Tempo e história na narrativa moçambicana1

 

Terezinha Taborda Moreira*

Uma vez que é dia, depois noite, qual será o fim deles?

Alexis Kagame

1. Tempo e história

Gostaria de tomar algumas obras da escritora Paulina Chiziane para, com elas, tecer uma breve análise da ficção moçambicana e de sua forma de encenação do tempo na escrita contemporânea. A obra de Paulina Chiziane será abordada como paradigma possível de uma escrita que evidencia uma percepção do tempo como “o campo fechado e o mercado no qual se confrontam ou negociam as forças que habitam o mundo” (HAMA; KI-ZERBO, 1982, p. 32). Nessa escrita, o tempo se revela como uma construção mítica e social, realizada por uma autora que tem consciência de ser o agente de sua própria história e que torna o tempo da narrativa “um ritmo respiratório da coletividade” (HAMA; KI-ZERBO, 1982, p. 24).

Em seus estudos sobre a vida tradicional de algumas sociedades africanas, Mbiti (1969) observa que essas sociedades articulam tempo e evento. Para o autor, o tempo consiste numa composição de eventos que ocorreram, estão ocorrendo e ocorrerão imediatamente a seguir. O evento atual é tido como pertencente ao presente. Porém, ele integra-se ao passado e, ao mesmo tempo, constitui-se como base para o futuro. Em decorrência, nas sociedades tradicionais africanas, predomina uma concepção de tempo como fenômeno bidimensional, constituído pelo presente, um longo passado e uma virtual ausência de futuro.

Kagame (1975) esclarece-nos que, entre os bantu, o evento, durante todo o tempo em que se desenrola, individualiza o tempo necessário à sua realização. Segundo ele, no plano metafísico, esse evento entra a cada instante no passado, mas “a concepção cultural o mantém no presente durante todo o tempo em que ele não houver terminado” (KAGAME, 1975, p. 116). Isso porque cada acontecimento é considerado como uma entidade especial, individualizada, distinta das que o precederam ou que se desenrolam paralelamente na mesma época. Os bantu pensam o “passado” como um conjunto de atividades pelas quais os antepassados marcaram seu tempo e que transmitiram a seus descendentes. Nesse sentido, os homens do presente são devedores às gerações de antepassados e são orgulhosos de suas realizações. Para Kagame, na cultura bantu, o passado se reveste de uma importância capital:

Primeiro, porque sem ele, o “presente”, o tempo da geração atual, não existiria. (...) Além disso, a cultura bantu põe em estreita relação os antepassados e seus descendentes, convencidos estes de que não continuariam a existir no “presente” e não poderiam perpetuar sua linhagem sem a proteção dos antepassados. Devem, pois, voltar-se para esses últimos para se certificarem da intervenção tutelar que esperam deles, mas isso não significa de modo algum que eles não se orientam para os tempos que virão, pois o fim último do Homem, em seu sistema filosófico, é a perpetuação da linhagem. Eles se voltam, pois, para o “passado” a fim de garantirem seu futuro individual e o futuro de sua descendência (KAGAME, 1975, p. 117, grifos do autor).

Orientada em direção ao passado, a concepção africana de tempo move-se para trás mais do que para frente e engloba e integra a eternidade em todos os sentidos, como nos mostram Hama e Ki-Zerbo:

As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que viviam. Assim sendo, a causalidade atua em todas as direções: o passado sobre o presente e o presente sobre o futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e o peso dos acontecimentos passados, mas por uma irrupção direta que pode se exercer em todos os sentidos (HAMA; KI-ZERBO, 1982, p. 24).

Segundo esses autores, o africano está imbuído de uma vontade constante de invocar o passado, vontade essa que constitui para ele uma justificação. Porém, esta invocação não significa imobilismo e não contradiz a lei geral da acumulação das forças e do progresso. Essa condição do africano é ilustrada, pelos autores, por um poema que traduz a invocação mágica do tempo predominante entre os Songhai:

Não é da minha boca

É da boca de A
Que o deu a B
Que o deu a C
Que o deu a D
Que o deu a E
Que o deu a F
Que o deu a mim
Que o meu esteja melhor na minha boca
Que na dos ancestrais.
                 (Hama; Ki-Zerbo, 1982, p. 32)

Na perspectiva assinalada no poema, a viva consciência do passado e sua importância sobre o presente não anulam o dinamismo deste. Daí o verso “Que esteja melhor na minha boca do que na dos ancestrais”. A força do passado deve, assim, estar no presente, para que nele as gerações atuais possam assumir o compromisso integral com o grupo ao qual pertencem, participando lado a lado com os antepassados da construção de tempos melhores para aqueles que vêm chegando.

Hama e Ki-Zerbo explicam que, na África negra, o poder se expressa por uma palavra que significa “a força”. Para eles, a sinonímia assinala a importância que os povos africanos outorgam à força e à violência no desenrolar da história. Explicam-nos os autores que não se trata simplesmente da força material bruta, mas de uma energia vital que reúne uma polivalência de forças que vão da integridade física à sorte e à integridade moral, e que considera o valor ético como uma condição do exercício benéfico do poder. Para Hama e Ki-Zerbo, os meios animistas revelam uma visão elevada do papel da ética na história, pois neles predominam as ideias de que “a ordem das forças cósmicas pode ser alterada por procedimentos imorais” e de que “o desequilíbrio resultante só pode ser prejudicial ao seu autor” (HAMA; KI-ZERBO, 1982, p. 33).

