Msaho e a proposta de renovação da linguagem literária[1]
Lílian Paula Serra e Deus[i]
Introdução
A história de Moçambique evidencia como o processo de independência se deu tardiamente, o que explica certo silenciamento da cultura dos povos de língua bantu que habitavam a região e a reverberação impositiva dos valores levados pela colonização. Posteriormente, em meio a movimentos político-literários que pregavam o anticolonialismo e reivindicavam a afirmação de uma identidade moçambicana, pautada em ideais de moçambicanidade e na afirmação de uma literatura efetivamente moçambicana, que os modelos europeus foram se mesclando às vozes e sons africanos, a ritmos e marcas culturais bem característicos. Esse processo será intensificado pelo mergulho da cultura e da literatura nas tradições orais.
No caso de Moçambique, a memória cultural, mesmo intencionalmente solapada no período colonial, resistiu à perversa lógica colonial.
Ressalte-se que Moçambique, como os demais países africanos marcados pela colonização portuguesa, tem o português como língua oficial. Apesar disso, coexistem no país várias outras línguas de origem africana. Algumas dessas línguas, mesmo não sendo oficiais, são/eram muitas vezes mais usadas que o português devido a uma série de fatores que remontam à história e à cultura moçambicana. Essas línguas, acima de tudo, identificam culturalmente um povo. Nelas estão marcadas tradições, rituais e recursos de criação e expressão que representam um determinado povo e lhes dá identidade. A literatura, desde as primeiras décadas do século XX, procura trazer para o texto literário escrito em português as marcas culturais que perpassam a oralidade.
Autores como José Craveirinha e Noémia de Sousa publicam seus textos e se lançam na vida literária por meio de jornais como O Brado africano (1918-1974), Itinerário (1955). São autores que ratificam o ideal do anticolonialismo e, mediados pela literatura, se utilizam de estratégias para que o texto literário abarque essa luta. Portanto, são escritores que, cada um à sua maneira, e por meio de suas publicações, difundem um ideal de resgate cultural e identitário de Moçambique. Obviamente, esse ideal perpassa a palavra, a língua, e, se a língua utilizada é a implantada pela colonização, há que se transformá-la para que nela caibam todos os sons de uma África multicultural e com raízes orais tão fortes.
Como trazer, então, para o campo visual, para a escrita literária esse universo cultural sonoro, em que a música, a dança, o ritmo se fazem presentes?
No caso de Moçambique, a legitimação dessa voz surge ainda no período colonial e se fortalecerá no projeto do movimento Msaho que, embora de duração efêmera, teve uma importância significativa no processo de afirmação de uma identidade cultural sufocada, até então, pela colonização.
Msaho
Msaho segue a tradição de outros importantes jornais de Moçambique, O Brado africano, o Itinerário e, apesar de ter tido apenas um número, marca a história literária do país por seu projeto inovador. Msaho já abarca na força do seu título a sua proposta: o nome significa o canto do povo chope, etnia moçambicana do sul. De acordo com as propostas do movimento, era preciso romper com a cultura do colonizador e mergulhar no universo cultural moçambicano. Como afirma Carmen Tindó Secco, a proposta de Msaho
estabeleceu um corte em relação aos cânones portugueses que regiam os paradigmas literários até então vigentes em Moçambique. Virgílio (de Lemos) foi um dos grandes defensores da criação de uma verdadeira poiesis moçambicana, antropofágica e descentrada em relação ao fazer literário imposto pela colonização. Propunha e praticava uma poesia rebelde, cujas imagens, o ritmo e o vocabulário revelavam os diversos saberes culturais presentes no múltiplo tecido social moçambicano (Secco, 2011).
Nada mais justo que propor à revista um nome que indica a força da cultura dos povos chope, uma das várias etnias do país. Era preciso dizer quais eram os ritmos dessa terra, quais as suas cores, as suas vozes. Era preciso fazer com que o “país existisse”, resgatar-lhe a memória. O movimento Msaho propunha, portanto, criar uma poesia genuinamente moçambicana, que se rebelasse contra os paradigmas do colonizador.
Como bem acentua Secco (2011), a proposta de Msaho abarca a proposta de uma linguagem inovadora, procurando libertar a língua do jugo da razão colonial: Se a língua usada é a do colonizador, há que subvertê-la; há que africanizá-la, hibridizando-a com os falares da terra. A língua é então “recriada” para que nela “caiba” a cultura moçambicana, para que dela ressoem vozes que não sejam somente a do colonizador. Virgílio de Lemos, um dos criadores do movimento, sublinha que:
É preciso lembrar que 80% das pessoas têm o português como segunda língua, estando em primeiro a sua própria língua africana. Isto faz com que as pessoas, ao se apropriarem do português, façam este processo de remodelagem, recriação e reinvenção da língua de maneira que ela fique elástica e plástica para poder expressar o que está dentro da alma das pessoas (Lemos, 1999, p. 428)
Surgindo, pois, em pleno domínio do colonizador, no ano de 1952, Msaho tem como fundadores Virgílio de Lemos, idealizador e editor da revista, Augusto dos Santos Abranches, Reinaldo Ferreira, Domingos de Azevedo, Antero Machado, diretor artístico, e Eugênio de Lemos, secretário. Além desses escritores, contribui com textos publicados na revista Noèmia de Souza. O fato de a revista ter tido apenas um primeiro e único número deveu-se à censura exercida pela ditadura de Salazar (PIDE), que se estendia à África. Segundo alguns críticos, sua configuração era revolucionária, embora hoje pareça bastante utópica. Essa visão utópica pode ser vista já na nota de abertura da revista, que delineia uma proposta literária procurando valorizar “os elementos nativos”, logo, de certa forma, uma literatura “puramente” moçambicana:
Contra todas as previsões e contra toda a expectativa temos nesse momento a consciência de que a poética de “Msaho” não constitui uma corrente distinta diferenciada com raízes vincadamente moçambicanas (...) mas o que nesta primeira folha revela ainda desencontro estético, formal ou expressivo numa segunda folha poderá tornar-se homogêneo e vir a definir uma força resultante do contacto com elementos nativos, que hoje ainda formam uma massa disforme dependente e incolor (Mendonça, 2001, p.165).
