Silêncio e trauma na escrita literária de Paulina Chiziane1

 

Terezinha Taborda Moreira*


A palavra silêncio tem uma origem latina que é uma determinação de fazer cessar o barulho. Conforme registra o dicionário
Caldas Aulete, dentre outros, silentium, ii significa “1. Ausência de som ou de barulho. 2. Estado de quem permanece calado. 3. Privação, voluntária ou não, de qualquer tipo de comunicação escrita ou oral.”1 Ainda de acordo com o mesmo dicionário, o mutismo associado ao silêncio pode ter dupla intencionalidade: pode resultar de um “estado de tranquilidade, calma, paz” ou ser indicativo de uma atitude que revela “mistério, sigilo, segredo”.

Mônica Santos informa que, no pensamento mítico, o silêncio é identificado com o caos: é anti-história. (SANTOS, 2015). Na esteira dos estudos de Vladimir Jankélévitche e John Cage sobre a música, Santos afirma que o tempo é silencioso e abstracto, e o ruído está ligado à presença humana e relaciona-se com o movimento: “O devir dos eventos e ocorrências no tempo faz ruído. O ruído, ao se opor ao silêncio, torna-se criação, representação do mundo, símbolo da vida.” (SANTOS, 2015). Por isso, a música nasce do silêncio e retorna a ele. Assim como a palavra.

A premissa lançada por Monica Santos nos permite vincular silêncio e realidade. No significado da palavra silêncio encontramos a dualidade calar/falar, a qual traduz a tentativa incessante do homem de significar e, simultaneamente, comunicar a vida – oralmente ou por escrito. Nesse sentido, Susan Sontag lembra-nos que “o ‘silêncio’ nunca deixa de implicar seu oposto e depender de sua presença: [por isso] é necessário reconhecer um meio circundante de som e linguagem para se admitir o silêncio.” (SONTAG, 1987, p. 18 – destaque da autora). Assim, em um espaço pleno de discursos como é o texto, por exemplo, o silêncio pode ser a estratégia para um dizer poético que recusa “o peso da acumulação histórica” que recai sobre a linguagem, impondo-lhe “significados de segunda ordem”, que “a oneram, a comprometem e a adulteram”. (SONTAG, 1987, p. 22). Pleno de sentidos, o silêncio seria a abertura dialética do texto para dizer do que é provável, daquilo que a linguagem não diz, mas que a circunda. Afinal,

Quando nada, porque a obra de arte existe em um mundo preenchido com muitas outras coisas, o artista que cria o silêncio ou o vazio deve produzir algo dialético: um vácuo pleno, um vazio enriquecedor, um silêncio ressoante ou eloquente. O silêncio continua a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso (em muitos exemplos, de protesto ou acusação) e um elemento em um diálogo. (SONTAG, 1987, p. 18).

Abertura dialética da linguagem para dizer do que é provável, daquilo que ela não diz, mas que a circunda: assim será pensado o silêncio na obra O alegre canto da perdiz, da escritora moçambicana Paulina Chiziane. Nela o silêncio caracteriza a personagem feminina Maria das Dores, protagonista do enredo. No movimento de construção da personagem e de seu enredo encontramos aquilo que Santiago Kovadloff, em seus estudos sobre poesia e silêncio, chama de “silêncio da epifania” (KOVADLOFF, 2003, p. 25). Para Kovadloff, o silêncio da epifania é aquele da significação excedida que, com sua irredutível complexidade, “subtrai o homem do solo petrificado do óbvio: o liberta”. (KOVADLOFF, 2003, p. 24). O silêncio da epifania não deve ser entendido como aquele dos significados convencionais. Ele resulta de um ato criativo que retira o poeta de seu lugar usual de compreensão “pelo impacto não de um novo significado (uma vez que este só surgirá mais tarde, sob a forma de sua obra), mas de uma presença luminosa e inesperada – a do real subtraído de seu jugo ao previsível”. (KOVADLOFF, 2003, p. 30).

Paulina Chiziane cria sua personagem por meio de um uso poético da palavra. Na tecitura narrativa da autora, o silêncio é a resposta que a personagem Maria das Dores oferece a uma condição de subalternidade que lhe é imposta, a qual é de ordem patriarcal, mas também racial e de classe. No contexto narrativo da obra, é pelo silêncio que a personagem resiste a essa condição. Ao mesmo tempo, o seu silêncio projeta, na escrita literária da autora, também uma resistência a uma tradição literária patriarcal, racial e de classe que tenta impor à escritora uma condição de subalternidade com a qual ela, no entanto, não se identifica. Assim, neste estudo, o silêncio será pensado como o recurso por meio do qual a personagem protagonista do romance resiste à subalternidade. Para além disso, pretende-se evidenciar como ele se torna, também, a estratégia por meio da qual a escrita literária da autora se opõe à intimidação paralisante e silenciadora de uma tradição literária com a qual ela dialoga.