Embora essa visão na qual os valores e exigências éticas se tornam parte integrante da própria organização do mundo possa parecer mítica, Hama e Ki-Zerbo advertem que ela exercia uma influência objetiva sobre o comportamento dos homens e particularmente sobre diversos líderes políticos da África. Por isso, os autores concluem que “se a história é, em geral, justificação do passado, ela é também exortação do futuro”. (HAMA; KI-ZERBO, 1982, p. 33). Assim, afirmam os autores que a consciência do tempo passado é viva entre os africanos. No entanto, ressaltam que esse tempo que tem um grande peso sobre o presente não anula o dinamismo deste, como testemunha a sabedoria popular que, em inúmeros provérbios e contos, coloca em cena chefes despóticos que são punidos no final, extraindo literalmente desse fato a moral da história.

2. “Que esteja melhor na minha boca do que na dos ancestrais”

A escrita de Paulina Chiziane articula o tempo a partir dessa relação com a história apresentada pelos autores citados anteriormente. Por meio de um jogo entre passado, presente e futuro, os romances da autora moçambicana, reiteradamente, assumem a força no presente, propondo situações nas quais as gerações que encenam a atualidade expressam um compromisso com o grupo ao qual pertencem, participando lado a lado com os antepassados da construção de tempos melhores para aqueles que vêm chegando. A título de exemplo, evocaremos dois romances da autora – Ventos do apocalipse (1999) e O alegre canto da perdiz (2008) –, para observar, nos limites que a extensão deste texto nos permite, esse modo de articulação do tempo.

O romance Ventos do apocalipse (1999) coloca-nos em contato com a dura realidade da guerra civil moçambicana. No presente narrativo, o país é assolado pela crueldade da guerra e da seca. A necessidade extrema empurra um grupo de aldeões para uma busca desesperada e inglória pela sobrevivência. Inglória porque a desgraça de que fogem os persegue e até mesmo os precede em sua caminhada, semeando a fome, a doença, a violência e a morte. Sobrepõe-se à imagem da guerra a dos quatro cavaleiros do Apocalipse, que, semeando a destruição por todo o país, deixam pouca margem para a esperança. Apesar dos horrores que lemos na narrativa, a natureza humana não se submete às diversas situações de maldade, inveja e ódio que definem o infortúnio das personagens. Ao contrário, o percurso desesperado dos aldeões é também marcado pelo amor abnegado, pela solidariedade e pela busca incessante por um ideal de paz que lhes permita reconstruir suas vidas arruinadas.

O tempo fundante da narrativa é, portanto, o tempo da guerra civil moçambicana orquestrada pela Frente de Libertação Nacional – FRELIMO – e pela Resistência Nacional Moçambicana – RENAMO. O narrador abre seu relato com um prólogo no qual se lê:

Vinde todos e ouvi
vinde todos com as vossas mulheres
e ouvi a chamada.
Não quereis a nova música de timbila
que me vem do coração?

A convocação realizada no prólogo, pronunciada em tom sacramental, antecipa e prepara a instalação da narração. Esta se realiza por meio de uma outra chamada, feita num tom compassado que não abdica de uma espontaneidade teatral do narrador:

Escutai os lamentos que me saem da alma. Vinde, sentai-vos no sangue das ervas que escorre pelos montes, vinde, escutai repousando os corpos cansados debaixo da figueira enlutada que derrama lágrimas pelos filhos abortados. Quero contar-vos histórias antigas do presente e do futuro porque tenho todas as idades e ainda sou mais novo que todos os filhos e netos que hão-de nascer. Eu sou o destino. A vida germinou, floriu e chegamos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta madura, é época de vindima, escutai os lamentos que me saem da alma. KARINGANA UA KARINGANA (CHIZIANE, 1999, p. 15).

A solicitação apresentada pelo narrador para instalar a narrativa vai além de um chamado. É a expressão de um desejo de compartilhamento, de cumplicidade em relação a algo: o repertório histórico, os códigos sociais, as glórias guerreiras, a genealogia do grupo. Dessa maneira, a narrativa não se constitui somente a partir do presente, mas também se constitui a partir do passado e do futuro. Ela refigura o cosmo na circularidade das vozes nela inscritas. Narrar torna-se, assim, trazer de volta, recolocar o passado no presente, transcriando aquilo que sempre foi, ainda é e permanecerá sendo. Por isso, mais do que contar, a narrativa quer mostrar o relato, num sentido que o de presentar os acontecimentos, repercorrer um caminho, torná-lo evento que se desenrola aos olhos do leitor marcando o presente do qual o narrador fala.

Gian Paolo Caprettini, Guido Ferraro e Giovanni Filoramo (1987), estudando a passagem do mithos ao logos, ressaltam a importância decisiva do caráter repetitivo da narração do mito e assinalam que os indígenas não entendem a exposição do mito como um ato pertencente ao âmbito do contar, mas sim do mostrar. Segundo os estudiosos, aquilo que a um observador estranho parece ser o acionar de uma cadeia narrativa aparece ao indígena como um modo mais para repercorrer, para descrever, do que para atualizar, uma estrutura simbólica preexistente e objetiva através da sua repetição ritual (Caprettini; Ferraro; Filoramo, 1987, p. 94).