Obviamente, a busca de uma literatura pura e nesse caso a ideia de uma literatura genuinamente moçambicana se faz realmente utópica, pois a própria concepção do fazer literário abarca os trânsitos, os diálogos. Considere-se que mesmo que desses intertextos surja um novo texto ele irá dialogar direta ou indiretamente com outros textos pré-existentes. E não foi diferente com a poesia publicada em Msaho: o mergulho nas tradições perpassou também por um mergulho em movimentos como as vanguardas europeias, a Negritude, o neorrealismo português e o Modernismo brasileiro. Era preciso olhar para fora para se enxergar Moçambique por dentro. As tendências externas foram reconstruídas, foram, intertextualmente, reformuladas numa espécie de releitura antropofágica do alheio para que dele surgisse uma voz identitária moçambicana.
A proposta de josé craveirinha e as misturas que a configuram [2]
Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto [que significa domingo em ronga, língua da capital]. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José. Aonde? Na Av. Do Zichalchla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato…
A seguir, fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros.
Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: seu irmão.
E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda outra vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa de minha mãe, só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.
Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas da noite. (CRAVEIRINHA, apud NGOMANE,2002, p.15-16)
Como o próprio poeta se apresenta por meio da nota autobiográfica acima, datada de 1977, ele nasceu “pela primeira vez” em Lourenço Marques, atual Maputo, em 1922. Desempenhou diversas atividades tais como funcionário da Imprensa Nacional de Lourenço Marques, jornalista, futebolista, tendo também colaborado em diversas publicações periódicas, como O Brado Africano, Itinerário, Notícias, Mensagem, Notícias do Bloqueio e Caliban.
Foi preso pela PIDE e mantido na prisão durante 5 anos. Posteriormente, após a independência de Moçambique (1975), tornou-se membro da FRELIMO e presidiu a Associação Africana.
Filho de uma africana com um português, Craveirinha foi morar com o pai, mas nunca cortou os vínculos com a mãe e com a terra natal. Esses vínculos ressoam em sua poesia através da apropriação e reinvenção da língua portuguesa pelo poeta. Craveirinha remodela o português de Camões e o africaniza, possibilitando que ele se misture a sua língua da afetividade, o ronga, língua materna, da qual ele fez questão de nunca se separar.
Em seu poema A fraternidade das palavras, por exemplo, o poeta nos mostra estratégias utilizadas por ele para resgatar a pluralidade de línguas existentes em Moçambique e, dessa forma, fazer com a que a língua portuguesa assuma uma feição também moçambicana. Ao mesclar a língua portuguesa e as línguas nacionais, marcadamente a língua ronga, herdada da mãe, o poeta acentua o hibridismo com que descreve, poeticamente, a sua terra:
O céu
É uma m´benga
Onde todos os braços das mamanas
Repisam os bagos de estrelas.
Amigos:
As palavras mesmo estranhas
Se têm música verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs.
E eis que num espasmo
De harmonia como todas as coisas
Palavras rongas e algarvias ganguissam
Neste satanhoco papel
E recombinam o poema (Craveirinha, 1972, p.151).
Já na 1ª estrofe, ao dizer que “o céu é uma m’benga” (pote de barro utilizado para moer o milho) onde os braços das mulheres mais velhas, mais respeitadas (manamas) repisam os bagos de estrelas, o poeta subverte a ordem natural das coisas: nesse caso, são os braços que repisam e não os pés como naturalmente se espera. Ao romper com essa ordem natural e dar aos braços funções que são dos pés, há implícita a intenção de ruptura e a de assumir, poeticamente, as tradições da terra e o trabalho das mamanas de que os vasos sempre à cabeça são tomados como um símbolo a ser venerado.
O eu poético assume “palavras estranhas” que se irmanam às da língua portuguesa, o que corrobora os sentidos propostos pelo próprio título do poema: “A fraternidade das palavras”. Mas, para que essa fraternidade se estabeleça, é preciso que as palavras tenham música verdadeira, de alguém que as toque e que o ritmo seja respeitado. Portanto, o poeta respeita a língua portuguesa, mas a retrabalha por meio de palavras rongas que se mesclam as algarvias, numa possível referência à origem do pai português, como já indicado anteriormente. As palavras em ronga, colocadas lado a lado com as palavras em português constroem uma espécie de namoro, de conquista de espaço na cena literária, mesmo que esse espaço, metaforicamente, seja visto como um “satanhoco papel”. A metáfora, que explora os vários sentidos da palavra “satanhoco” (sacana, esperto, feiticeiro), permite que o poeta assuma o resgate da oratura moçambicana; as palavras, imersas na afetividade provinda das línguas paterna e materna, são marcadas no papel em que o poema se mostra. E é dessa mistura, entre as palavras, supostamente fraterna, mas que se sabe inicialmente tensa, que “recombinam o poema”, que ressignificam uma língua que deixa de ser simplesmente a do colonizador para também ecoar vozes de uma África moçambicana, que se faz o poema. A língua portuguesa é subvertida no poema na medida em que as palavras rongas se unem às palavras em português e a língua do pai só faz sentido se for retrabalhada, se for africanizada.
