José Craveirinha: voz e resistência1

 

Luciana Brandão Leal*

Cauda de crocodilo José

 Ao José Craveirinha

[...]

Cauda de crocodilo José
Segura de si, inocente e maliciosa
Capaz de ser funcionário público
Cronista, poeta, corrector de provas
Que busca o amor como se buscasse a dor
E sem desonra sabe que a angústia
Se afoga nas paixões e nos vícios
Caça de carne fresca e álcoois
Na grande aventura existencial
De ser mulato e negro
Que no fundo sabe que a saída
Passa pelos mistérios de cada um
[...]

Virgílio de Lemos & Duarte Galvão

 

José Craveirinha: voz e resistência ao discurso e à violência colonialista


Este ensaio foi apresentado no Seminário em homenagem à proclamação da independência de Moçambique, organizado pela UNILAB, em junho de 2021. Com imensa alegria, recebi este convite para falar sobre o poeta José Craveirinha que é um poeta fundamental para as letras moçambicanas e cumpre uma missão importantíssima de difundir as letras desse país africano em diversos espaços. Estudei, em meu doutorado, o poeta Virgílio de Lemos, cujo poema-epígrafe apresenta José Craveirinha, com título “Cauda de crocodilo José”. Nesses versos, Virgílio de Lemos, poeta contemporâneo a José Craveirinha, busca delinear suas múltiplas feições em versos biográficos.

O título deste artigo – “José Craveirinha: voz e resistência” – pode induzir à compreensão de uma falsa linearidade temática na escrita desse poeta moçambicano. Desfaçamos a hipótese, pois as “modulações temáticas” de Craveirinha culminam na “dificuldade de escolher qual é o rosto mais verossímil do poeta”. (MACIEL, 2010, p. 189). O crítico Emilio Maciel (2010) explica que nos livros Karingana ua Karingana (1974) e Xibugo (1981), emerge uma consciência nacional vindoura; por outro lado, há muito lirismo em livros como Maria (1998). Entretanto, procurando estabelecer vieses para a dita estética da “moçambicananidade”, salienta-se, como se vê pelo preâmbulo deste texto, a voz insistente em construir a “identidade nacional” moçambicana, que elege tanto a memória biográfica como a memória coletiva.

Dentre os poetas moçambicanos que produziram no decorrer do século XX, o nome mais conhecido e difundido, inclusive no cenário internacional, é o de José Craveirinha. Nascido em Lourenço Marques, em 1922, teve seus poemas publicados em diversas línguas: Inglês, Francês e Sueco. Assim como Noémia de Sousa, ele era mestiço, filho de pai português e mãe ronga.

Desde pequeno, Craveirinha fora criado pelo pai, mas não perdeu o contato com a mãe, cujas lembranças aparecem em vários poemas. Cenas corriqueiras, como as das mulheres africanas que carregam suas crianças às costas ou as das baladas ao redor das fogueiras, são evocadas no poema “Mãe”, em que se veem as experiências e as memórias de um tempo imerso nos costumes e na língua provenientes da etnia ronga. Da mãe, o escritor também herdou influências da língua ronga, língua da afetividade, cujas expressões e sons “afluem doces e altivos na memória filial”.

No fragmento do poema “Hino à minha terra”, o escritor moçambicano renomeia os espaços de sua terra e resgata, pelo ritual de reafirmar, em língua ronga, sua identidade mestiça. Dizer os nomes étnicos dos lugares equivale a lutar contra o apagamento desses nomes pela colonização, que os identifica com expressões que nada dizem aos seus habitantes:

(...)