Assim, em Ventos do apocalipse, é no presente que os corpinhos “seguem em desfile o caminho do som, transportando cada cabecinha um feixinho de lenha”. Dispostos a recolocar, numa noite sem lua, o cenário ritual da contação de histórias, eles “preparam a fogueira e quando tudo está a postos dizem em uníssono: aqui estamos, avô. Conte-nos bonitas histórias” (CHIZIANE, 1999, p. 16).

A partir dessa colocação da narrativa, o narrador apresenta três mitos. Tomados em seu conjunto, cada mito traz interpretações que, reunidas, vão definir o tema da narrativa a se desenvolver. Na apresentação dos três mitos, o narrador, não tira, antes, durante nem depois do relato, a moralidade do narrado. Interessa-lhe propor a seu leitor-ouvinte, por meio da moralidade da narrativa, uma experiência reflexiva.

Os três mitos contados pelo narrador são: “O marido cruel”, “Mata, que amanhã faremos outro” e “A ambição de Massupai”. Abrindo a narrativa, eles estruturam o movimento projetivo do passado sobre o futuro na articulação do dizer. A saga da personagem Minosse é determinada pelo passado mítico projetado pelos mitos. Por isso, a sua citação logo no início da narrativa. Aí eles funcionam de modo a instalar, na narração, um saber ancestral no qual o narrador apoia sua fala.

O primeiro, “O marido cruel”, é um relato mítico que retoma o tempo da seca nas terras de Mananga e explica as razões dessa seca, suas causas e suas consequências para o homem. De teor moralizante, o relato reforça o valor da solidariedade que deve guiar o comportamento familiar e social diante das adversidades, definindo um modo de vida que se deve reger pelo vínculo do indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades do grupo social no qual está inserido:

Há muitas gerações passadas, os homens obedeciam às leis da tribo, os reis tinham poderes sobre as nuvens, o negro dialogava com os deuses da chuva, e Mananga era terra de paraíso. O verde dos campos era exagerado, e as águas desprendiam-se por todas as ravinas.

Perante as infâmias das novas gerações, os deuses começaram a vingar-se. Enviaram o Sol que queimou as nuvens, as chuvas, os rios e a terra. Das árvores restaram os ramos e troncos nus, o verde ficou amarelo e os prados incendiados apresentavam um aspecto triste e desolador (CHIZIANE, 1999, p. 17).

O segundo mito, “Mata, que amanhã faremos outro”, retoma os tempos das guerras étnicas, no qual as terras de Mananga sofreram com a invasão dos guerreiros Nguni sob o comando de Muzila. A fuga desesperada do povo é o foco central da narrativa. A falta de expectativa do povo é pincelada em cenas de dispersão, desalento, aflição e luta pela própria sobrevivência, graças a medidas de segurança que incluíam a morte de crianças pelos próprios pais:

A caminho do novo abrigo os maridos aproximavam-se delicadamente das esposas com crianças de colo e transmitiam a ordem: mulher, o menino vai chorar e seremos descobertos. Mata este, que depois faremos outro.
Nos momentos de perigo, a solidariedade é a lei: ou morre um por todos ou todos por um (CHIZIANE, 1999, p. 19).

O terceiro mito, “A ambição de Massupai”, ainda referindo-se ao tempo das guerras étnicas em Mananga, retrata a traição de Massupai a seu povo. A bela Massupai mata os próprios filhos e entrega os planos dos guerreiros Chope aos Nguni, movida pela ambição por poder. De fundo moral, esse relato denuncia a traição e a ambição pelo poder, enquanto reforça, também, o valor da solidariedade diante das adversidades:

Massupai enlouqueceu e começou a revolver as sepulturas com as mãos, para ressuscitar os filhos que perdera. Depois fugiu para o mar, e nunca mais ninguém ouviu falar dela. Ainda hoje o seu fantasma deambula pela praia nas noites de luar, e quando as ondas furiosas batem sobre as rochas, ainda se ouvem os seus gritos: sou a rainha! Sou mãe desde o Save até ao Limpopo! (CHIZIANE, 1999, p. 22).

Percebe-se que os três mitos contados pertencem ao imaginário histórico das terras de Mananga. Por isso eles assumem no texto a função de dinamizar a narrativa, projetando os eventos passados sobre a saga de Minosse, a qual vamos acompanhar ao longo do relato. No texto, a voz do narrador, agenciando as citações dos mitos, materializa as sucessivas fases em que vamos observar a heroína Minosse reviver, em sua própria trajetória pelas terras de Mananga, os infortúnios anunciados nos três mitos citados.

A trajetória de Minosse abre-se na época da seca que se instala nas terras de Mananga. Desesperado com a seca e, principalmente, com os prejuízos causados por ela, o régulo Sianga, de quem Minosse é a última esposa, resolve realizar a cerimônia do mbelele para, por meio de uma oferenda aos defuntos, apaziguar os espíritos e trazer a chuva. O planejamento do ritual é seguido de uma série de artimanhas de cunho político que vão reinstalando, na narrativa, o comportamento individualista do marido traçado no primeiro mito, “O marido cruel”. O régulo Sianga, mais do que se propor a resolver os problemas da aldeia, elabora maneiras de recuperar o poder: apropria-se de bens de consumo com as oferendas que o povo doa para a cerimônia ritual; forja ataques à aldeia; alimenta um desejo incestuoso pela filha Wusheni; inicia uma guerra contra o genro Dambuza na qual os próprios filhos se aniquilam e que coloca a população em fuga.