O poeta vai muito além da junção entre o português e o ronga. Ele remodela o português para que esse idioma se aproxime da língua que o identifica, das sonoridades que a língua ronga, permeada pela oralidade, trazem. Por meio de estratégias de construção textual permite a presença da língua ronga no gênero poema, legitimado pelo português. Essa “fraternidade” possibilita que o poema chegue mais perto da carga de afetividade que a sua língua africana abarca. Para isso, como já afirmado, Craveirinha constrói um poema permeado por sons, ritmos e por uma sintaxe mais próxima da oralidade. As palavras se adequam à música e ao ritmo no poema.
No poema Hino à minha terra, Craveirinha nos possibilita perceber tudo isso. O poeta celebra a sua terra, mas o faz através da reinvenção da língua portuguesa.
O poema é permeado por vocábulos em ronga, o que deixa explícito que para falar do amor à sua terra de origem, valendo-se da língua portuguesa, é preciso que nela se insira também a língua oral que, na sua memória afetiva, identifica essa terra: “(...) e todos os nomes que eu amo belos na língua ronga...”
Craveirinha cria, então, possibilidades de celebrar a oralidade, cantando os nomes naturais dos espaços geográficos de sua terra, gritando-os nas línguas de seu país: “ronga, macua, suahili, changana, xistusua, bitonga”. Exaltar os nomes de espaços geográficos importantes de sua terra, em ronga, por exemplo, é trazer para o seu texto os sons desses espaços.
[...] E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E outros nomes da minha terra
Afluem doces e altivos na memória filial
E na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza.[…]
Oh, as belas terras do meu áfrico País
E os belos rios e os belos lagos e os belos peixes
E as belas aves dos céus do meu País
E todos os nomes que eu amo belos na língua ronga
Macua, suaíli, changana,
Xístsua e bitonga
Dos negros Camunguine, Zavala, Meponda, Chissibuca
Zongoene, Ribáuè e Mossuril.[…] ( Ferreira, 1989, p. 333-336)
E aos sons das toponímias em ronga e em outras línguas do país se unem os sons dos nomes de alguns dos instrumentos musicais africanos, evocados e louvados também no poema (xipalapala, por exemplo). Louvar as danças e ritmos do seu país e as várias línguas que o definem é ouvir-lhes o som, que talvez a língua portuguesa não se mostrasse capaz de afetivamente alcançar. Dizer das frutas de seu país (Nhantsuma, mampsincha, mavúngua- frutas tropicais) na sua língua de origem é quase sentir-lhes o gosto.
O poema é marcadamente oral, o eu poético vai percorrendo espaços, evocando-os através do grito aos seus nomes, celebrando tradições, ritmos, elementos da paisagem, instrumentos musicais africanos, que ganham mais força e vida através da linguagem por ele utilizada. Ao gritar os nomes dos lugares em línguas naturais moçambicanas, o poeta, simbolicamente, assume a força das tradições do país e resgata-os do esquecimento que os nomes dados pela colonização portuguesa provocaram. Craveirinha recorre, portanto, aos sons de sua terra e à sonoridade dos nomes que lhe conferem identidade. O poeta mescla português e línguas orais africanas, ou melhor, africaniza o português para que assim possa efetivamente celebrar a sua terra.
José Craveirinha, à sua maneira, rompe com os padrões usuais da língua portuguesa. O poeta, reitera-se, africaniza essa língua, permite que ela se encontre com o ronga. Ao celebrar a língua paterna e a materna, permite que, em seu poema se imbriquem os sons, os ritmos, os batuques, os tambores, os feitiços, as tradições de uma África também híbrida.
Craveirinha marca a história literária de Moçambique e é considerado por muitos críticos um dos fundadores da literatura moçambicana, pois o poeta inaugura uma nova estética, uma nova forma de fazer poesia, em que a africanização, a moçambicanidade e a oralidade estão presentes. Retomando as palavras de Leite:
Craveirinha criou, por assim dizer, um “gênero”, que ele próprio parodia ironicamente: “Cada vez mais me envaidece/ a honra imerecida de pertencer/ à maioria em que me / confinam. Patético cidadão chateado/ recopio a rigor/ o gênero Zé Craveirinha”. (Leite, 2002, p. 22)
Virgílio de Lemos
Fundador do Msaho e com ideias sempre inovadoras, Lemos ajuda a reacender a poesia moçambicana até então abafada por uma cultura europeia imposta pelo colonizador. Lemos, filho de portugueses pertencentes à burguesia, nasceu em 1929, na ilha de Ibo, na costa norte moçambicana. Lemos se situava, em Moçambique, entre dois mundos: o da burguesia, da qual seus pais faziam parte, e o dos empregados da casa, com quem aprendeu a falar algumas palavras de línguas africanas locais, já que estas não eram ensinadas nas escolas e eram faladas apenas pelos nativos.
