegar efetivamente à união carnal;
- mais tarde, depois que o mesmo protagonista emergisse do primeiro sono, interrogando-se sobre os “seres vindouros” que aspirariam a suplantar os viventes no “lado luminoso da vida”; então, perante a agressividade do homem que a tomava por um daqueles “nascituros”, ela explicava que apenas desejava alcançar a existência através dele; a partir daí, o narrador teria encontrado de novo a tranquilidade e o sono, quando os passos de ambos, em ritmo harmonioso, se afastariam juntos pela noite adentro.
Portanto, estamos em presença de um relato de cunho fantástico – nunca poderemos decidir se aquela mulher é um ser humano de carne e osso ou algum fantasma surgido do delírio onírico do narrador – que, sobretudo pelas referências a elos entre vivos, mortos e “pré-nascidos”, convida o leitor a empreender uma exegese, no intuito de desvendar um eventual sentido oculto.
Sonho de Mulher
In media res, logo no primeiro parágrafo, o narrador anuncia uma noite extraordinária em que o sonho demorava a chegar:
Naquela noite, as horas me percorriam, insones ponteiros. Eu queria só me esquecer-me. Assim deitado, não sofria outra carência que não fosse, talvez, a morte. Não aquela, arrebatante e definitiva. A outra: a morte-estação, inverno subvertido por guerrilheiras florações. (p. 119)
Nesse incipit, o protagonista se apresenta no estado de espera passiva, na semi-inconsciência que antecede o ingresso no sono. Contudo, a desagregação do “eu” racional que o verbo “esquecer” supõe – desagregação psíquica e física,4 aliás duplamente significada através da repetição anormal do pronome pessoal – desemboca numa espera positiva. Na analogia estabelecida entre o sono e a morte, o falecimento eventual, integrado no ciclo das estações – “inverno subvertido por guerrilheiras florações” – torna-se promessa revolucionária5 de renascimento. A racionalidade materialista cede assim o passo à antiga tradição – tanto africana como greco-latina ou oriental – segundo a qual vida e morte constituem dois aspectos de uma realidade única de ordem espiritual.
Na fronteira da existência consciente, o sujeito assimila-se ao cubo de gelo em vias de se derreter dentro de um copo que nem sequer ocupa no espaço um lugar bem definido: "O calor de Dezembro me fazia desaparecer, atento só à extinção do gelo no copo. A pedrinha de gelo me semelhava, ambos nos transitórios, convertendo-nos na prévia matéria de que nos havíamos formado." (p. 119 – o grifo é nosso)
A analogia fica clara: em suspensão no calor da noite como a pedra congelada que flutua no copo, o ser humano à procura do sono está em vias de dissolução no que diz respeito ao estado de concentração que materializava seu corpo no interior do quarto; “transitório”, caminhava para o caos inicial de que o elemento líquido oferece uma representação. Ali situar-se-ia a primeira visita da mulher – visita que analisaremos mais tarde – perdendo o narrador a noção do tempo cronológico entre o final do primeiro encontro, nitidamente evocado por um gesto de despedida “no umbral da porta”, e o regresso dela: "Não sei o quanto demorou. Talvez umas tantas noites. Ou escassos instantes. Nem sei. Porque adormeci, ansioso por me suprimir. Doeu-me acordar; malvorei-me". (p.121)
Essa incapacidade de avaliar a duração cronológica sugere a marginalização da razão, tanto mais que o neologismo “malvorei-me” situa o regresso à vigília num nível que não será o da consciência: o neologismo resultante da prefixação do advérbio “mal” ao verbo “alvorar”, cujo sentido vernacular se encontra também deturpado pelo uso do pronome pessoal reflexivo, sugere o caráter anormal desse doloroso “acordar”. Aliás, a memória assim recuperada, relaciona-se de forma patente com dados que dizem respeito ao sonho: “Então me recordei do antecedente sonho, sabendo da verdade que só ela em delírio se revela.”(p.121)
Isso equivale a equiparar a primeira visita a um sonho que poderia prolongar-se em outro sonho, en abime – “o antecedente sonho” tanto pode significar o sonho que antecedeu o atual estado de vigília como o sonho anterior a esse sonho de agora. E tendo em conta que toda a estória acaba referenciando um último mergulho na inconsciência – “fechei os olhos, em vagaroso apagar de mim” (p.124) – relacionado diretamente com a mesma noite do início, uma conclusão lógica se impõe: tratar-se-ia, ao longo do conto, de uma sucessão de sonhos interpolados. Em particular, o suposto “acordar” entre as duas visitas não será senão uma sequência do sonho em que, por assim dizer, a consciência se manifesta numa qualidade de racionalização intermediária em que a pessoa que dorme acredita estar desperta.6
A tentação da amante-mãe
A primeira irrupção da desconhecida é assinalada por uma construção “incorreta”: “Nesse enquanto, ela entrou”.