Na sequência do relato, assistimos ao deslocamento dos aldeãos para a Aldeia do Monte, numa caminhada ininterrupta que dura vinte e um dias e vinte e uma noites. Essa travessia reencena a fuga desesperada do povo anunciada no segundo mito, “Mata, que amanhã faremos outro”, quando o cuidado com a segurança do grupo impõe a morte de crianças pelos próprios pais. Nesse espaço recém-chegado, a seca e a guerra martirizam os aldeãos e transformam a Aldeia do Monte em palco de uma nova forma de colonização mental encenada pelos efeitos da ação dos movimentos de ajuda humanitária e suas consequências, tais como a corrupção, a criação de mercados clandestinos que comercializam bens doados, o desemprego, mas também a indolência daqueles que abandonam as machambas para viver de doações, enfim, a proliferação da miséria e a garantia de que as coisas vão permanecer como estão.

Apesar das intempéries vividas, Minosse assume protagonismo na vida das crianças Sara, Mabebene e Joãozinho, órfãos da guerra e do exílio forçado. Sua história, agora, opõe-se à da personagem Emelina, que mata os três filhos para gozar a felicidade nos braços do amante. Por meio do infortúnio de Emelina, o povo de Mananga repercorre o caminho traçado por Massupai no terceiro mito citado na abertura da narrativa – “A ambição de Massupai” –, tornando-o um evento do passado que se instala no presente a partir do qual o narrador fala.

Assim, os três mitos funcionam na narrativa de maneira a dinamizar um jogo entre passado, presente e futuro. Os mitos assumem o caráter de anunciação de um destino de guerra, destruição, sofrimento, traição, humilhação, ódio, superstição, morte, dentre outros, o qual vai ser atualizado no presente da saga da personagem Minosse. No entanto, esses infortúnios vão ganhar nova roupagem, sendo expressos por meio de uma voz que, soberanamente, presentifica na narrativa um saber apocalíptico instalador, no texto, de um outro mito, dessa vez bíblico:

Os cavaleiros são dois, são três, são quatro. São os quatro cavaleiros do Apocalipse, maiwêê!, é tempo de cavarmos as nossas sepulturas, yô! Descem do céu do canto do pôr do sol. São majestosos, fortes, brilhantes como o sol. São invisíveis como o vento e impiedosos como o fogo, yô!, quem tem olhos que os veja!
Há cavaleiros no céu. O som de trombeta escuta-se no ar. Na terra há saraivada de fogo e tudo se torna em Absinto, mesmo os cegos enxergam e os surdos escutam. Há cavaleiros na terra. São dois, são três, são quatro, incendiam a vida com lanças de fogo, cada terrestre que cave a sua sepultura, yô! A vida deteriora-se por todo o lado, há fome e morte nos quatro cantos do mundo (CHIZIANE, 1999, p. 145).

Ao longo da narrativa, deparamo-nos com essa voz premonitória que, a partir do saber bíblico, pinta com as cores fortes do Apocalipse cristão o cenário de guerra, morte e destruição que marca o percurso de Minosse, do ex-régulo Sianga, da jovem Wusheni e do jovem Dambuza, dentre outros, entre o passado tradicional e o mundo moçambicano contemporâneo. Assim é pintada a guerra que põe o povo em fuga, destrói valores tradicionais, negocia valores modernos que deverão reger a sociedade, estabelece antagonismos, mata, aniquila, enfim, gera conflitos que acabam sendo vividos por todos, indistintamente:

Madrugada de lágrimas. Toda gente chora sem saber a quem. Choram pelos mortos, pelos feridos, pelos capturados e por si próprios. A manhã é triste. Os galos não cantam e nem os pássaros saúdam o amanhecer. O Sol faz sua aparição triunfal e ri com um sorriso aberto, ardente, indiferente.
Os cadáveres atingem quase uma centena e os feridos nem se contam. Os mais corajosos estão na azáfama de cuidar dos mortos e dos feridos. O momento é difícil. Tentam resistir, mas toda a resistência é inútil perante a sanha dos cavaleiros do fogo (CHIZIANE, 1999, p. 119).

É interessante lembrar que o mito bíblico se instala na África a partir da colonização. Sua presença no relato resulta do processo híbrido que marca o encontro entre a cultura Ocidental e as culturas autóctones. Sem se sobrepor aos mitos da cultura tradicional, o mito do apocalipse parece remeter ao presente da guerra civil, ao qual é necessário sobrepor os valores tradicionais, a fim de exortar os moçambicanos em relação ao futuro que desejam. Repercorrer o passado tradicional pode ser a saída para o apocalipse que marca o presente de Minosse, do povo da terra de Mananga e, por que não, de um Moçambique assolado pela guerra civil. Assim, história, mito e religião formam enredos inextricáveis na caracterização do caos social, da encruzilhada de grupos beligerantes, do embate entre valores, do conflito entre pensamentos antagônicos que marcam a saga de Minosse como espaço onde o passado histórico e mítico se encontra com o presente e ambos se reúnem para projetar o futuro.