A obra de Virgílio de Lemos, apesar de ser de suma importância para a história literária de Moçambique, não teve o reconhecimento que lhe cabia no passado. O autor sai de Moçambique em 1963 para se livrar da perseguição da PIDE, órgão de censura do regime ditatorial português, e acaba por ser considerado um apátrida. Ainda em Moçambique, Virgílio de Lemos chegou a responder a processo por crime contra a bandeira portuguesa, em virtude do poema em que, metaforicamente, aproxima o símbolo nacional português de uma vestimenta popular moçambicana: “kapulana vermelha e verde”:
(...) Ah! Tantos desconhecidos mortos
os que nasceram mais tarde
não hão-de-gritar humilhados
bayete-bayete-bayete
à kapulana vermelha e verde
se substituírem no tempo
kapulanas de várias cores[...] (Lemos, 1999, p. 38).
Por motivos políticos, Virgílio de Lemos, à luz de Fernando Pessoa, cria heterônimos para assinar suas obras. Cada um de seus heterônimos tem uma personalidade própria, uma forma própria de escrever e de ver o mundo. Mas, também nessa tradição, Lemos inova mais uma vez, criando um heterônimo feminino, Lee-li Yang. Em entrevista, o poeta fala sobre a forma como enxerga esse fenômeno:
No fundo a heteronímia reflete o que mais tarde Lacan designou como “descentramento do sujeito”. (...) De resto, a heteronímia é uma teia de fugas (...) Teia de fugas para escapar à censura e, mais que isso, ultrapassar o provincianismo colonial, abrindo Moçambique ao mundo, trazendo-lhe os ecos das vanguardas europeias, do Movimento Pau-Brasil, da Negritude, entre outras correntes surgidas nas primeiras décadas do século XX. (Lemos, 1999, p. 143)
Os heterônimos até agora conhecidos são: Duarte Galvão, Bruno dos Reis, Lee-li Yang, V. Klint (que escreveu poesia entre 1967 e 1973); V. Ernest (que redigiu um livro de análise política sobre a Guerra dos Sete Dias e a Palestina); V. Altdorfer. Duarte Galvão é seu heterônimo mais engajado com a situação político-social de Moçambique. É ele quem assina vários dos textos publicados no Caderno Negra Azul, dentre eles o poema intitulado O tempo de Msaho. Esse é um dos poemas em que Virgílio de Lemos, por meio do heterônimo Duarte Galvão, marca textualmente as propostas de Msaho. O próprio título do poema já abarca a ideia de um outro tempo, um tempo de Msaho, tempo de música, canto, mas não de qualquer música, e sim daquela que representa, que identifique a sua cultura:
O tempo de Msaho
Nada reacende tanto
que o amor
ausente
olho de vertigem
embaraçado,
mundo que se busca
visionário
o coração quem manda.
o último deus
é revolução erótica
vai e vem das imagens
nos espelhos
o corpo busca
o seu rosto o desejo
luz. (Secco, 1999, p. 28)
Ao longo dos versos o eu poético se expõe, valorizando as manifestações ditadas pelo coração, metaforicamente visto como “o último deus/e revolução erótica.” (p. 28). Lemos vê Msaho como uma força que faz parte do ideal de liberdade, de viver intensamente os vários percursos dessa revolução. A “revolução erótica” permeia vários dos textos de Duarte Galvão. Dessa forma, o poeta subverte o modelo literário dado pelo colonizador para construir poemas com um “corpo erotizado”. O corpo e a voz do poema se transformam em figurações do desejo e transitam pelo corpo da mulher, da ilha e da própria poesia. A forma pronominal “teus” indica a quem o poeta se dirige na última estrofe do poema: à própria poesia. Do próprio embate das palavras no corpo do poema é possível que surja enfim a liberdade:
A última revolução sou eu destino
Nómada que busca a ficção
De teus gritos corpo
Contra corpo
No desgarre da idéia
Liberdade. (Secco, 1999, p. 28)
Duarte Galvão corporifica, em alguns poemas, o que Virgílio de Lemos chamou de Barroco estético:"O meu conceito de barroco estético, que tanto seduziu Borges, Carpentier e Leiris, seria a formulação mais exacta da antropofagia cultural onde eu incluía as transgressões e irreverências dos moçambicanos, brasileiros e cubanos." (Lemos, 1997, p.29)
Rompendo com normas da tradição literária vigente, o poema quase não tem pontuação. Ao fugir das regras e normas do português da metrópole, Lemos revela sua rebeldia com relação às normas linguísticas impostas pelo colonizador, e dessa forma, o poeta vai dando liberdade às palavras e ao seu fazer poético. De acordo com Secco, na poesia virgiliana, "a estrutura barroca nada tem a ver com a do barroco europeu religioso, impregnado da ideologia cristã advinda do Concílio de Trento. Desse barroco foram retirados apenas os elementos estéticos: o labirinto, a vertigem, os espelhamentos, os redemoinhos, o abismo, os duplos..." (Secco, 1999, p.55)
Na entrevista, anteriormente citada, Lemos comenta:
O barroco estético e o erotismo acompanharam a minha poesia desde o início até hoje. Mesmo nos poemas abordando o social, há uma certa agressividade erótica. Apesar de ter vivido momentos trágicos, de ter presenciado ao que foi o terror e a ilusão, o erotismo e a ironia ajudaram-me a exorcizar ou a superar esse lado trágico de certos períodos. (Lemos, 1998, p. 422).