A deturpação linguística traduz a subversão da normalidade. Abriu-se uma fenda no espaço-tempo do protagonista, por onde infiltrou-se a entidade feminina. Embora o narrador não o explicite de forma alguma, um passo acaba de ser transposto em direção à libertação do inconsciente individual.
Forma imprecisa – “vagueou por ali” – concretizada por um olhar dotado de um poder de “liquidificação” – “mulher de olhos lisos que humedeciam o quarto” -, aquela mulher se estabiliza primeiro através do contato dos dedos com os móveis, isto é, com objetos ao mesmo tempo fixos e dotados de mobilidade, com os quais tem afinidades confirmadas pela própria atitude – “em distraído afecto”.
Pretendendo-se ancorado na realidade material do quarto, o narrado emite uma hipótese: “Quem sabe ela sonambulasse, aquela realidade lhe fosse muito fictícia?” (p.119). A razão do protagonista contador instaura, dessa maneira, a fronteira do sonho entre a visitante e aquele que ocupa o espaço do quarto. Mas a hipótese assim formulada subentende a questão de saber qual dos dois estará sonhando o outro. Aliás, as reações do personagem masculino não deixam de acrescentar dúvidas a respeito do estado de consciência em que se encontra: "Eu queria avisar-lhe que estava enganada, que aquele não era seu competente endereço. Mas o silêncio me alertou que ali estava a decorrer um destino, o cruzar das fatais providências." (p. 119)
Com efeito, é o irracional que impõe a sua perspectiva através do canal extra-sensorial desse “silêncio”, sugerindo a instalação de uma engrenagem que escapa ao controle da vontade humana – “destino, cruzar das fatais providências”.
A comunicação facilitada pela aproximação física – “ela se sentou na minha cama” – se estabelece, então, do ponto de vista do homem, sob o império do instinto sexual. Contudo, os gestos eróticos, tais como narrados, demonstram sobremaneira o poder sedutor da mulher. Um corpo que se oferece, um peito ao qual o verbo “espreitar” atribui a capacidade de fascinar a presa – “subornando meus intentos” – constituem uma ameaça contra a qual o protagonista é advertido: "Vozes ocultas me seguravam: não, eu não podia ceder (...). As lendas antigas me avisavam\: virá uma que acenderá a lua. Se resistires merecerás o nome da gente guerreira, o povo de quem descendes. Nem eu bem decifrava a lendável mensagem." (p.120)
Aquelas vozes, que transmitem por canais paranormais as mensagens sibilinas das lendas africanas, identificam os poderes misteriosos da feminilidade, ligando-os à luz lunar. Contraponto esses poderes à força viril dos guerreiros, as lendas vindas do fundo dos tempos estão propondo ao homem uma imagem tradicional com a qual é intimado a se identificar em nome da coesão do grupo social – ou seja, uma máscara, uma persona, de acordo com a terminologia junguiana. Assim, alertado pelos relatos portadores de um saber cujas raízes mergulham no inconsciente coletivo, o que o protagonista tem que enfrentar é uma prova iniciática: “Certo era que ali, naquele quarto, se executava a prova de mim, o quanto valiam os meus mandos.” (p. 120)
A resistência à tentação sexual equivale, portanto, à afirmação da masculinidade frente a seu “oposto”. No entanto, o narrador comprova a incapacidade em que se encontrava para manter-se em estado de vigília consciente: "Porém. Por artes da intrusa, eu desaparecia, intermitente, da existência. Me irrealizava. E quando me apelava rumo à razão, nem sequer eu chegava a meu cérebro, o austero juiz." (p. 120)