Em O alegre canto da perdiz (2008), os fios narrativos enredam-se em torno da personagem Delfina. Por meio da história de Delfina, Paulina Chiziane retoma temas perturbadores que permeiam o tecido social moçambicano. As filhas de Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta, são o retrato da ambiguidade social que resulta da discriminação racial. Frutos da união de Delfina com José dos Montes, negro assimilado, e Soares, português, respectivamente, essas personagens espelham os caminhos possíveis a negros e mestiços numa sociedade convulsionada pelas diretrizes coloniais e revolucionárias após a independência. A narrativa critica as hipocrisias racistas acolhidas até mesmo na esfera privada da família. Critica, também, a perspectiva do país independente, marcado pela vitória dos assimilados. Na cena narrativa, desenrola-se um presente pós-independente no qual o colonialismo, que já não é estrangeiro, mas negro, é combatido com a proposta de construção de um mundo onde a mestiçagem resulte numa só raça, numa só nação.

O romance abre-se com uma cena inusitada de uma mulher negra que perambula, nua, pelas margens do Rio Licungo: “Uma mulher negra, tão negra, com as esculturas de pau-preto. Negra pura, tatuada, no ventre, nas coxas, nos ombros. Nua, assim, completa. Ancas. Cintura. Umbigo. Ventre. Mamilos. Ombros. Tudo à mostra” (CHIZIANE, 2008, p. 11).

A nudez da mulher causa comoção na população pacata da vila. As mulheres do lugar, em especial, assustam-se com a irreverência da estrangeira, que quebra as normas vigentes ao banhar-se no lugar privado dos homens. Incapazes de compreender a nudez feminina, elas recorrem aos mitos para justificar sua recusa inicial a uma alteridade que ameaça a ordem local: “Imaginavam as plantas a secar e a chuva a cair e a arrasar todas as sementeiras. O gado a minguar. Os galos a esterilizar, as galinhas a não chocar nem ovos nem pintos. (...) Nas curvas da mulher nua, mensagens de desespero” (CHIZIANE, 2008, p. 12).

É em meio a essa mistura de espanto e admiração que tomamos contato com a narrativa de Maria das Dores, mulher solitária, estrangeira, exilada, cujo percurso de vida vai encenar, na obra, as convulsões que marcam a história de Moçambique desde o passado colonial do país até seu presente pós-independente. Em seu “destino de água” (CHIZIANE, 2008, p. 17), que tem no movimento a sua eternidade, Maria das Dores fecunda, com a busca por sua própria identidade, a busca da Zambézia pela identidade nacional moçambicana:

Quem sou eu? Uma estátua de barro, no meio da chuva. Odeio as roupas que me limitam o voo. Odeio as paredes das casas que não me deixam escutar a música do vento. Eu sou a Maria das Dores. Aquela que desafia a vida e a morte a busca do seu tesouro. Eu sou a Maria das Dores, e sei que o choro de uma mulher tem a força de uma nascente. Sei com quantos passos de mulher se percorre o perímetro do mundo. Com quantas dores se faz uma vida, com quantos espinhos se faz uma ferida. (...) Das palavras conheço as injúrias, e dos gestos, as agressões. Tenho o coração quebrado. O silêncio e a solidão me habitam. Eu sou a Maria das Dores, aquela que ninguém vê. (CHIZIANE, 2008, p. 17-18).

O espanto experimentado pelas mulheres do lugar somente se arrefece com a entrada em cena da velha esposa do régulo. Com uma voz que leva as mentes das mulheres a “vadiar na paisagem dos princípios”, ela recorda às mais novas “todas as coisas antigas, dos princípios dos princípios, no conto do matriarcado” (CHIZIANE, 2008, p. 21):

Era uma vez...

No princípio de tudo. Homens e mulheres viviam em mundos separados pelos Montes Namuli. As mulheres usavam tecnologias avançadas, até tinham barcos de pesca. Dominavam os mistérios da natureza e tudo... eram tão puras, mais puras que as crianças numa creche. Eram poderosas. Dominavam o fogo e a trovoada. Tinham já descoberto o fogo. Os homens ainda eram selvagens, comiam carne crua e alimentavam-se de raízes. Eram canibais e infelizes. Um dia, um homem jovem tentou atravessar o Licungo, para saber o que havia. Ia afogar-se quando aparece a linda jovem, sua salvadora, que meteu o homem no seu barco. Como houvesse frio, a jovem tentou reanimar o moribundo com o calor do seu corpo. O homem olhou para o corpo dela, completamente aberto, um antúrio vermelho com rebordos de barro. Ali residia o templo maravilhoso, onde se escondiam todos os mistérios da criação. (...) Os homens invadiram o nosso mundo – dizia ela –, roubaram-nos o fogo e o milho, e colocaram-nos num lugar de submissão. Enganaram-nos com aquela linguagem de amor e paixão, mas usurparam o poder que era nosso (CHIZIANE, 2008, p. 21-22).