I

O retorno às águas do rio é a estratégia da voz narrativa para tecer a trama discursiva da personagem Maria das Dores no romance O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane. Qual Vênus emergindo das águas2, a personagem Maria das Dores é apresentada ao leitor nua na solidão das águas do Rio Licungo:

Um grito colectivo. Um refrão.
uma mulher nua nas margens do rio Licungo. Do lado dos homens.
Ah?
uma mulher na solidão das águas do rio. Parece que escuta o silêncio dos peixes. Uma mulher jovem. Bela e reluzente como uma escultura maconde. De olhos pregados no céu, parece até que guarda algum mistério.
Quem é ela?
Uma mulher negra, tão negra como as esculturas de pau-preto. Negra pura, tatuada, no ventre, nas coxas, nos ombros. Nua, assim, completa. Ancas. Cintura. Umbigo. Ventre. Mamilos. Ombros. Tudo à mostra. (CHIZIANE, 2008, p. 11).

Dois aspectos chamam a atenção na descrição da personagem feita pela voz narrativa. A primeira refere-se ao fato de ela encontrar-se na margem que fica “do lado dos homens”. A segunda diz respeito à maneira como ela se porta em sua nudez: “Parece escutar o silêncio dos peixes”.

Nua, envolta em mistério e aparentemente exilada, Maria das Dores emerge na narrativa saída das águas do rio em uma atitude de transgressão que desestabiliza a ordem que regula o comportamento das mulheres e dos homens do lugar. A atitude da personagem é transgressora porque, ao banhar-se no lugar privado destinado aos homens, ela quebra todas as normas do local e, além disso, sua nudez, segundo as crenças da comunidade, ameaça as crianças, que podem ficar cegas e as mulheres, que podem passar a ser usadas e abusadas pelos homens. No entanto, ela responde à reivindicação de reestabelecimento da ordem, que lhe é dirigida pelas mulheres, por meio da linguagem que aprende com os peixes do rio: “Ela responde com a linguagem dos peixes do rio. Sorri. Olha para o chão. Para o céu. Com brandura. Com candura. Os olhos emanam muita luz e uma miríade de cores.” (CHIZIANE, 2008, p. 15).

A linguagem dos peixes, essa linguagem outra, que a faz sorrir, mirar o chão, o céu, com brandura, candura e muita luz, lhe dá acesso ao outro lado do mundo, onde ela se posta e de onde mira a multidão “com os olhos no limbo.” (CHIZIANE, 2008, p. 13). Alojada nessa linguagem outra, em relação à linguagem do lugar somente lhe resta o silêncio. Até porque é essa linguagem outra que lhe permite desafiar a ordem local, banhar-se no lugar privado destinado aos homens, mirar a multidão de mulheres do outro lado do mundo enquanto balança os olhos entre o céu e o horizonte “na visão clarividente dos poetas” (CHIZIANE, 2008, p. 13), superar as ameaças com um sorriso e impor seu corpo e sua nudez como a presença que diz de si, em detrimento de uma identidade que a enquadraria a partir de

Projecções fantásticas das histórias à volta da fogueira, as meninas bonitas, bondosas, obedientes, trabalhadoras casam-se com príncipes dourados, têm muitos filhos e vivem felizes para sempre. As meninas maldosas, mentirosas, desobedientes e preguiçosas, no final da história são castigadas, não arranjaram marido, nem filhos, vivem solteironas e infelizes para sempre, e acabam enlouquecendo. Crenças. De dádivas e destinos. Pragas. Profecias. Castigos. (CHIZIANE, 2008, p. 19).

Por meio da linguagem dos peixes a personagem assume uma identidade outra, diferente dessas projeções, que lhe possibilita fugir de sua condição de “animal ferido por todas as coisas” (CHIZIANE, 2008, p. 17), “borboleta incolor, disforme”, “aquela que ninguém vê” (CHIZIANE, 2008, p. 18). Nessa identidade outra se cumpre seu destino de água, “Sempre correndo em todas as formas, umas vezes nascente, outras vezes rio. Outras vezes suor e outras lágrimas. Dilúvio. Gota de orvalho na garganta de um passarinho.” (CHIZIANE, 2008, p. 17). Como água, o movimento é a sua eternidade. Cumprindo seu destino, Maria das Dores cruza o presente, o passado e o futuro, unindo os tempos para trazer, para as mulheres e os homens do local, uma mensagem de liberdade. Por isso, para a mais velha do lugar, a mulher do régulo, Maria das Dores é “uma canção que recordava às mais novas todas as coisas antigas, dos princípios dos princípios, no conto do matriarcado.” (CHIZIANE, 2008, p. 21). Canção que projeta, no presente narrativo, os mitos da cultura tradicional moçambicana:

Era uma vez...

No princípio de tudo. Homens e mulheres viviam em mundos separados pelos Montes Namuli. As mulheres usavam tecnologias avançadas, até tinham barcos de pesca. Dominavam os mistérios da natureza e tudo... eram tão puras, mais puras que as crianças numa creche. Eram poderosas. Dominavam o fogo e a trovoada. Tinham já descoberto o fogo. Os homens ainda eram selvagens, comiam carne crua e alimentavam-se de raízes. Eram canibais e infelizes. Um dia, um homem jovem tentou atravessar o rio Licundo, para saber o que havia. Ia afogar-se quando aparece a linda jovem, sua salvadora, que meteu o homem no seu barco. Como houvesse frio a jovem tentou reanimar o moribundo com o calor do seu corpo. O homem olhou para o corpo dela, completamente aberto, um antúrio vermelho com rebordos de barro. Ali residia o templo maravilhoso, onde se escondiam todos os mistérios da criação. E depois... (CHIZIANE, 2008, p. 21).