Através do neologismo “me irrealizava”, sugere-se a passagem da fronteira consecutiva ao curto-circuito da razão.7 Aquele “austero juiz” que, no mundo material realista decidiria em função de critérios dualistas, fica impedido de pronunciar qualquer sentença, pelo encantamento de uma melodia que a memória relaciona com as fontes primordiais: "Por causa a voz dessa mulher lembrava o murmurinho das fontes, a sedução do regresso a dantes quando não havia antes. Ela me queria meninar, conduzir-me às primitivas dormências. Avemente, se ninhou em meu peito. Procurava em mim espelho para o luar?" (p. 120 – grifo nosso)
A cantiga atraente dessa sereia suscita lembranças da eternidade, promessa de retorno a origens intemporais – “quando não havia antes” – àquelas fontes de um sono anterior à existência consciente, assinalado pelo neologismo “meninar e o adjetivo “primitivas” qualificando essas “dormências” que, no contexto, perdem a conotação médica habitual para sugerir estados anteriores à encarnação. No entanto, tal regressão comporta vertente perniciosa na medida em que a potência lunar em ação poderia metamorfosear o masculino ao ponto de ele tornar-se um útero – “avemente, se ninhou em meu peito”. Nessas condições, a mãe substitui-se à amante na empresa de aniquilamento da virilidade: “Deixei-me sem estatura. Aqueles círculos negros, seus olhos redondos de não terem fim, me surgiam como dois soluços, fossem partes de mim, saudosos, que me espreitassem.” (p. 120)
Um par de olhos em expansão para o infinito conjuga a circularidade de ambos na sugestão simbólica da reconstituição do Uno, num jogo de espelhos em que o olhar olhando poderia muito bem não ser senão o reflexo do olhar olhado. Mas aqueles “círculos negros” dela, para além da emoção conotada pelo substantivo que os identifica como eventual emanação dele, seriam dotados de um poder dissolvente – em “soluço” ecoa a “solução” que está provocando a desagregação da vontade do outro: “deixei-me, sem estatura”. E esse poder será tanto mais perigoso que se apoia em lembranças de um passado misterioso – “saudosos”. O corte, logo marcado após esse clímax – assinalado tipograficamente num espaço em branco na página -, corresponde à incapacidade de o narrador raciocinar mais. E quando retoma a narração, comprovamos que a regressão já se efetivou:
Ela contou sua história, seus episódios. Variantes de verdade, me davam o gosto do fingimento. Me apetecia o infinito tal igual as crianças que sempre perguntam: e depois? (p. 120-21)
Pela magia do verbo da Grande Mãe, o homem aspira a reencontrar o estado de infância anterior ao reinado da razão, que pretende separar a verdade da mentira – aquele convívio com o “infinito” em que, justamente, tudo são “variantes de verdade”.
Portanto, no decorrer da primeira visita, a mulher terá dominado sempre o jogo. Até a iniciativa da partida lhe pertence, inclusive com a promessa de volta sublinhada num gesto que recoloca no primeiro plano a imagem da amante: “No umbral da porta, soprou um beijo a modos de antiquíssima esposa. Saiu, pernumbrou-se.” (p. 121)
Para além do eco possível do Cântico dos Cânticos, a alusão a uma esposa que remontaria às origens dos tempos confirma que aquela visita tem a ver com o mundo dos arquétipos.