No poema “Msaho dada”, Lemos utiliza-se de alguns das imagens mencionadas por Carmen Tindó para construir uma linguagem inovadora, labiríntica, dissonante, rebelde e antropofágica. O poeta, mais uma vez, subverte a língua do colonizador e dá à sua poesia a liberdade que é apregoada na proposta de Msaho. Lemos, atento às inovações trazidas pelas vanguardas europeias e pelo Modernismo brasileiro, utiliza-se de estratégias textuais em “Msaho dada” que dialogam com o Dadaísmo, mas também com os sentidos de antropofagia que estão na proposta do Modernismo brasileiro. Lemos olha para fora do seu país, para as vanguardas, para assim poder enxergar melhor Moçambique. Pode-se dizer que o próprio nome do poema aponta para o fato de que as inovações propostas pelo Dadaísmo são assumidas, mas com os olhos voltados para a sua terra, significada pela palavra Msaho. “Msaho dada” ratifica, assim, o descompromisso do Dadaísmo com a racionalidade, valorizando o acaso, o acidental, para indicar o rompimento com a lógica da colonização, com o propósito de reinventar a língua e dar voz a “esse canto Msaho”.
Como afirmado, o poema não tem pontuação, não segue o que apregoam as normas do português padrão, valoriza as línguas africanas (quimoéne, makwa, swahili) e evoca nomes ligados às vanguardas europeias, como Tzara, Jean Arp, Kandinsky e Cendrars de forma desordenada, ratificando a proposta da escrita dada e o completo descompromisso com uma expressão mais lógica. Os nomes evocados no poema retomam a rebeldia do movimento europeu, evidenciada pela evocação que faz de participantes desse movimento. Ao evocar Tristan Tzara e Duchamps ele traz para o poema os “ideais” do manifesto dadaísta desses importantes representantes. As palavras de Tzara fortalecem a proposta de Msaho:
Eu redijo um manifesto e não quero nada, eu digo portanto certas coisas e sou por princípio contra manifestos [...]. Eu redijo este manifesto para mostrar que é possível fazer as ações opostas simultaneamente, numa única fresca respiração; sou contra a ação pela contínua contradição, pela afirmação também, eu não sou nem para nem contra e não explico por que odeio o bom-senso. (Tzara, 2010).
Virgílio de Lemos reinventa esse manifesto antropofagicamente ao dizer:
Tzara eroticus
Mocambicanis
Msaho (Secco, 1999, p. 31).
Vê-se, então, que a invenção Dada transforma-se em uma proposta de poesia inovadora moçambicana, pautada nas ideias de Tzara, transcendendo-as, pois o universo é o africano. O descompromisso é com as normas literárias lusitanas, com a língua portuguesa da metrópole. O mergulho em sua cultura se faz cantando a sua diversidade, com a leveza das tradições culturais das ilhas: “Aéreas de ilha em ilha/Mar/Descentralizado/ DADA” (Secco, 1999, p. 31)
Lemos evoca Marcel Duchamp, que cria a expressão ready made e o coloca lado a lado com Mallarmé, que revoluciona a poesia do século XIX. Dialoga com “Um coup de dês”, poema de versos livres, cujo título, “um lance de dados” indica rompimentos e defesa do acaso. Virgílio de Lemos, assim como Mallarmé, rompeu com a sintaxe tradicional, daí a importância da referência ao poeta francês em “Msaho dada”.
No mesmo poema, Lemos cita também o casal Pancho e Dory Pancho. Pancho era um arquiteto, pintor e escultor português, responsável por construções bastante representativas em Moçambique, onde morava com Dory. Portanto, cada nome citado em Msaho dada, posto de forma desordenada, aparentemente aleatória, corrobora com os ideais de ruptura, de liberdade, apregoados pelo movimento Msaho, pois são nomes que, a seu tempo, também carregavam ideais revolucionários.
No poema “Pensamento Msaho”, o poeta repudia o peso do passado para exaltar um outro tempo, o tempo de Msaho, tempo de olhar para África com um olhar africano, tempo de olhar para Moçambique, enxergar e enaltecer as tradições, a cultura e as raízes moçambicanas:
O que tem importância
é o que faço hoje
e aqui, cinco horas
da madrugada, no dia
17 de Outubro de 51
no tempo e espaço
da lua nova: msaho. [...]
(Secco, 1999, p. 26).
Quando o poeta diz que “o que tem importância/ é o que faço hoje”, ele implicitamente nos diz que tudo aquilo que foi feito anteriormente pela literatura colonial, não importa mais, porque algo de novo está sendo feito hoje e é de maior relevância. O movimento que defende inaugura um novo tempo e um novo espaço: o “da lua nova: msaho”. Ao mesmo tempo, o hoje e o ontem contrapõem Msaho, expressão do presente que intenta um mergulho nas culturas do país, embora um passado (ainda presente) reverbere interdições à poesia e dialogue com a voz, com as sonoridades dos cantos.
Na segunda estrofe o poeta ressalta a importância da sonoridade, o que retoma o próprio título do poema, que, como já dito, significa canto, na cultura chope do sul de Moçambique. O uso do pronome “teus”, em “teus sons”, refere-se ao próprio corpo do poema, que é erotizado e resgatado na interação com o poeta que busca uma ficção diferente das de “ontem”. Considerada ímpar, a sua poesia quer resgatar as “memórias nómadas/famintas/sem casa própria”. Pode-se entender “casa própria” como alusão à própria revista que nasce com o propósito de abrigar um ideal também ímpar de mergulho nas memórias e raízes moçambicanas.