E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E outros nomes da minha terra
Afluem doces e altivos na memória filial
e na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza
Chulamáti! Manhoca! Chinhambanine!
Morrumbala! Namaponda e Namarroi
e o vento a agitar sensualmente as folhas dos canhoeiros
eu grito Angoche, Marrupa, Michafutene, e Zóbuê
e apanho as sementes do cutiho e a raiz da txumbula
e mergulho as mãos na terra fresca de Zitundo.
Oh, as belas terras do meu áfrico País
e os belos animais astutos
ágeis e fortes dos matos do meu País
e os belos rios e os belos lagos e os belos peixes
e as belas aves dos céus do meu País
e todos os nomes que eu amo belos na língua ronga
Macua, suaili, changana,
Xitsua e bitonga
Das negras de Camunguine, Zavala, Meponda,
Chissibuca
Zangoene, Ribáuè e Mussuril.
(...)
                                 (CRAVEIRINHA, 1995, p. 16-19)

O poema lido nos faz lembrar os apontamentos de Zumthor (2010) quando destaca a “materialidade da voz”, que, para ele, “se situa entre o corpo e a palavra, significando ao mesmo tempo a impossibilidade de uma origem e o que triunfa sobre essa impossibilidade” (ZUMTHOR, 2000, p.100). Ao tratar sobre a oralidade, Zumthor (2010) afirma que a voz se constitui, textualmente, como o que "se sonha a escrita; a linguagem sonhada é vocal". Ele defende, também, em sua Introdução à poesia oral o caráter de alteridade da voz encenação textual que se torna evidente pelas leituras de poemas de José Craveirinha. No poema “Hino à minha terra”, especificamente, percebe-se como a “voz ultrapassa a palavra”, na medida em que:

Ela invoca a questão corpórea, já que emana de um corpo – que não é neutro; possui historicidade. Por outro lado, adquire um transcendência material ao ultrapassar o corpo de onde ela provém, uma vez que, como alerta o autor, o fenômeno vocal constitui-se em uma herança cultural, sendo, no inconsciente, uma forma arquetipical, por onde emergem possibilidades simbólicas. Não se duvida que a voz constitua no inconsciente humano uma forma arquetipical: imagem primordial e criadora, ao mesmo tempo, energia e configuração de traços que predeterminam, ativam, estruturam em cada um de nós as experiências primeiras, os sentimentos e pensamentos. Não conteúdo mítico, mas facultas, possibilidade simbólica aberta à representação, constituindo, ao lon
o de séculos, uma herança cultural transmitida (e traída) com, dentro, pela linguagem e os outros códigos que o grupo humano elabora (ZUMTHOR, 2010, p. 10).


A
na Mafalda Leite (2014) observa que as lembranças de Craveirinha também são marcadas pela figura do pai português – metáfora da linhagem europeia – o que o leva a desmistificar o “outro”, concebendo-o não como inimigo, mas como um aliado. Assim, garante-se a possibilidade de interação entre as diferentes culturas. A associação entre as figuras materna e paterna traz a experiência da etnia ronga e a da descendência portuguesa para constituí-lo como um “semiclaro”, “seminegro”. No poema “Ao meu belo pai ex-imigrante”, de Karingana ua karingana (1995), temos a exaltação das diferenças que o constituem:

E na minha rude e grata
sinceridade filial não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes de meu sangue.
                         (CRAVEIRINHA in SAÚTE, 2004, p. 88-92)

Nesses versos, o embate ao colonialismo mistura-se ao reconhecimento da identidade portuguesa-africana de um “semiclaro para não ser igual a um branco qualquer” e “seminegro para jamais renegar” a cultura dos Zambezes em seu sangue. Como afirma Ana Mafalda Leite: “O drama da nascença mestiça, a ambivalência de cor, incentiva-o a uma opção, assumida conscientemente, pela sua terra, Moçambique”( (LEITE, 1991, p. 17).