Diferentemente desse passado que emerge no presente narrativo a partir da linguagem-canção mítica trazida por Maria das Dores, o passado histórico do país é relido pela mulher do régulo como uma tentativa de propor, para as mulheres do lugar, um outro olhar sobre si mesmas, que as insira em sua realidade com a consciência da unidade que as aproxima em sua condição feminina:

Éramos de Monomotapa, de Chagamire, de Makombe, de Kupula, nas velhas auroras. O poder era nosso. (...) Unimo-nos aos changanes, aos ngunis, aos ndaus, nhanjas, senas. Guerreámo-nos e reconciliámo-nos. Fomos invadidos pelos árabes. Guerreados pelos holandeses, portugueses. Lutámos. As guerras dos portugueses foram mais fortes e corremos de um lado para outro, enquanto os barcos dos negreiros transportavam escravos para os quatro cantos do mundo. Vieram novas guerras. De pretos contra brancos, e pretos contra pretos. Durante o dia, os invasores matavam tudo, mas faziam amor na pausa dos combates. Vinham com os corações cheios de ódio. Mas bebiam água de coco e ficavam mansos e o ódio se transformava em amor. As mulheres se parecem com coco, não acham? As mulheres violadas choravam as dores do infortúnio com sementes no ventre, e deram à luz uma nova nação. Os invasores destruíram os nossos templos, nossos deuses, nossa língua. Mas com eles construímos uma nova língua, uma nova raça. Essa raça somos nós. (CHIZIANE, 2008, p. 23-24).

Ao associar o corpo feminino ao coco, cujas águas os homens bebem e cujo interior abriga as sementes da nova nação, a mulher do régulo, sob a inspiração da linguagem-canção mítica de Maria das Dores, recorda às mulheres que a nudez da personagem às margens do rio Licungo as assusta porque inscreve, em sua própria memória e na memória da nação que lemos no contexto da narrativa, algo que apenas pela nudez da estrangeira pode ser recuperado: a sua condição de corpos femininos e negros, lugar de sua identidade feminina e de origem da nação mesma.

Assim, vemos que o corpo define a condição feminina da personagem Maria das Dores. É ele o seu espaço de enunciação. Talvez por isso, ao apresentar-se nas margens do rio Lucungo ela o faça na posição de lótus, que lhe permite colocar em evidência a fala-corpo que a caracteriza e que dá visibilidade ao “seu interior desabrochado, como um antúrio vermelho com rebordos de barro”, a suas tatuagens no ventre de mulher madura, a seu “corpo esguio, pequeno, recheado à frente, recheado atrás”. (CHIZIANE, 2008, p. 12).

A construção da personagem por meio do recurso a seu corpo-discurso decorre do fato de que ela será submetida, na narrativa, a um processo de sequestro de sua subjetividade, resultado das perdas que acumula ao longo da vida e decorrente de sua condição de mulher negra num país regido por uma história marcada pela colonização, pelo falocentrismo e pelo racismo:

Mas tudo começou no dia em que o pai negro partiu para não mais voltar. Tudo começou quando o pai branco amou a sua mãe. Tudo começou quando nasceu a sua irmã mulata. Tudo começou quando a sua mãe vendeu a sua virgindade para melhorar o negócio do pão. Tudo começou com uma relação que envolvia sexo e amargura. Filhos e fuga. Torpor e ausência. Escalada de uma montanha. Soldados brancos na defesa do império de Portugal. Dinheiro e virgindade. Magia. Fortuna.

Lembra-se de tudo, da terra e do mundo. Onde a cultura dita normas sobre homens e mulheres. Onde o dinheiro vale mais que a vida. Onde o mulato vale mais que o negro e o branco vale mais que todos eles. Onde a cor e o sexo determinam o estatuto de um ser humano. (CHIZIANE, 2008, p. 27).

Cada perda se inscreve no corpo-discurso da personagem Maria das Dores conformando o silêncio com o qual, gradativamente, ela ocupa seu lugar no mundo. Para a personagem o silêncio não significa uma renúncia. O silêncio de Maria das Dores lhe permite elaborar a linguagem outra pela qual ela desafia tudo aquilo que sequestra sua subjetividade. Pelo silêncio ela elabora a linguagem e a identidade outra que lhe permitem escapar dos padrões culturais de significação dominantes em Moçambique, a partir dos quais a mulher negra é socialmente projetada em signos que a vinculam a imagens da escravidão negra e da submissão do corpo feminino à imposição racial e de gênero.