Nascer com o andrógino
No fim do intervalo incomensurável da espera da segunda visita, o narrador, como já vimos, pretende ter acordado, assimilando a recuperação da consciência a um nascimento, isto é, à separação com a mãe: "acordar não é a simples passagem do sono para a vigília. É mais, um lentíssimo envelhecimento, cada despertar somando o cansaço da inteira humanidade. E concluí: a vida, ela toda é um extenso nascimento." (p. 121)
Esse regresso à vigília apoia-se na ambição de analisar as revelações trazidas pela primeira visita – “sabendo da verdade que só ela em delírio se revela” (p.121). Lembrando que a etimologia de “revelar” sugere a ideia de cobrir com um novo véu e que o “delírio” supõe, também pela etimologia, uma excursão para fora dos caminhos trilhados, comprovamos que a verdade de que se trata aqui pouco tem a ver com a racionalidade: "os mortos, os viventes e os seres que ainda esperam por nascer formam uma única tela (...). Nos sonhos, todos nos encontramos num mesmo recinto, ali onde o tempo se despromove à omniausência." (p. 121)
Essa afirmação peremptória, que faz do sonho o lugar de comunhão espiritual onde o espaço-tempo seria abolido, funda-se numa hipótese que se pode supor herdada das tradições africanas. De fato, aqui também transparecem as especulações metafísicas que todas as tradições, tanto no Oriente como no Ocidente, têm forjado em torno do conceito de reencarnação que, na sequência, vem nitidamente explicitado numa retomada da imagem do ninho-útero, já usada na ilustração da sedução inicial: "no visto das coisas, a gente vai transitando do útero para a casa, cada casa não sendo senão outra edição do ventre materno. Como um pássaro que sempre e sempre tecesse o ninho, o seu, para suas futuras nascenças e não das crias." (p.122)
Com base nesses dados irracionais, o narrador elabora uma teoria em que a vida seria objeto de uma competição na qual os seres de carne, a priori harmonizados com os antepassados – “dos mortos ainda vamos recebendo recados, afeiçoamo-nos a suas familiares sombras (121) -, seriam ameaçados pelas almas que cobiçam habitar “o lado luminoso da vida”. Assim, a intrusa se torna uma emanação não do além, mas, por assim dizer, do aquém, que se valeria da atração sexual como engodo para tomar o lugar do protagonista desse lado da existência. Nessas condições, o regresso iminente daquela entidade congemina os perigos, tanto mais que o narrador se sente em estado de inferioridade: “Precisava pensar rápido: ela gozava a vantagem de não precisar de consultar a razão.” (p. 121)
O solilóquio perdura, assim, num concatenamento de hipóteses que apenas demonstram uma coisa: a incapacidade ridícula da razão para encontrar uma saída. As deduções em que se embaralha o protagonista, sem conseguir definir a atitude adequada perante a estranha visitante, ilustram sobretudo a superioridade do irracional. Por exemplo, quando a intuição fornece sugestões à razão – “em qualquer lugar deveriam de existir assassinos dos mortos” (p. 123) – o “austero juiz” apenas sabe colocar novas perguntas, quando se trata é de agir.