O eu lírico não despreza as imbricações que o fazem diferente, um “novo moçambicano”. A partir da origem biológica, Craveirinha confronta a matriz africana, metaforizada pela origem “no ventre de uma tombasana”, e os elementos portugueses, “ibéricas lembranças de fados e broas”. Mesmo sem se esquecer da seriedade dos conflitos que o cercam, Craveirinha desmistifica a ideia de incompatibilidade e defende que a verdadeira identidade moçambicana provirá da conciliação das diferentes culturas:

E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura do velho imigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai, ex-português. [...]
                       (CRAVEIRINHA in SAÚTE, 2004, p. 88-92)

A experiência de Craveirinha é por ele elaborada e convertida em matéria de poesia. A descrição que se extrai desses versos isenta o pai do peso negativo de ser um homem da metrópole. A figura paterna simboliza não o colonizador, mas os portugueses pobres e trabalhadores que também são vítimas da exclusão econômica e social como o “colono tão pobre como desembarcaste em África”. O fato de já ter nascido marcado pela mistura de raças aflora em sua produção poética, direcionando o seu olhar sobre a sociedade em que vive. O trânsito pelos diferentes espaços que é encenado no discurso de José Craveirinha, resulta na admirável capacidade de compreender as diferenças, para concluir que o hibridismo cultural está na síntese da identidade moçambicana.

As escolhas temáticas e estilísticas revelam a necessidade de se retomar o terreno cultural que foi “branqueado” pelos anos de ocupação. Como contradição, traz à cena o universo da exclusão e, com ele, os valores rejeitados pela hegemonia eurocêntrica. A natureza violenta da ocupação traz, como consequência, a identificação com a soberania da metrópole e as formas de imposição são as mais agressivas: o chicote, a palmatória e o trabalho forçado.

Sabe-se que o olhar etnocêntrico ocidental reforça a visão excludente sobre o africano e seus descendentes, tanto nos séculos pelos quais se estendeu a colonização quanto nos dias de hoje. Em terras africanas, e no caso específico de Moçambique, tal convicção fortaleceu a organização hierárquica da sociedade, baseada no conceito de “raça” e da suposta “superioridade” dos brancos sobre os negros.

Até os primeiros anos da década de 1960, afirma Cabaço (2007), em Moçambique era comum os “patrões” impingirem punições físicas aos empregados domésticos. Em ocasiões cotidianas, as donas de casa portuguesas castigavam seus criados enviando-os à estação de polícia com um bilhete para explicar o erro cometido, solicitando punição imediata. O criado devia retornar com o bilhete à patroa, especificando qual foi o castigo aplicado. O poeta José Craveirinha faz dessa situação corriqueira do dia-a-dia colonial mote para um de seus poemas-denúncia, escrito em 1954:

Bem fardados de avental
obedientes nós até vamos a correr
depressa entregar o papelinho da patroa.
E chegamos à esquadra
ao posto
ou ao comissariado todos ofegantes
e nos ouvidos a ordem: - Vai depressa rapaz não demores ouviste –
E o polícia que veio com a terceira rudimentar
lá da aldeia talvez minhota
talvez transmontana tanto faz
depois de soletrar bem soletrado o papelinho
entra imediatamente no esquema
chama o sipaio e manda somar
somar bem os algarismos com força
dando-nos com uma palmatória
algumas lições de aritmética
com 20 na mão esquerda
e mais 20 na mão direita
                                            (CRAVEIRINHA, 1954, p.84)

No poema de Craveirinha, evidencia-se o poder de cada colono sobre os colonizados. Uma situação cotidiana, entre tantas outras, exemplifica as relações de dominação e reforça o poder da sociedade branca no território moçambicano. Como afirma Cabaço, a existência, em Moçambique, de uma classe escravocrata branca que, embora pouco numerosa, era detentora do poder político e econômico, cujas arbitrariedades sustentavam (e sustentam) suas vidas luxuosas: “O Estado continuava, com efeito, norteado pela teoria da soberania. O poder centralizado assegurava as condições para a exploração econômica dos recursos humanos e naturais” (CABAÇO, 2007, p. 57).

A denúncia do sofrimento e da exploração revela o drama da condição humana face às relações díspares que o mundo colonial engendra. Nesse espaço cindido, Craveirinha usa o seu talento para lavrar a palavra poética, a fim de desvelar e denunciar o mundo de horror que o cerca.