Para a velha esposa do régulo, a presença de uma mulher nua ao lado dos homens sinaliza sua vinculação às velhas auroras: “ela veio de um reino antigo para resgatar o nosso poder usurpado. Trazia de novo o sonho da liberdade” (CHIZIANE, 2008, p. 22). Remetendo a esse passado mítico, a mulher nua presentifica, na cena discursiva, um futuro que a velha esposa do régulo enuncia no nível do desejo: o da unidade perdida de terem sido, todos, homens e mulheres, nativos e estrangeiros, esculpidos no barro dos Montes Namuli.

De onde viemos nós? – aguarda a resposta que não vem, e afirma: Éramos de Monomotapa, de Changamire, de Makombe, de Kupula, nas velhas auroras. O poder era nosso. Lembram-se desses tempos, minha gente? Não, não conhecem, ninguém se lembrou de vos contar, vocês são jovens ainda. Unimo-nos aos changanes aos ngunis, aos ndaus, nhanjas, senas. Guerreamo-nos e reconciliámo-nos. Fomos invadidos pelos árabes. Guerreados pelos holandeses, portugueses. Lutámos. As guerras dos portugueses foram mais fortes e corremos de um lado para outro, enquanto os barcos dos negreiros transportavam escravos para os quatro cantos do mundo. Vieram novas guerras. De pretos contra brancos, e pretos contra pretos. Durante o dia, os invasores matavam tudo, mas faziam amor na pausa dos combates. Vinham com os corações cheios de ódio. Mas bebiam água de coco e ficavam mansos e o ódio se transformava em amor. As mulheres se parecem com coco, não acham? As mulheres violadas choravam as dores do infortúnio com sementes no ventre, e deram à luz uma nova nação. Os invasores destruíram os nossos templos, nossos deuses, nossa língua. Mas com eles construímos uma nova língua, uma nova raça. Essa raça somos nós (CHIZIANE, 2008, p. 23-24).

Na perspectiva da esposa do régulo, a nudez de Maria das Dores significava o regresso ao estado de pureza que caracterizava o tempo mítico ancestral. Na perspectiva de Maria das Dores, a nudez representa a fuga de uma história que ela recusa: o abandono do pai negro que parte para não mais voltar; o pai branco que ama sua mãe negra; o nascimento da irmã mulata; a mãe vendendo sua virgindade para melhorar o negócio de pão; o marido que era a fórmula da amargura; a mãe que era a fórmula da traição; a família que “era uma constelação de pretos, brancos, mulatos à mistura, baseada em hierarquias e falsas grandezas”; a cultura que “dita normas sobre homens e mulheres”, na qual “o dinheiro vale mais que a vida”, “o mulato vale mais que o negro e o branco vale mais que todos eles”, e “a cor e o sexo determinam o estatuto de um ser humano” (CHIZIANE, 2008, p. 27). Ambas as perspectivas se encontram, como se verá adiante.

Enquanto Maria das Dores perambula nua pelas margens do rio Licungo, na cidade de Gurué, a trezentos e cinquenta quilômetros dali, outra mulher está acocorada diante das águas, na confluência do rio dos Bons Sinais com o mar do Índico. É Delfina, a mãe de Maria das Dores. Em ato de contrição, Delfina avalia sua vida enquanto lamenta o desaparecimento da filha por vinte e cinco anos:

Tive todos os homens do mundo. Dois maridos, muitos amantes, quatro filhos, um prostíbulo e muito dinheiro. O José, teu pai negro, foi a instituição conjugal com que me afirmei aos olhos da sociedade. O Soares, teu padrasto branco, foi a minha instituição financeira. O Simba, esse belo negro, foi minha instituição sexual, o meu outro eu de grandezas imaginárias, que me deixou para ser teu marido. Reinei. Aterrorizei. O único tormento que sofri nesta vida maldita foi a dor de te ter perdido. Vinguei-me de tudo. Roubei o amor dos homens, deixando frio nas camas das outras mulheres. Destruí famílias. Arrastei muitas virgens para o abismo e fiz fortuna no meu prostíbulo. Tomei todas as poções mágicas contra a pobreza e afastei todas as rugas do meu rosto. Bailei nua nas noites de lua e hipnotizei os homens da terra inteira, cumprindo o meu supremo destino. Sou eu, tua mãe, quem te colocou nas mãos uma herança de espinhos, e icei uma força contra o meu pescoço (CHIZIANE, 2008, p. 44).

Podemos pensar que as duas mulheres encarnam dois polos opostos, mas complementares, no matriarcado encenado por Paulina Chiziane em O alegre canto da perdiz. Esse matriarcado se instala em Moçambique no final do século XIX, com a ocupação militar portuguesa; avança com a implantação da administração colonial e se estende até o final do século XX, com a independência do país, a guerra civil pós-independência e a declaração de paz. Sua genealogia inicia-se com Serafina e sua linhagem inclui Delfina e suas filhas, Maria das Dores e Maria Jacinta.