E quando reaparece a mulher, frente àquela que conseguiu forçar a passagem pela potência do irracional – “como deusa requerendo a total devoção de um crente” (p. 123) – o homem apenas tem o recurso dos náufragos, ou seja, exatamente a resposta do instinto, sem intervenção do raciocínio: “Me adveio um recurso, tábua que a onda traz. Lhe disse: - Te adivinho ainda pequena, ontem de antes. Recordas-te?” (p. 123)
A inversão linguística – “ontem de antes” versus “antes de ontem” – remete à inversão da corrida linear do tempo. O trocadilho significa a tentativa de empurrar o fantasma para dentro do abismo anterior à criação, uma tentativa que surte algum efeito – “Por momentos, lhe faltou o peito, ela tudo se inspirou”(p.123). A retratação momentânea da “nascitura” é interpretada como vantagem no duelo entre ambos: "O medo dela me dava argúcia, eu me ajudava enquanto a via chegar-se ao espelho. A estranha se contemplou despindo, sorrindo na pétala de cada gesto." (p. 124- 125)
A referência ao espelho contribui para alimentar a ambiguidade: de que lado do espelho se situa a mulher? Estará se dissolvendo numa imagem virtual do lado de lá ou o utilizaria para multiplicar a sedução erótica que funcionou no encontro inicial? Contra os esforços dele para a enviar de volta ao nada, ela persiste em se afirmar no espaço do narrador: “Veio até ao leito, me tocou. Chamou por meu nome, docemente. Passou os dedos por meus lábios”(p.124).
Essa atitude conciliadora, tanto de mãe como de amante, devolve-lhe definitivamente a vantagem que perdera no instante anterior, porém, ela não se aproveita arrastando o adversário para a morte, como anunciara a megera cartesiana. Pelo contrário, embora confirmando pertencer ao aquém da vida – decidindo, portanto, o debate em favor do irracional – ela esclarece o enigma colocado pelas lendas que o protagonista masculino dizia apenas entender à médias. "Explicou suas razões só ela guardava a eterna gestação das fontes. Sem eu ser ela, eu me incompletava, feito só na arrogância das metades. Nela eu encontrava não mulher que fosse minha mas a mulher de mim, essa que, em diante, me acenderia a cada lua." (p. 124)
Definindo-se como única guardiã das fontes da vida, ela assume a simbólica do princípio feminino, que seu comentário associa à potência cíclica do luminário noturno – o que concorda perfeitamente com as tradições religiosas da mais alta antiguidade ocidental (Eliade, 1983 – cap. IV). E vem propor-se como complemento do princípio masculino, numa fórmula que constitui uma referência apenas velada ao mito do andrógino primordial. Superando a dualidade conflituosa – “a arrogância das metades”-, é a unidade essencial que importa restabelecer. Não através de um casal dominado pelo masculino - “mulher que fosse minha” – mas numa realidade diferente, interiorizada – “a mulher de mim” -, que manifestaria a complementaridade ativa das energias e operaria de acordo com os ciclos da natureza – “que me acenderia em cada lua”.
Assim, o narrador de “Mulher de mim” iniciava, nas fronteiras do inconsciente, uma nova viagem: "Fechei os olhos, em vagaroso apagar de mim. E assim deitado, todo eu, escutei meus passos que se afastavam. Não seguiam em solitária marcha mas junto de outros de feminino deslize, fossem horas que, nessa noite, me percorreram como insones ponteiros"(p.124).
Ele acompanhava então, nessa viagem em direção ao Uno, outro personagem de Mia Couto, Fortim, o protagonista de “A Princesa Russa”, cujas pegadas desiguais significavam, não a sua claudicação, mas os passos da princesa “caminhando sempre a seu lado esquerdo”.
A abolição do eu no seu relacionamento com a persona se realizou na identificação com a anima, no meio do caminho, através de uma experiência interior que trazia ao sujeito “adaptação e proteção contra as forças invisíveis que vivem dentro dele” (Jung, 1964, p. 185).
Durante a noite de dezembro do hemisfério sul, nas vésperas do solstício de verão, acendia-se a luz da lua: nascia a mulher dentro do homem.