A poesia de Lemos, como se vê, ratifica literariamente a proposta da revista Msaho (1952). Em entrevista, o próprio Virgílio de Lemos nos aponta os ideais e a importância da revista. Os fragmentos da entrevista, que se seguem, ressaltam trechos das respostas dadas pelo poeta a Michel Laban, em 1998:
Msaho foi, juntamente com outras publicações, herdeira próxima do Manifesto Pau-Brasil (Oswald de Andrade), do Modernismo de São Paulo, do Dadaísmo e dos primeiros anos do Surrealismo [...] Msaho acabou por ser uma folha de poesia, mas deviam ser vários números – depois se passaria à música, ao teatro. (...) É influência do Concretismo brasileiro em mim e do Dadaísmo. Em Moçambique conhecia-se pouco o Concretismo brasileiro. Devíamos brincar, saber se podia casar brincar com criar.[...] É preciso que se fale da utopia que nos animava naquela altura, em 1950: Msaho é representativa dessa utopia[...] Em 1952, eu chamei a atenção dos pequenos sinais que anunciavam uma literatura “moçambicana”, em Msaho, mas eram balbuciamentos. Havia indícios de um nascimento de uma literatura “crioula”, já nos anos 50. Eles acentuaram-se agora nos anos 90.Desse barroco estético já há sinais no Mia Couto (Terra Sonâmbula),no Eduardo White e, talvez, na poesia dos anos 70 e 80 do José Craveirinha [...] (Laban, 1998, p. 428)
Era preciso, como diz o poeta, acreditar na utopia, “nos pequenos sinais que anunciavam uma literatura “moçambicana” e um dos meios encontrados foi a revista Msaho, que almejava dar voz a uma África sufocada pela colonização. Por trás dos valores e tradições de uma África impositivamente europeizada, havia uma outra até então “apagada” pela opressão colonial. Segundo Virgílio, nos tempos da ditadura salazarista, os ideais de pátria e de identidade, deslocados da nação portuguesa, lhes eram negados:
Para nós não havia Pátria. Uma ditadura colonial não podia ser Pátria.
Moçambique também não podia ser Pátria de ninguém.
Não era nem Estado, nem país e muito menos ainda Nação.
Aquilo que hoje ainda não é, nem será tão cedo. (Lemos, 1997, p. 124).
Msaho representava, portanto, além de uma forma de resistência ao colonialismo, um resgate da voz e da identidade de povos até então reprimidos pela agressividade do processo colonial. Nesse esforço, é possível pensar que os heterônimos e o próprio ortônimo Virgílio de Lemos, além de representarem as várias faces de um eu fragmentado, sinalizam também para as várias faces de um país, no caso Moçambique, multicultural.
Virgílio de Lemos, por meio do heterônimo Bruno dos Reis, explica: “Eu sou homem, sou várias culturas.” Assim, ao se fragmentar em vários a partir de seus heterônimos, Lemos nos possibilita perceber a multiplicidade cultural do seu país, Moçambique e as várias faces de sua diversidade cultural. É o que afirma Melo:
Consciente da dilacerada identidade de Moçambique, um país multifacetado, com heranças africanas, portuguesas, árabes e indianas, o sujeito lírico da poética virgiliana sente-se “um estrangeiro para si mesmo”, subdividindo-se em vários eus para expressar o estilhaçamento da “imagem interior” e, ao mesmo tempo, buscar sua identidade múltipla através do corpo da poesia. (Melo, 2003, p. 26).
Já Angius aponta a relação/diálogo entre os heterônimos virgilianos e outros poetas com quais Lemos convive, ainda que literariamente: "Em todos os heterônimos se adivinha a presença de mitos antigos, as alusões e os topos conhecidos na Literatura de todos os tempos, cada uma dessas faces revela-nos um poeta que conhece outros poetas e com eles convive." (Lemos, 1999, p. 136).
Seja como “estilhaçamento da imagem interior” ou como remissão a outros poetas com quem convive, Virgílio de Lemos revoluciona até mesmo quando o assunto é heteronímia, pois, além de dar voz a Duarte Galvão, Bruno dos Reis, V. KLint, V. Ernest, V. Altdorfer, o poeta nos coloca diante de Lee-Li Yang, seu heterônimo feminino, que segundo o autor :
escreveu os seus poemas como cartas de amor breves, mas de grande densidade. Os poemas eram dedicados a Duarte Galvão. Eram pequenos poemas ligados por um fio comum, fio de luz, força da paixão de Lee-Li Yang e do Dom Juanismo de seu companheiro; há neles sedução pela ironia, crueldade diante da ausência e uma infidelidade insuportável. (Lemos, 1999, p. 146).
Uma mulher, macaense, que escreveu seus poemas, definidos por Virgílio de Lemos como cartas, entre 1951 e 1953. Ainda segundo Lemos:
Lee-li Yang metaforiza o corpo do desejo de uma escritura que se faz arma política de libertação feminina. Mulher viajada e com grande cultura, Lee-li Yang não se batia contra os homens; procurava dialogar com eles mesmo quando denunciava o machismo. Não se restringia a qualquer feminismo de época. Entre sol e sombra, ardor e solidão, buscava a própria voz. O oriente a que recorria era metáfora do infinito, o outro lado da vida, espaço de liberdade do próprio inconsciente. (Lemos, 1999, p. 146-7).
A descrição que o autor faz de seu heterônimo feminino nos deixa evidente que não se trata de uma mulher que repercute os paradigmas, preconceitos e dogmas da sua época. Lee-li Yang sinaliza na direção contrária, tem ideias libertárias e assume uma voz que às outras mulheres da época era negada:
Destruo as lendas de Polichinelo histórias
de dráculas monstros vampiros e
reescrevo a bíblia do teu falus
tuas réplicas meu Don Juan
de língua contrafeita
e murcha meu coração
Selvagem.
no desfolhar de meus vícios e caprichos
intrépido gala-gala de cabeça azul
minha luxúria desmedida meu sol
de repetição minha desabitada
alma serei tua amante
nunca tua escrava ingênua e
cega. (Secco, 1999, p.42)
A poeta rompe com os paradigmas, desconstrói os mitos, ocupa espaços diferentes daqueles pré-estabelecidos, e se permite o lugar de amante e não o da “escrava ingênua e cega”.