A expressão da renúncia da personagem Maria das Dores em assumir as representações sociais inferiorizantes que a sociedade moçambicana projeta para a mulher pode ser lida em sua recusa às roupas que lhe cobrem aquilo que ela elege como signo de sua identidade-discurso-enunciação: o seu corpo nu, por meio do qual ela pode recuperar sua condição feminina e negra:

Quem sou eu? Uma estátua de barro, no meio da chuva. Odeio as roupas que me limitam o voo. Odeio as paredes das casas que não me deixam escutar a música do vento. Eu sou a Maria das Dores. Aquela que desafia a vida e a morte a busca do seu tesouro. Eu sou a Maria das Dores, e sei que o choro de uma mulher tem a força de uma nascente. Sei com quantos passos de mulher se percorre o perímetro do mundo. Com quantas dores se faz uma vida, com quantos espinhos se faz uma ferida. Mas não tenho nome. (CHIZIANE, 2008, p. 18).

Recusar as roupas é, para Maria das Dores, resistir a um discurso de dominação de origem colonial, patriarcal e racial, como também a tudo que decorre desse discurso. É regressar a um estado de pureza, de transparência, em que “o nu de uma [mulher] se reflete no corpo da outra [mulher]” (CHIZIANE, 2008, p. 33) para lembrar que os tempos podem se misturar, os povos podem se misturar, os costumes podem se misturar, mas o ventre da mulher “é o único ponto de partida para todos os caminhos do mundo”. (CHIZIANE, 2008, p. 34).

Na redefinição do corpo feminino negro como ponto de origem encontramos a redefinição da identidade feminina da personagem. Encontramos, também, a reinserção de Maria das Dores em condições sociais que lhe foram suprimidas, as quais ela reivindica pela nudez: a de filha, a de irmã, a de esposa e a de mãe:

Sorri. Finalmente pode regressar a casa e retomar o penteado de Jacinta que ficou por terminar. Pode voltar a conversar com o centauro, esse cavaleiro de diamante, com corpo de homem e cabeça de cavalo. Pode voltar e arrumar os livros que deixou abertos sobre a mesa há mais de vinte e cinco anos. Abraçar a boneca na cama da infância. Voga no espaço, voa até se transformar numa mancha, num ponto, num germe pronto a ser de novo incubado pelo ventre da mesma mãe. Sente a vertigem da leveza e tenta desesperadamente buscar um alicerce que a sustente no grito de libertação: - Minha mãe, minha mãe, minha mãe! (CHIZIANE, 2008, p. 319).

Sua nudez transgressora reencena, na narrativa de Paulina Chiziane, os questionamentos postos por Teresa de Lauretis em relação às representações do feminino. Para Teresa de Lauretis, essas representações precisam ser pensadas a partir de um “outro lugar”, de um ponto de interseção que nos coloque dentro dos discursos de gênero e, simultaneamente, fora dele. A estudiosa esclarece que

esse “outro lugar” não é um distante e mítico passado, nem uma história de um futuro utópico: é o outro lugar do discurso aqui e agora, os pontos cegos, ou o space-off de suas representações. Eu o imagino como espaços nas margens dos discursos hegemônicos, espaços sociais entalhados nos interstícios das instituições e nas fendas e brechas dos aparelhos de poder-conhecimento. E é aí que os termos de uma construção diferente de gênero podem ser colocados – termos que tenham efeito e que se afirmem no nível da subjetividade e da auto-representação: nas práticas micropolíticas da vida diária e das resistências cotidianas que proporcionam agenciamento e fontes de poder ou investimento de poder; e nas produções culturais de mulheres, feministas, que inscrevem o movimento dentro e fora da ideologia, cruzando e recruzando as fronteiras – e os limites – das(s) diferença(s) sexual(ais). (LAURETIS, 1994, p. 237).

Para a estudiosa, “as mulheres se situam tanto dentro quanto fora do gênero, ao mesmo tempo, dentro e fora da representação”. (LAURETIS, 1998, p. 218). O situar-se dentro e fora do gênero joga por terra as noções dualistas de representação baseadas apenas na oposição entre o feminino e o masculino.

Assim, a redefinição do espaço ocupado pelo corpo feminino na sociedade moçambicana, proposta pela personagem, contrapõe-se a noções dualistas de representação baseadas em oposições valorativas que excluem o feminino e o negro, com privilégio do masculino e do branco. Nem enquadrando-se no gênero, nem excluindo-se dele, mas gendrando e en-gendrando (LAURETIS, 1994) o corpo e o discurso, a voz narrativa conduz Maria das Dores ao encontro de sua condição feminina sequestrada, a fim de que ela possa ocupar seu lugar no mundo e viver o gênero evidenciando suas contradições, ideologias e as relações de poder a partir das quais ele se representa.