No quadro esquemático mínimo de uma estória reduzida a dois personagens arquetípicos, “Mulher de mim” transmite uma mensagem universalizante em que o componente africano serve apenas de pretexto. A alusão às lendas que exaltam a imagem machista do guerreiro vencedor das provas iniciáticas para se integrar à sua etnia funde-se na dialética do masculino e do feminino – do yang e do yin, diriam no Oriente os adeptos do pensamento taoísta, do enxofre e do mercúrio, confirmariam os alquimistas do Ocidente – encenada numa estória em que o sonho tem valor de revelação. Esse sonho de sentido único – o relato desenvolve apenas a focalização do narrador homem – faz surgir uma figura compensadora da consciência masculina, Mas, com a emergência daquela figura, muito além de um eventual regresso às fontes da mãe África, o narrador, instalado nas fronteiras do irracional, sugere uma dupla “verdade”: de um lado, a inaptidão da razão para orientar o homem nos caminhos do conhecimento e, de outro, a necessidade de estabelecer o diálogo entre a persona – a máscara cultural do ser humano – e a anima feminina, para elaborar aquela “dualidade construtiva” de que fala Antoine Faivre (1971), no intuito de reconciliar o indivíduo com as próprias raízes. Aliás, as duas caras dessa “verdade” coincidem, na medida em que o diálogo construtivo e o yin e o yang, entre o enxofre e o mercúrio, entre o rei e a rainha, implica totalmente o diálogo da razão com o irracional. No meio do caminho, na terceira margem do rio, o sonho indica a via.
Também, o provérbio macua da epígrafe dizia à sua maneira: “Cada homem é uma mulher”.
NOTAS
1 Originalmente publicado na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004, publicada pela Editora da PUC Minas.
2 Apenas cinco páginas da segunda edição – Lisboa, Caminho, 1982 – que utilizamos nas nossas citações
3 Mia Couto nos disse ter redigido essa estória durante uma estada em Cape Town, quando, instalado num hotel da zona dessa Capital, escutava as mulheres que circulavam pelos corredores e supunha que qualquer uma, de um momento para outro , poderia penetrar no seu quarto.
4 A etimologia desse verbo, ex cadescere, forma incoativa de ex cadere, que deriva de cadere: cair, remete também ao conceito de decomposição física.
5 O léxico “anticolonialista” característico do discurso público assume no contexto uma conotação poética que revaloriza o chavão negativo.
6 Não é aliás a única vez em que Mia Couto se vale desse recurso narrativo: em “O ex-futuro padre e a sua pré-viúva”, o narrador onisciente evoca o caso da Anabela sonhando que acorda: “Ainda no sonho, Anabela se via a despertar numa manhã brumosa (...). Anabela acordava do pesadelo, coberta de suores” (p. 111)
7 Encontramos o mesmo neologismo traduzindo o mesmo conceito na evocação do encontro da Rosa Caramela com o noivo: “Aos poucos, Rosa Caramela se irrealizou. Ela nunca tanto existira, nenhuma estátua lhe merecera tantos olhos. (“A Rosa Caramela”. P. 24)
Referências
COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Lisboa: Caminho, 1992.
ELIADE, Mircéa. Traité d’histoire des religions. Paris: Payot, 1983.
FAIVRE, Antoine. “Pour une approche figurative de l’alchimie”. In: Annales, Paris: Armand Colin, mai 1971, n. 3-4, p.841-853
JUNG. C. Gustav. Dialectique Du moi et de l’inconscient. Paris: Gallimard. 1964.
i Professor de Literatura Brasileira na Universidade Paul Valéry - Montpellier - na França. Na década de 70, passou sete anos no Brasil, em Belo Horizonte, como diretor da Aliança Francesa. Foi nesse período que ouviu falar de Guimarães Rosa pela primeira vez. Ao retornar à França resolveu estudar o Grande sertão: veredas, que, como ele diz, "era um enigma total". Dessa estudo profundo resultou, além de artigos, a obra JGR - metafísica do Grande sertão, publicada pela EDUSP, em 1994. O livro tem uma segunda edição publicada em 2016, também pela EDUSP.
Texto para download