Rita Chaves (2005) argumenta que a divisão entre os dois mundos que a obra registra (e a vida comprova) poderia ter gerado incompreensão e ressentimento, visto que, em Moçambique, como em qualquer outro espaço colonial, as relações sociais estavam assentadas sobre a segregação. Tratando dessa cruel realidade, a pesquisadora explica:

As expressões ‘cidade de cimento’ e ‘cidade do caniço’, frequentemente utilizadas na literatura, traduziam uma separação de espaços socioculturais ainda muito mais rígida que o par ‘musseque / cidade do asfalto’ tantas vezes presente na literatura angolana” (CHAVES, 2005, p. 144).

A trajetória histórica de Moçambique se mistura à de José Craveirinha, agregando novos sentidos à expressão comumente usada para designar os artistas e intelectuais que se mantiveram nos territórios colonizados, resistindo a tantas pressões e repressões: “os que fizeram a travessia no deserto” (CHAVES, 2005, p. 144).

Do ponto de vista estético, os poemas são marcados pela tradição oral, traço comum nas produções dos autores aqui estudados, uma vez que a matriz oral se relaciona intimamente com a tradição moçambicana. A valorização da linguagem coloquial traz à cena enunciativa figuras e espaços marginalizados. O texto estabelece relação concreta com a vida urbana e as figuras excluídas da sociedade transitam pelos versos de Craveirinha: prostitutas, trabalhadores braçais, camponeses, pobres e miseráveis retratados em seus espaços periféricos, nos subúrbios e nos guetos da antiga Lourenço Marques. Homens e mulheres humilhados e penalizados pela desigualdade social, a quem tudo falta, mas sobram doses de humanidade.

Ao valorizar o cotidiano dos desvalidos, Craveirinha se envolve com outros hábitos e valores, para apresentar diferentes formas de estar no mundo. Para Rita Chaves, este é o dilema crucial do autor moçambicano: acomodar-se em seu lugar social privilegiado ou se empenhar na luta pelos desfavorecidos. Essa estudiosa, então, explica:

Ele escolheria a África. Como cidadão e como escritor. Porém o que mais surpreende é que a decisão, clara e irrevogável, se faz numa atmosfera de serenidade, pautada pela consciência de quem se sabe resultado de um par que pode ou não ser inconciliável. (CHAVES, 2005, p. 142).

Craveirinha opta pelo espaço dos excluídos, mas não reitera a exclusão em sua escrita literária. Até porque, o princípio da exclusão é a força motriz do mundo colonial, com o qual ele não é conivente. Essa postura conciliadora se manifesta em muitos aspectos, a começar pela relação entre as línguas que compõem o seu universo cultural. Em entrevistas, ele assegura que gostaria que as sociedades moçambicanas fossem bilíngues. Um apaixonado pela língua portuguesa, que declarava também seu amor pelas línguas africanas. Tais imbricações podem ser vistas no poema do livro Karingana ua karingana:

Amigos:
As palavras mesmo estranhas
se têm musica verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs
 

E eis que num espasmo
De harmonia como todas as coisas
Palavras rongas e algarvias ganguissam
Neste satanhoco papel
E recombinam em poema.
                  (CRAVEIRINHA, 1982, p. 128)

Para Maria Nazareth Soares Fonseca (1997), na escrita de José Craveirinha, permeada por sons e visualidade, florescem as tradições sonoras das culturas africanas. As batidas do tambor ecoam com a “consumação da grande festa do batuque”. Na medida em que se faz denúncia social, o caráter funcional torna-se característica marcante da poética do moçambicano e traz, juntamente com outras vozes nacionais, a poética da transgressão, que se vale da língua do colonizador para bradar contra as agruras da colonização.