II

A relação entre a mulher e o silêncio tem sido assinalada pela crítica feminista há já algum tempo. Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, por exemplo, em sua obra The madwoman in the attic (2000)3, que retomo a partir das considerações e análises desenvolvidas por Aparecido Donizete Rossi (2011/2016), ao associarem a pena ao falo estabelecem alguns pressupostos importantes para a reflexão sobre a situação da mulher no universo patriarcal que lhes significa na literatura canônica ocidental. As estudiosas apontam para o silenciamento que essa literatura impõe à mulher quando perguntam: “Is a pen a metaphorical pennis? [É a pena um pênis metafórico?]” (GILBERT; GUBAR, 2000, p. 3). Respondendo afirmativamente à pergunta com base nos estudos de Anne Finch, Gilbert e Gubar observam que a pena, por ser uma ferramenta essencialmente masculina, pode ser pensada como um falo metafórico, o que as leva a afirmar que escrever, ler e pensar são, em si mesmas, atividade masculinas no contexto da literatura canônica ocidental.

A partir da associação entre gênero, literatura e poder, Gilbert e Gubar evidenciam a ausência da voz da mulher no espaço da escrita literária canônica ocidental, fato que, segundo elas, pode ser comprovado pelas representações da mulher nessa literatura. Essas oscilam entre duas imagens matriciais que espelham a projeção que a sociedade patriarcal e falocêntrica faz da mulher ao longo dos séculos: a de anjo, à qual estão associados os atributos da beleza, pureza, bondade, passividade, entrega aos afazeres domésticos, aos filhos e aos maridos; e a de monstro, representada pela bruxa, pela louca histérica, pela femme fatale, pela sereia, pela vampira, enfim, a ela associando-se uma autonomia inconciliável com a dependência feminina pressuposta pelo universo patriarcal e falocêntrico. Para Gilbert e Gubar, nos estereótipos do anjo e do monstro a literatura ocidental fixa os paradigmas a partir dos quais a mulher é lida e representada. Nas duas situações, resta à mulher uma condição de silenciamento. Seja ela leitora ou escritora, o silêncio é aquilo que a sociedade patriarcal falocêntrica lhe impõe e que espera dela, visto que sua possibilidade de expressar-se fica circunscrita à incorporação das máscaras com as quais ela é falada.

Intensificando o debate sobre a relação entre mulher e silêncio, Gayatri Chakravorty Spivak incorpora à discussão as diferenças de raça e de classe, observando como, no contexto do itinerário obliterado do sujeito subalterno, apesar de tanto o homem quanto a mulher serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Para a estudiosa, a violência epistêmica do imperialismo restringe ao sujeito subalterno a possibilidade de uma episteme. Porém, para Spivak, “se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade”. (SPIVAK, 2010, p. 64).

A análise da obra de Paulina Chiziane que estamos fazendo neste estudo, embora superficial, ilustra a relação entre gênero, literatura e poder proposta por Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, como também as diferenças entre raça e classe acrescentadas ao debate por Gayatri Chakravorty Spivak. A moçambicana Paulina Chiziane é uma escritora negra que produze sua obra em um espaço com história de colonização. Por isso, vale a pena investigarmos como sua criação estética se constrói diante da constrangedora limitação que lhe impõe a relação entre gênero, literatura e poder e da restrição à possibilidade de fala com que se depara o sujeito subalterno feminino no contexto da produção colonial.

Segundo Gilbert e Gubar, como a pena pode ser associada ao falo, ao apropriar-se dela para escrever a mulher está, na verdade, de maneira inconsciente, apropriando-se de um objeto socialmente circunscrito ao masculino. A ausência, em seu corpo, de um órgão sexual que corresponda ao ato/poder de criar, que a leva a apropriar-se da pena/falo, gera na mulher um embate psíquico inconsciente, que, muitas vezes, encontra expressão na escrita das autoras quando elas produzem obras de caráter metatextual, discutindo o ato de escrever em suas narrativas. Esse embate psíquico, associado com a circunscrição da mulher aos estereótipos do anjo e do monstro definidos pela tradição literária patriarcal e falocêntrica, gera o que Gilber e Gubar tratam como sendo a “angústia da autoria” (GILBERT; GUBAR, 2000, p. 49) para mostrar como o tornar-se escritora é, para a mulher, uma experiência traumática.

Gilbert e Gubar associam a noção de angústia da autoria à de angústia da influência proposta por Harold Bloom. A angústia da influência diz respeito à construção da autoria, ao fato de que tornar-se escritor implica construir-se a si mesmo a partir do outro, da influência que se recebe de toda uma tradição de autores precedentes que deve ser apropriada, a qual, por sua vez, também se apropriou de toda uma tradição autoral que a precedeu. Implica, ainda, encontrar uma maneira de superar os predecessores, tornando-se um autor forte por renovar, de alguma maneira, a literatura precedente.

Para Gilbert e Gubar, no caso da escritora essa situação se complica, pois a tradição autoral que precede a escrita da mulher é masculina, patriarcal e falocêntrica. Além disso, essa tradição enquadra a mulher pelos estereótipos do anjo e do monstro, priorizando o anjo e repudiando o monstro. Tal constatação leva Gilbert e Gubar a concluírem que a tradição autoral que as mulheres encontram quando decidem tornar-se autoras não lhes fornece modelos nos quais elas possam inspirar-se, ou com os quais possam romper em seu processo de auto-afirmação. Por isso, o que resta à mulher que deseja tornar-se autora é, na perspectiva aberta por Gilbert e Gubar, procurar uma precursora (GILBERT; GUBAR, 2000, p. 49) que, longe de representar uma ameaça a ser contestada ou destruída, comprove a possibilidade de uma insurreição contra a autoridade literária patriarcal. À mulher que pretende tornar-se escritora resta, então, procurar uma tradição autoral feminina que lhe permita opor-se à autoria/autoridade literária patriarcal. Essa tradição literária autoral feminina é encontrada por Gilbert e Gubar em textos de várias escritoras inglesas dos séculos XVIII e XIX, tais como Jane Austen, Mary Shelley, Emily Brontë, Emily Dickinson, dentre outras.