O tempo fundante da narrativa é, portanto, o tempo desse matriarcado. Nele, a escrava Serafina sabe que, para as negras, “sonhar alto é proibido” (CHIZIANE, 2008, p. 83). Por isso, teme pela filha Delfina, para ela mesma “um ser estranho, um ser novo que se revela”, com uma cabeça que “habita universos desconhecidos” (CHIZIANE, 2008, p. 83) povoados pela ambição de modificar o status que a condição de negra lhe reserva na sociedade colonial. Negra e rebelde, Delfina afasta de si o caminho da mulher resignada e anônima e desafia o sistema colonial: é dela o primeiro marido branco a morar no bairro dos negros e é ela a primeira negra a morar no bairro dos brancos. Personagem ambígua, ela encarna a dubiedade da perdiz de ser, simultaneamente, símbolo da tentação e da perdição (Chevalier; Gheerbrant, 1988, p. 708-709) para metaforizar a região da Zambézia como espaço de nascimento de uma nação moçambicana mestiça. Para Delfina,

Os filhos negros representam o mundo antigo. O conhecido. São o meu passado e o meu presente. Sou eu. E eu já não quero ser eu. Os filhos mulatos são o fascínio pelo novo. Instrumentos para abrir as portas do mundo. A Zambézia ainda é virgem, não tem raça. Por isso é preciso criar seres humanos à altura das necessidades do momento. (CHIZIANE, 2008, p. 230).

De seu casamento com o negro José nasce Maria das Dores, negra, caminhante que vive entre a lucidez e a obscuridade e que, para encontrar a identidade perdida no universo de assimilação criado pela mãe, planta na Zambézia inteira a marca de seu pé até reencontrar-se nos Montes Namuli, o ventre do mundo, o umbigo do céu. De seu casamento com o português Soares nasce Maria Jacinta, mulata, considerada pela mãe um instrumento para abrir as portas do mundo branco, mas que se alia a brancos e a negros para defender a família da escravatura e devolver a Maria das Dores a herança usurpada aos negros pelo processo colonial.

Pela descrição feita, podemos entender que Delfina, encarnando a imagem da perdiz, traduz a maldição da assimilação na Zambézia:

Nós os assimilados remetemos o povo ao sofrimento. Facilitamos a opressão, o exílio, a deportação. O povo lutou, resistiu e a terra é livre. Quando tudo estava pronto assaltamos de novo o comando. São os nossos filhos, nós, os assimilados, que lideram a vida com o saber e a língua dos marinheiros. (CHIZIANE, 2008, p. 332).

Caberá a Maria das Dores recuperar e restituir à Zambézia sua identidade negra perdida. E ela o fará refazendo um caminho perdido, cuja falta instala o seu clã na passagem da condição escrava, iniciada com Serafina, para a condição assimilada, inaugurada e consolidada por Delfina. Repercorrer esse caminho implicará abandonar sua história e buscar os Montes Namuli, o berço da humanidade, onde se unem “todos os que se querem bem para que comam numa só concha e bebam a água da mesma nascente” (CHIZIANE, 2008, p. 326). Lá as dores poderão ser sanadas, as feridas poderão ser curadas, a família poderá reencontrar-se e reunir-se. Lá Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta poderão olhar-se como partes de uma mesma história que ainda está sendo contada.

Repercorrer o caminho que leva aos Montes Namuli implica marcar o presente com a existência mítica do matriarcado, instalando nele uma outra ordem, a qual coloca em perspectiva a ordem segregadora que separa os homens em raças e gêneros:

No mundo onde a mulher manda, os filhos são do José, Abdul, Ndialo, Charles, Lu Xing, Stephany. A família tem peso de vento, é leve e esvoaça como uma nuvem tecida de sangue de diferentes cores, formas e texturas. A alegria e a liberdade são filhas do matriarcado, onde se obedece às leis da natureza porque só a mulher conhece o verdadeiro pai dos filhos que tem. Os homens são simples reprodutores, seres menores. Por isso eles devem pagar por tudo. Pelo lazer, pelo prazer que é concebido pelas mulheres. Pagar pela maternidade e pela dignidade que as mulheres lhes dão, pois sem elas não construiriam família.
No mundo onde o homem manda os filhos são de um só. A família tem peso de chumbo, tecido por laços do mesmo sangue. Mas é um reino de lágrimas e de sofrimento. Com violência, os homens mantêm as mulheres fiéis à paulada. A violência é produto do patriarcado, porque os homens roubaram o poder às mulheres (CHIZIANE, 2008, p. 271-272).

Repercorrer o caminho que leva aos Montes Namuli implica marcar o presente narrativo com a existência mítica do matriarcado, tornado-o um evento no qual “o passado e o presente” beijam-se “nas invisíveis fronteiras do futuro” (CHIZIANE, 2008, p. 334).

3. Uma temporalidade espiralada

Kagame fala-nos de um provérbio que se aplica aos acontecimentos que recomeçam sua marcha ininterrupta no momento em que acreditávamos ter atingido o ponto final da série. Diz o provérbio: “Uma vez que é dia, depois noite, qual será o fim deles?” (KAGAME, 1975, p. 127). Com esse provérbio, Kagame procura explicar a circularidade que marca o tempo africano. Porém, a circularidade não implica a ideia de um círculo que se fecha sobre si mesmo. A ela Kagame acrescenta a imagem da espiral. Para o autor,

a irreversibilidade do tempo funciona como um eixo central em volta do qual giram os ciclos, à semelhança de uma espiral, que dá a impressão de um ciclo aberto. Cada estação, cada geração a iniciar, cada quarto nome dinástico volta à mesma vertical, mas num nível superior. Em outros termos, eles não voltam nem ao mesmo ponto do espaço nem ao mesmo instante, o que corresponde logicamente à nossa individualização da entidade “movimento” (KAGAME, 1975, p. 127, grifos do autor).