Craveirinha apostou no projeto de independência e a sua “moçambicanidade” não pode, em momento algum, ser contestada. A matriz africana se manifesta em poemas como “África”, do livro Xibugo – que também representa o grande tambor – trazendo o que de mais significativo foi produzido dentro da estética da Negritude. Mais uma vez, a África torna-se arquétipo de mãe:

[...]
Em meus lábios grossos fermenta
A farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
E meus ouvidos não levam ao coração seco
Misturada com o sal dos pensamentos
A sintaxe anglo-latina de novas palavras [...]
                                       (CRAVEIRINHA, 1995, p. 20)

Os poemas de Xibugo – palavra proveniente da língua ronga que também faz alusão a uma dança tradicional – elegem a temática da reivindicação racial. Muitos versos enaltecem as características e a beleza física do povo africano, como os “lábios grossos” de “África” ou os “cabelos curtos e crespos” de “Manifesto”, no qual se lê: “Oh! Meu belos e curtos cabelos crespos / e meus olhos negros / grandes luas de pasmo na noite mais bela / das mais belas noites das terras do Zambeze [...]”.

Essas mesmas questões raciais e a relação de exploração do homem negro são tratadas em um de seus poemas mais conhecidos, “Grito Negro”, que direciona, também, a leitura de outros textos do autor:

Eu sou carvão!
E tua arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!
 
Eu sou carvão
E tu acendes-me, patrão
Para servir eternamente como força motriz
Mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão
 
Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu Irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!
         (CRAVEIRINHA in SAÚTE, 2004, p. 70-71)

A carga simbólica atribuída à palavra “carvão” está no centro da compreensão desse poema. Poderia parecer banal a personificação expressa em “eu sou carvão! ”, mas a força do texto está justamente na polissemia que essa palavra evoca, tornando possível associá-la, a princípio, à cor negra do trabalhador e ao combustível que move as máquinas industriais, como metáfora do trabalho incessante para enriquecer os patrões.

O enunciado quebra a expectativa dos leitores, por apresentar um ponto de tensão que determina a mudança no teor do discurso. Nas primeiras estrofes, tem-se a dicção de enfrentamento, de embate, realçada pelo uso do vocativo e pela pontuação exclamativa. Como se o sujeito poético reconhecesse a sua condição de explorado e se revoltasse contra ela. “E me fazes tua mina, patrão! / Para servir eternamente como força motriz / Mas eternamente não”. Nesse momento, o tom do discurso muda, parecendo evocar uma voz mais resignada que reconhece: “Eu sou carvão / e tenho que arder, sim.”. Entretanto, os próximos versos redirecionam a leitura: “E queimar tudo com a força / o fogo da minha combustão”. Aqui, a força do “carvão” assume a simbologia destruidora e o alcance dessa violência (vista sob a ótica de Fanon) está indefinida pelo pronome “tudo”. O leitor é, então, convocado à reflexão e à crítica social que o texto busca suscitar; sobretudo, no que diz respeito às relações raciais e de exploração.

Reafirmando sua adesão aos preceitos da “moçambicanidade”, o trabalho poético extrapola o labor estético com o texto literário, concebendo-o como arma de luta política e de denúncia social. O próprio título, “Grito negro”, já suscita as questões raciais que, como defende Fanon (2005), estão no cerne da engrenagem colonial.

Outro texto emblemático, “Quero ser tambor”, exterioriza o anseio primordial da lírica desse escritor moçambicano:

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

                                    (CRAVEIRINHA, 1982, p. 124)

 

A metáfora aí evocada possibilita algumas interpretações que são congruentes: o tambor tomado como instrumento utilizado nas guerras, facilitador da comunicação, devido à sua grande potência sonora. As batidas dos tambores que ressoam em festividades coletivas, cânticos e danças de origem africana. O instrumento (também denominado atabaque) é utilizado em rituais religiosos, nos quais assume a função sagrada de (re)ligação dos homens às divindades; é metáfora e metonímia do homem que o toca: voz, cântico, elo cultural e protesto. Os significados atribuídos a esse instrumento convergem para a expressão cultural da voz, do som, do barulho, da comunicação. “Ser tambor” é ser livre para praticar costumes africanos e assumir a identidade cultural da nação moçambicana, pensada como metonímia de outras nações africanas. Ao dizer que deseja ser “corpo e alma só tambor”, a imagem torna-se alegoria do poeta, arauto de seu povo, que pretende renovar o seu canto e alcançar o maior número possível de pessoas.