Gilbert e Gubar informam que as obras dessas escritoras apresentam várias estratégias por meio das quais procuram desarticular e/ou subverter o patriarcado. A primeira estratégia elencada é o palimpsesto, por meio do qual as escritoras criaram uma tradição literária feminina que se configura por meio de uma simultânea relação de conformidade e subversão dos padrões literários patriarcais. A segunda estratégia é a evasão e a dissimulação, pelas quais as escritoras buscam, de maneira velada, dissimulada, reexaminar as imagens de mulheres herdadas da literatura masculina e definidoras das polaridades do anjo e do monstro, rejeitando os valores e pressuposições da sociedade que os criou e criando outras personagens que, por suas características monstruosas, sangrentas, invejosas, furiosas, insanas, funcionam como um duplo das escritoras e projetam, na escrita literária, sua prória raiva autoral. A terceira estratégia alia paródia e ambiguidade como resultado do fato de que, sendo a personagem louca um duplo de sua autora, ela pode ser vista como uma paródia tanto da autora quanto das mulheres monstruosas criadas pela literatura patriarcal. Por isso, a paródia permite às escritoras instalar, em suas narrativas, uma ambiguidade essencial, por meio da qual expressam e camuflam a crítica que propõem à literatura patriarcal. A quarta e última estratégia é a construção espacial presente nas escritas dessas mulheres, que é marcada pelo signo da reclusão, da clausura, do isolamento, da morte, refletindo o espaço social habitado pela própria mulher autora, ou seja, o da casa ou doméstico. As mulheres projetam a angústia sobre a clausura em sua arte a partir do espaço da casa, fundindo as angústias sobre a maternidade com as da criação literária. A partir daí, Gilbert e Gubar propõem que o útero, comumente associado à casa, também seja visto como espaço dominado por angústias. Nessa perspectiva, ele se torna espaço da loucura, da morte, mas também, forma de comunicação, de expressão da voz feminina, de seu discurso, de seu texto. O útero é proposto, então, pelas estudiosas, como espaço do impulso criativo feminino. É um desdobramento da pena que possibilita às mulheres a estratégia do palimpsesto. Por meio de uma série de associações as autoras mostram que o texto escrito pelo útero/pena não corresponde à “nulidade” ou à “vacuidade” (GILBERT; GUBAR, 2000, p. 9) sugeridas pela cultura patriarcal, mas se caracteriza, antes, como enigma, mistério que coloca em xeque não apenas a literatura patriarcal, mas também o próprio Logos.

As observações de Gilbert e Gubar, inclusive relativas à existência de um cânone literário autoral feminino e de uma estética que lhe corresponda, nos permitem indagar sobre como devem proceder as mulheres negras que pretendem tornar-se escritoras e que produzem suas obras em contextos com história de colonização, como é o caso de Paulina Chiziane. A tradição autoral feminina sugerida por Gilbert e Gubar, composta por escritoras inglesas, burguesas e brancas dos séculos XVIII e XIX, poderia ser considerada como precursora pelas mulheres negras que se tornam escritoras? Existiria uma tradição autoral feminina que permitisse às escritoras negras insurgir-se contra a autoridade literária patriarcal, falocêntrica, racial e de classe? Existiria uma tradição autoral feminina negra na literatura ocidental? Existiria na literatura moçambicana?

Essas indagações nos permitem verificar como o tornar-se escritora é, para a mulher negra, e em nosso caso específico, para a mulher negra moçambicana, uma experiência ainda mais traumática. Aliás, com relação à literatura moçambicana, é preciso lembrar, antes de mais nada, que o próprio ato de assumir a língua portuguesa na escrita literária foi, para os escritores de maneira geral, traumática, uma vez que sua presença nos países africanos se dá por legado e imposição do processo de colonização europeu. Assim, apenas na segunda metade do século XX os escritores africanos assumem a língua portuguesa como pertença individual e coletiva. De qualquer forma, é preciso assinalar que grande parte da escrita literária moçambicana, como também africana de língua portuguesa, é essen­cialmente masculina. A literatura moçambicana espelha a exclusão das mulheres do espaço da escrita literária. Nela predominam vozes masculinas.