Encontramos, nos romances Ventos do apocalipse e O alegre canto da perdiz, aquela vontade de invocar o passado característica do homem africano que sublinhamos nas páginas anteriores e que Kagame traduz por meio da imagem da espiral.

A instalação ritual do passado no presente narrativo, traduzida pela imagem da espiral, torna os romances de Paulina CHIZIANE veículo de transmissão de um dos mais relevantes aspectos da visão de mundo africana, a ancestralidade, que “constitui a essência de uma visão que os teóricos das culturas africanas chamam de visão negra-africana do mundo”, e “faz com que os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, os elementos cósmicos e os sociais interajam, formando os elos de uma mesma e indissolúvel cadeia significativa” (PADILHA, 2007, p. 26-27).

A concepção ancestral africana inclui as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebendo-os a partir de uma complementaridade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir. Como lugar de significância, a ancestralidade nos ensina que os antepassados, são “o caminho para superar a contradição que a descontinuidade da existência humana comporta e que a morte revela brutalmente” (RODRIGUES apud PADILHA, 2007, p. 27). Essa percepção filosófica entrelaça o tempo, a ancestralidade e a morte, originando uma temporalidade espiralada na qual, segundo Martins, “os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação” (MARTINS, 2006, p. 79). Vivenciar o tempo, na perspectiva ancestral, significa habitar uma temporalidade curvilínea que inclui, em sua dinâmica mutacional e regenerativa, as instâncias temporais que constituem os sujeitos.

Como veículo de transmissão da ancestralidade, a escrita de Paulina Chiziane encena essa temporalidade espiralada da qual nos fala Martins. Nos dois romances, o “passado pode ser definido como o lugar de um saber e de uma experiência acumulativos, que habitam o presente e o futuro, sendo também por eles habitado” (MARTINS, 2006, p. 80). No primeiro romance, o tempo das guerras étnicas, no qual as terras de Mananga sofreram com a invasão dos guerreiros Nguni sob o comando de Muzila, habita o tempo da guerra civil moçambicana. Os três mitos que abrem a narrativa explicam fatos da realidade histórica desse tempo passado, transmitindo um conhecimento sobre as guerras étnicas, das quais eles se tornam referência, mas, sobretudo, explicando o impacto negativo que o embate entre forças contrárias tinha sobre a população. Nesse sentido, os três mitos procuram retirar uma conclusão moral e esclarecedora sobre o embate entre as forças antagônicas que disputaram o poder nas guerras étnicas. Reativados no tempo da guerra civil moçambicana, eles projetam esse ensinamento moral sobre o presente conturbado do país. No segundo romance, o tempo mítico do matriarcado habita a pós-independência moçambicana. Na contemporaneidade da pós-independência, a recriação do mito cosmogônico do matriarcado, com sua característica de modo de ordenação do mundo, demonstra a preocupação do narrador em tentar compreender e ordenar a composição mestiça e a diversidade étnica e antropológica do tecido humano e social zambeziano.

A construção narrativa de ambos os romances oblitera a concepção linear e consecutiva do tempo, substituindo a sucessividade temporal pela recriação, pela restituição e pela reativação de uma ação pretérita que é sincronizada no presente, atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge. Nesse movimento simultaneamente retrospectivo e prospectivo, a escrita dos romances encena os embates entre as forças que habitam o mundo moçambicano, mostrando que o tempo “é o lugar no qual o homem pode, sem cessar, lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital” (HAMA; KI-ZERBO, 1982, p. 31).

Nota

1. MOREIRA, Terezinha Taborda. Tempo e história na narrativa moçambicana. In: MIRANDA, Maria Geralda de; SECCO, Carmen Lucia Tindó. (Org.). Paulina CHIZIANE: vozes e rostos femininos de Moçambique. 1. ed. Curitiba: Appris, 2013, v. 1, p. 263-284.

Referências

CAPRETINI, Gian Paolo et al. Mythos/logos. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.) Enciclopédia Einaudi. Lisboa; Imprensa Nacional/Casa da Moeda, v. 12: Mythos/logos, sagrado/profano, 1987. p. 75-104.

CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa Silva e outros. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988.

CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.

CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.

HAMA, Boubou & KI-ZERBO, Joseph. Lugar da História na sociedade africana. In: KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África. I- Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982.

KAGAME, Alexis. A percepção empírica do tempo e concepção da história no pensamento bantu. In: RICOUER, P.; LARRE, C; PANIKKAR, R, et all. As culturas e o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Tradução de Gentil Titton, Orlando dos Reis e Ephraim Ferreira Alves. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1975, p. 102-135.

MARTINS, Leda Maria. A oralitura da memória. In. FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 61-86.

MBITI, John. African religions & philosophy. London: Heinemann, 1969.

PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. 2ª ed. Niterói: EdUFF, Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007.


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*Terezinha Taborda Moreira é Doutora em Letras e Professora Adjunta da PUC Minas. Pesquisadora do CNPq, Nível 2. É autora de O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção moçambicana (2005); e organizadora dos volumes Tramas e traumas: escritas de guerra em Angola e Moçambique (2018); Violência e escrita literária (2020); e Mulheres e guerras: participações femininas em conflitos armados através de textos contemporâneos (2020).

 

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