A busca da identidade verdadeiramente moçambicana e a reivindicação dos ideais da negritude, influenciada, sobretudo, pelas teorias pan-africanistas, tornam-se explícitas nestas passagens: “só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra [...] / só tambor rebentando o silêncio amargo de Malafala”. Esses versos dão também a noção de um canto que se repete insistentemente, já que o “tambor velho de gritar” pressupõe um exercício em continuidade.

A sonoridade dada pela repetição das expressões “ser tambor / só tambor” cadencia o ritmo do poema, simulando, pelos pares de versos, as batidas desse instrumento. “Ser tambor” permite a manifestação pública do sujeito, e sua voz torna-se denúncia e clamor pela identidade moçambicana.

Rita Chaves analisa as temáticas que movem o autor de Xibugo e afirma que ele não hesita em descrever a crueldade e os sinais pungentes da desagregação que testemunha e denuncia:

Incansável na luta contra o colonialismo, Craveirinha ergue seu canto agora contra a nova escuridão que insiste em vitimar os que não podem escolher os caminhos. As catanas, os machados, as balas, as rajadas, as explosões, as minas compõem o menu dessa orgia de destruição que segue asfixiando a vida. Secos e ásperos, seus versos guardam, contudo, o frescor do compromisso que nem mesmo o cansaço e uma boa dose de desencanto fizeram desbotar (CHAVES, 2005, p. 159).

Na escrita de Craveirinha, sobressai o “lirismo indignado” (LISBOA, apud MENDONÇA, 1984, p. 24), como bem definiu Eugênio Lisboa. O discurso se contrapõe ao cotidiano de exploração, per perante o qual o sujeito poético se indigna. O grito de revolta ganha vozes outras e vem de lugares outros, amplificando-se a ponto de fazê-lo ressoar, como batidas de tambor, em todos nós, leitores.

Como se vê, dentre os poetas moçambicanos empenhados em escrever a História extraoficial, aquela que não foi contada pelo discurso dominante, destacam-se Noémia de Sousa e José Craveirinha, cujos “poemas verticais” e de combate inquietam seus leitores.

Imbuído do mesmo sentimento político e social de seus contemporâneos, em “Uma temática negra”, Virgílio de Lemos, ortônimo, suscita os fantasmas da História que sobrevivem na poesia e que não estão nos livros didáticos: “Procura nos fantasmas / da ficção e da poesia / e terás a resposta / dos oprimidos e mortos” (LEMOS, 2009, p. 403-406). A literatura tematiza, assim, fatos que não foram contemplados pela história oficial, recobrando o que poderia ter sido dito e não foi: “querias tu repetir / que o negro foi escravo / mas tudo acabou?” (LEMOS, 2009, p. 403-406). Os versos sinalizam para outras formas de se lerem os textos oficiais, além de transmitirem importantes revelações históricas, de supreendente profundidade e amplitude, como a que o eu lírico denuncia nestes versos: “Mudam de nome os ciclos da escravatura / mas a prática perdura” (LEMOS, 2009, p. 403-406). Em longo poema, Virgílio de Lemos apresenta os verdadeiros “historiadores” da nação, os artistas e poetas moçambicanos, que cantaram a história de sua terra:

IV

[...]
Poemas de Noémia e do Zé
contos do Honwana e da Ceita
Eugénios e Polanahs
música do Xafurdino e Daíco
ricardos, ruis e fonsecas
o ciclo da cólera
contra o assimilado
contra a corrida
pra acumulação
a transferência do lucro
a delapidação d’almas
e da estética
porque a ética não existia
na exploração