Laura Padilha atesta a ausência da produção de mulheres nas literaturas africanas de língua portuguesa chamando a atenção para o fato de que “o acesso ao texto verbal lhes era duas vezes barrado: por serem mulheres e africanas”. (PADILHA, 2002, p. 171). Segundo a pesquisadora,

Encher de palavras o silêncio histórico foi para elas uma árdua e difícil conquista. Mesmo depois das independências, quando as nações se constituíram como comunidades políticas imaginadas - territorialmente limitadas e organizadas de modo soberano (ANDERSN, 1989, p. 14) -, o acesso das mulheres à condição de produtoras textuais não foi facilitado. A formação canônica em tais nações submeteu-se aos mesmos aparatos ideológicos e aos mesmos mecanismos de dominação cuja meta, como se sabe, é elidir as diferenças, sobretudo no que concerne a questões como as de raça e gênero. (PADILHA, 2002, p. 171).

Destacando o papel importante do Boletim Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império - CEI -, editado entre 1948 e 1964, em Lisboa, na formação de um cânone literário africano de língua portuguesa, Padilha mostra que, embora a presença de escritores seja eminentemente masculina, as mulheres tomam parte dele, propondo duas imagens que se fazem recorrentes em suas produções: “a da mulher e a de seu duplo, a terra, significando esta o lugar de nascimento, a pátria.” (PADILHA, 2002, p. 173 – destaques da autora). Para Padilha, a recorrência a imagens de mulheres se torna comum nas publicações da CEI, aparecendo, inclusive, em produções masculinas. Ressalta a pesquisadora que a imagem da mulher aparece sempre vinculada a uma metáfora genesíaca, “pois a mulher é sempre vista em África como fonte primeira da vida individual e clânica.” (PADILHA, 2002, p. 173-174). Porém, nos textos femininos, além da vinculação metafórica à terra, a representação adentra a metonímia, por meio da qual, na esteira de Inocência Mata, Padilha afirma que a figuração da mulher põe em cena um “indivíduo com as suas dores e frustrações pessoais, as suas esperanças e desejos. E nessa dualidade (como indivíduo e como entidade político-cultural: a mátria) a figura da mulher emerge com facetas humanas”. (MATA apud PADILHA, 2002, p. 174).

Ressaltando a participação das mulheres no Boletim Mensagem, Laura Padilha informa sobre a presença de três mulheres: Alda Lara, de Angola; Alda do Espírito Santo, de São Tomé e Príncipe; e Noémia de Sousa, que escreve utilizando também o pseudônimo Vera Micaia, de Moçambique. Para esta reflexão, interessam-nos mais diretamente as observações de Padilha sobre a poética de Noémia de Sousa, em razão dos questionamentos que levantamos há pouco sobre a configuração de uma tradição de escrita feminina negra na literatura moçambicana.

Para Padilha, o principal traço significante da escrita de Noémia de Sousa é a sua feminilidade. Assim, “mesmo, muitas vezes, sem assumir marcas discursivas explícitas de um sujeito-mulher, sua poesia irrompe em forma de um feminino convulsionado pela revolta e por uma inadiável ânsia de libertação”. (PADILHA, 2002, p. 183). Esse movimento do eu lírico projetado na voz em feminino de Noémia de Souza resgata uma tradição oral que se transforma na escrita, “daí o fato de o sujeito negar-se a ficar solitário, exigindo a presença de outras vozes, o que faz do seu um canto coletivo”. (PADILHA, 2002, p. 183). Esse canto coletivo, para Padilha, coloca na cena poética as vozes dos “seres vitimados de sua terra; os torturados corpos marcados ‘pelos chicotes da escravatura’ dentro e fora da África, enfim, os negros de todo o mundo”. (PADILHA, 2002, p. 183, destaque da autora). Por isso, a estudiosa conclui que o canto de Noémia de Sousa se desdobra como um canto coletivo.

Em oposição a essa vertente política da produção poética feminina apresentada no Boletim Mensagem, Padilha identifica, na literatura angolana, entre os anos 50 e 60, uma outra figuração do corpo feminino que ganhou as páginas dos jornais que funcionavam como espaço de circulação dessa produção poética em seus inícios, na época colonial. Essa figuração era proferida por uma voz “assimilada” (PADILHA, 2002, p. 221), construída a partir de um modelo que tinha a mulher branca e europeia como paradigma, mesmo travestida de africana, e que lançava, para o corpo feminino negro, um olhar externo que destacava nele o exótico e o sensual. Porém, como a pesquisadora informa, essas vozes “mergulham em uma espécie de limbo, praticamente se calando”. (PADILHA, 2002, p. 221).

Estudando outras poetas africanas, Padilha vai mostrar que, da mesma forma que em Noémia de Sousa, a encenação do corpo feminino se faz a partir dos “mitos bantos de origem, sempre organizados em torno do feminino”. (PADILHA, 2002, p. 204). Esses estudos mostram o comprometimento da figuração do corpo feminino com o corpo coletivo da nação, num entrelaçamento sígnico mulher/terra que se tornará um dos vetores da formação das chamadas modernas literaturas africanas produzidas em português. A esse respeito, Maria Nazareth Soares Fonseca chama a atenção para o fato de a construção de uma voz coletiva ser uma estratégia eficaz para aproximar a poeta de inúmeras mulheres exploradas pelo sistema colonial e afirma que “Esse mesmo recurso, em vários poemas de Noémia de Sousa, mostra prostitutas e magaíças como vítimas de um mesmo processo de exploração, como metonímias do sistema de opressão que a poeta condena.” (FONSECA, 2004, p. 290).