Virgílio de Lemos por meio de cada um de seus heterônimos, salvo as diferenças e peculiaridades de personalidade condizente a cada um deles, parece confluir sempre para um denominador comum: a ideia de liberdade. Libertação da repressão colonial, libertação da voz feminina que se esconde atrás do sexismo da sociedade moçambicana, libertação das etnias negras de Moçambique à medida que denunciou a opressão existente contra elas, etc. E essa liberdade se dá primordialmente por meio da libertação da língua portuguesa, das suas palavras que não se rendem a uma língua portuguesa metrificada pelo colonizador. E essa ideia se textualiza na obra de Lemos:
Ser ilha, sem limites
Vertigem, vibração
Vôo da memória
Na subversão de si
mesma, (...)
(Secco, 2001)
Secco sublinha que:
O lirismo de Virgílio nunca seguiu uma única via. A produção do heterônimo Duarte Galvão representa uma dicção mais comprometida com o social, mas, mesmo as agrestes arbitrariedades, não esquece o labor estético ensinado por Msaho (1952), cuja proposta abriu a poética moçambicana a uma constante transformação linguística, tecida de metáforas eróticas que fizeram do corpo do poema o lugar do cio e do transe verbal. O poema desconstrói desse modo os paradigmas coloniais(...) Identificada ao mar e à ilha, a língua portuguesa, na obra de Virgílio de Lemos, se converte em moçambicana e, simultaneamente, cosmopolita viagem, abrindo-se sem limites aos ventos da imaginação e do erotismo verbal (Secco, 2001).
Em seu poema Antropofagia delirante Lemos explicita metalinguisticamente a relação que o poeta tem com a língua: uma relação de intimidade, incestuosa. A língua devora o poeta em virtude do processo de tensão que se estabelece entre escritor e escrita, mas, ao mesmo tempo que esse processo de construção do texto poético é tenso, ele é também prazeroso, o que faz com que a ideia de incesto surja também da união sexual entre poeta e língua. É o poeta que dá a língua vida: “é no meu canto que vives”, é o poeta que reinventa “as sombras da língua, as fugas” e a faz renascer “livre”.
Mas qual o poeta que não tem,
incestuosa, uma relação com a língua
qual a língua que não devora
o poeta? [...]
[..] A língua é uma canção
que morre
se não lhe conheces o refrão
se não lhe dás a volta
e recomeças,
Livre.
A língua é uma canção
que assobias,
que devolves à memória,
sem artifícios, nua,
irreverente, outra
e tua. (Secco, 1999, p. 32-33)
Noémia de Sousa
Noémia de Sousa, nome pelo qual é literariamente conhecida Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares, nasceu no Catembe, Moçambique, em 1926 e emigrou para Portugal em 1951. De lá, rumou em 1964 para Paris (França), onde permaneceu até 1975, altura em que decidiu regressar a Lisboa, cidade em que ficou até à sua morte, ocorrida a 4 de dezembro de 2002.
Noémia de Sousa destacou-se particularmente na abordagem de temas de exaltação de valores africanos e moçambicanos e de denúncia da opressão colonial.
Em 1949, Noémia de Sousa publica no jornal O Brado Africano o poema “Poesia não Venhas” e o assina com as iniciais N. S. Desde então, tem o seu nome marcado como indicativo de uma nova atitude estética na poesia moçambicana, até então, motivo de críticas em virtude da estagnação na qual se encontrava. Moçambique mostrava-se diferente de Cabo Verde, por exemplo, que, desde 1936, havia ingressado em um movimento literário de resgate identitário: o movimento Claridade.
O poema, publicado no jornal O Brado africano, surpreende o ensaísta Augusto dos Santos Abranches, que chama a atenção do ambiente literário de Moçambique para o nome e principalmente para a poesia de Noémia de Sousa, posteriormente identificada como autora do poema.
Poesia:
Porque vieste hoje,
precisamente hoje, que não te posso receber?
[...]Hoje, eu só saberia cantar a minha própria dor...
Ignoraria tudo o que tu, Poesia, me viesses segredar...
E a minha dor,que é a minha dor egoísta e vazia,
comparada aos sofrimentos seculares
de irmãos aos milhares? (Sousa, 2001, p. 123-124).
Figurativamente, o eu poético pede à poesia para não o visitar em momento em que só poderia “cantar” as suas próprias dores. Se for para falar de si, das suas dores, melhor que a poesia não venha, porque “a minha dor egoísta” não pode silenciar os “sofrimentos seculares dos irmãos aos milhares”.
A poesia que Sousa “canta” é aquela que não renuncia ao coletivo, que não se entrega a individualismos egoístas. É aquela que está atenta aos sofrimentos dos seus irmãos. Noémia de Sousa faz do campo poético um campo de resistência e de manifestação de um sofrimento por séculos vivido por seu povo. Quando o eu poético conclui ser melhor que a poesia não venha, abdica, na verdade, de sua individualidade e de seu isolamento para estampar o possível compromisso da poesia com as condições existenciais dos africanos. Assim, Noémia de Sousa transpõe para o texto literário o sentimento de resistência ao colonialismo, procurando transfigurar-se no ideal coletivo.