Todavia, como adverte Maria Nazareth Soares Fonseca, “a adesão às causas coletivas não consegue dar voz aos anseios próprios de um segmento também marginalizado e submisso, o das mulheres”. (FONSECA, 2004, p. 290). Daí, para a estudiosa, justificar-se a pouca presença de escritoras a figurarem nas antologias de poesia de autores africanos de língua portuguesa. Percebemos, assim, que a tentativa da voz feminina de Noémia de Sousa, como a de outras poetas das literaturas africanas de língua portuguesa, de romper o silêncio imposto para a mulher e subverter as leis da invisibilidade de seu corpo vai se confundir com o rompimento do silêncio imposto ao próprio corpo moçambicano/africano. No entanto, ao realizar esse intento por meio da projeção de uma voz coletiva feminina no espaço da literatura, essas mulheres, e entre elas Noémia de Sousa, vão “silenciar as manifestações próprias à feminilidade”. (FONSECA, 2004, p. 291). Em função disso, analisando a produção poética mais recente de algumas autoras africanas, Fonseca classifica o lugar de fala dessas mulheres como “desconfortável”, “incômodo”, observando, porém, que é apenas a partir dele que elas podem “acolher as vozes dos excluídos com os quais (...) guardam fortes semelhanças” e, ao mesmo tempo, afastar-se “de algum modo, do compromisso com um projeto de luta” para inserir-se, pela escrita literária, em “um ritual de passagem para outras travessias” (FONSECA, 2004, p. 291) que deixem mais evidentes as pulsações do corpo feminino.

É nesse lugar “desconfortável”, “incômodo”, que a poética de Paulina Chiziane se insere. Por isso, acredito que a condição traumática em que Paulina Chiziane produz sua escrita literária se materializa na personagem protagonista de seu romance O alegre canto da perdiz como projeção dos limites contra os quais se debate o sujeito feminino negro em sua busca para expressar-se. A recusa da personagem por uma expressão que não lhe permite dizer de si, sua busca por uma linguagem outra, seu silêncio, encenam as estratégias pelas quais a escritora assume o desconforto e o incômodo como condição da/para a escrita e, consequentemente, para a construção de uma tradição autoral feminina que permita às escritoras moçambicanas – e africanas de língua portuguesa – negras insurgirem-se contra a autoridade literária patriarcal, falocêntrica, racial e de classe que as representa pelo silêncio, deslocarem-se de projetos coletivizadores que as esvaziam de si mesmas e

assumir[em] uma escrita que deixa espaço para a expressão da intimidade do eu, para a escuta de sugestões mais comprometidas com o universo de mulheres que, ainda silenciadas por fortes tradições, motivam a escrita de textos que transitam no espaço da literatura, procurando não se fechar às inter-relações com outros campos em que o corpo desenha diferentes coreografias, ainda quando só pode ser observado no desempenho de obrigações cotidianas. (FONSECA, 2004, p. 295).

Notas

1. Texto originalmente publicado em Revista Mulheres e Literatura, v. 17, 2º trimestre, p. 1, 2016.

2. Disponível em: http://www.aulete.com.br/silêncio. Acesso em 07 de setembro de 2015.

3. Não nos parece inadequado sugerir que a cena dialoga com a tela O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli. A pintura está exposta na Galleria degli Uffizi, em Florença, na Itália. É provável que tenha sido feita em 1485. No quadro, a deusa clássica Vênus emerge das águas em uma concha, sendo empurrada para a margem por Zéfiro, o Vento Oeste, símbolo das paixões espirituais, e recebendo, de uma Hora (as Horas eram as deusas das estações), uma manto bordado de flores. Alguns especialistas argumentam que a deusa nua não representaria a paixão terrena, carnal, e sim a paixão espiritual. O efeito causado pelo quadro foi de paganismo, já que foi pintado em época em que a maioria da produção artística se atinha a temas católicos. Na antiguidade clássica, a concha do mar era metáfora para vagina. (Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Nascimento_de_Vênus).

4. Não é objetivo deste texto explorar a fundo as importantes reflexões de Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, motivo pelo qual remetemos para as elucidações, considerações e análise crítica da obra das autoras feitas por Aparecido Donizete Rossi em sua Tese de Doutorado Segredos do sótão: feminismo e escritura na obra de Kate Chopin, defendida na FCL-Ar/Unesp em 2011, salientando sua contribuição para a leitura que apresento neste artigo. Disponível em: http://base.repositorio.unesp.br/handle/11449/102372. Acesso em 25 de janeiro de 2016.

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* Terezinha Taborda Moreira é Doutora em Letras e Professora Adjunta da PUC Minas. Pesquisadora do CNPq, Nível 2. É autora de O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção moçambicana (2005); e organizadora dos volumes Tramas e traumas: escritas de guerra em Angola e Moçambique (2018); Violência e escrita literária (2020); e Mulheres e guerras: participações femininas em conflitos armados através de textos contemporâneos (2020).

 

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