Na obra de Noémia de Sousa, a ideia do eu fica muito pequena quando se pensa na força do coletivo “nós”, que se transfigura em África. Em seus poemas, é a mulher/ mãe/irmão que se transfiguram em mãe África para sempre abarcar o coletivo, em detrimento do individual. Esse aspecto é visto pela moçambicana Fátima Mendonça:
A poesia de Noémia de Souza é, deste ponto de vista, paradigmática, pois orienta-se para uma temática marcadamente nova (no contexto moçambicano) onde recorrentemente emerge África desdobrada em vários símbolos (Mãe, Energia, Redenção) do mesmo modo que os ecos longínquos e distantes do Harlém nela perpassam (...) Essa inovação temática desenvolve-se para uma insistente representação do quotidiano suburbano: o contratado, o estivador, o mineiro, a prostituta, interligam-se emblematicamente num universo imagístico sustentado pela imprecação violenta de um Eu que, sucessivas mutações metonímicas, conduzem à integração no coletivo.(Mendonça, 2001,p.170).
Noémia de Sousa escreve todos os seus poemas entre 1948 e 1951, mas teve seu único livro de poesias, Sangue Negro, publicado tardiamente, em 2001, editado pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), com a seleção dos poemas feita por Fátima Mendonça. A obra de Noémia de Sousa vai ao encontro dos ideais apregoados na revista Msaho, o que evidencia o porquê da participação da poetisa na publicação. Sousa mergulha na ideia de moçambicanidade, o que converte a sua obra em um dos pilares que sustentam o surgimento de uma efetiva poesia de feição moçambicana.
No poema “Se me quiseres conhecer”, por exemplo, é nítida a afirmação de uma estética que busca exaltar a cultura moçambicana, intencionalmente silenciada, pela imposição da cultura europeia. Já na primeira estrofe o eu poético funde-se com as tradições da sua terra, com a tradição dos escultores macondes. Por isso, para conhecê-la, é preciso enxergar a fundo (“estuda com os olhos de ver”) a tradição dos macondes, um grupo ético bantu originário do nordeste de Moçambique e sudeste da Tanzânia. A estatuária maconde mais conhecida é feita em pau-preto, uma espécie de árvore característica dessas regiões, o mpingo ou jacarandá africano. Os macondes são também conhecidos em virtude da sua luta e resistência ao colonialismo.
No poema, o eu poético, ao dizer “África da cabeça aos pés”, funde-se com as tradições e ritos macondes, e, como as estátuas negras de pau-preto, se faz África, marcada pela dor da escravatura, mas também pela força que se mostra “nos batuques frenéticos dos muchopes” e “na rebeldia dos machanganas”. Sublinha-se também a ideia constante na obra de Sousa de um eu que só faz sentido se entrecortado por vários outros “eus”. Na pele do subjugado ressoa o macua; no corpo do que sofre, mostra-se o rebelde e o que reconta as tradições. Assim, o “eu” sempre converge para um “nós” que se perfaz na voz de uma terra que tem história, memória, dores e esperanças, como se mostra nos versos deste poema, nos quais se figuram várias imagens da terra africana: “torturada e magnífica/altiva e mística/África da cabeça aos pés”:
Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos de bem ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou em terras distantes lá do norte.
[...]
África da cabeça aos pés,
– Ah, essa sou eu! (Sousa, 2001, p.49-50).
Considerações Finais
Todos os escritores que fizeram parte de movimentos de renovação da poesia moçambicana em suas publicações têm, obviamente que cada um à sua maneira, um olhar sobre a literatura em Moçambique. A sociedade moçambicana, à época de criação de Msaho, vivia ainda os fortes resquícios de uma literatura em cujos textos repercutiam a voz, a cultura e os ideais da colonização. Foram as publicações locais como o jornal O Brado Africano (1918-1974), O Itinerário (1941-1955) e a revista Msaho (1952) que contribuíram para a abertura de portas e a quebra de barreiras que impediam as manifestações dos que lutavam por uma literatura verdadeiramente moçambicana.
O propósito de Msaho, castrado pouco depois de seu nascimento, era resgatar a identidade de um povo que viu sua cultura, valores, tradições e ideais serem postos à margem para que pudesse reverberar, ainda que impositivamente, os tons agressivos da colonização. Há no projeto dos poetas referidos e em Msaho a afirmação de uma literatura moçambicana, um ideal de moçambicanidade, um empenho em resgatar a multiplicidade de expressões que se mostram em oralidades várias, em rituais, crenças e valores que identificam o país como a almejada pátria, muitas vezes sufocada pela cultura do colonizador. E, no empenho desses poetas transgressores de levarem a Moçambique as vozes dissidentes das vanguardas literárias e artísticas europeias e do Modernismo Brasileiro, a língua portuguesa é posta em diálogo com outras línguas europeias e, particularmente, com as línguas étnicas de Moçambique.
NOTAS
1 Originalmente publicado em Veredas – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. n. 39, jan./jun. p. 135-152. 2023.
2 José Craveirinha não publicou poemas na primeira (e única!) edição da Revista Msaho (1952), mas participou ativamente de movimentos de renovação poética no cenário da literatura moçambicana.
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[i] Professora Adjunta no Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB, Campus Malês, Bahia. Doutora e Mestre em Letras pela PUC Minas. É autora de A palavra em preto e branco (2017, poesia), de Não é preciso ter útero para ser mulher (2020, contos) e de Os caras da casa de vidro (2022, romance) e participante da Série Cadernos Negros, números 42 e 43. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.