(1945 / 1960)
tínhamos “notícias do bloqueio”
e bloqueio de notícias
censura de brandos e msahos
aqui
e lá antologias
e Margaridos da Casa
do Império
(1960 / ?)
puta que pariu
a guerra
e o que é teu
sem ser meu
sendo raiva.
         (LEMOS, 2009, p. 403-406)

Nesse fragmento, abordam-se questões da colonização e da ocupação violenta do território moçambicano, bem como a exploração do homem negro. Os escritores citados – Noémia, Zé, Rui (Knopfli, Nogar e Noronha), Luís Bernardo Honwana, Eugênio (Lisboa, Fonseca), dentre tantos outros artistas – estão empenhados em escrever a História desse país que fora silenciada pelo discurso opressor, revelando fatos que a história oficial não contemplou. Apenas por intermédio da Arte pode-se escrever a nova História, a partir da reconstituição de “testemunhas” e “relatos” sobre a sociedade, as mentalidades e as ideologias de uma época.

Nota

1 Este texto foi publicado, inicialmente, na Revista Letras & Letras, da Universidade Federal de Uberlândia, com título “A performance poética de José Craveirinha”. Referência: LEAL, Luciana Brandão. A performance poética de José Craveirinha. Letras & Letras, [S. l.], v. 36, n. 2, p. 266–284, 2020. DOI: 10.14393/LL63-v36n2-2020-15. Posteriormente, a convite da UNILAB, o texto foi parcialmente modificado e apresentado no evento, que aconteceu em junho de 2021, em comemoração à Proclamação da Independência de Moçambique.

Referências

CABAÇO, José Luís de Oliveira. Moçambique: identidades, colonialismo e libertação. Orientador: Kabengele Munanga. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: <www.teses.usp.br/teses/disponiveis/.../TESE_JOSE_LUIS_OLIVEIRA_CABACO.pdf>. Acesso em 04 abr. 2016.

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.

CHABAL, Patrick. Vozes Moçambicanas: literatura e nacionalidade. Tradução de Ana Mafalda Leite. Lisboa: Vega, 1994. (Coleção Palavra Africana)

CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia (Org.). Marcas da diferença - as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

CRAVEIRINHA, José. Karingana ua Karingana. Lisboa / Maputo, Edições 70 / Instituto do Livro e do Disco, 1982.

CRAVEIRINHA, José. Xibugo. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos - AEMO, 1995.

CRAVEIRINHA, José. Antologia Poética. Org. Ana Mafalda Leite. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Bordas, margens e fronteiras: sobre a relação Literatura e História. Scripta, PUC Minas, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 91-102, jul./dez. 1997

LEITE, Ana Mafalda. A poética de José Craveirinha. 2. ed. Lisboa: Vega, 1981.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas. Lisboa: Colibri, 1998.

LEMOS, Virgílio de. Jogos de prazer. Virgílio de Lemos & heterónimos: Bruno Reis, Duarte Galvão e Lee-Li Yang. Organização do volume e prefácio de Ana Mafalda Leite. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2009.

MACIEL, Emilio. “Bibliografia de Jose Craveirinha”. In: CRAVEIRINHA, José. Antologia Poética. Org. Ana Mafalda Leite. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 189-198,

MENDONÇA, Fátima. Literatura moçambicana: a história e as escritas. Maputo: Faculdade de Letras / Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mandlane, 1989.

SAÚTE, Nelson (Org.). Nunca mais é sábado: antologia de poesia moçambicana. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1999.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

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* Luciana Brandão Leal é Doutora em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Atuou como investigadora visitante na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES de doutorado-sanduíche. Mestra em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Autora dos livros: Virgílio de Lemos e heterônimos: poesia em trânsito e Descolonizar a palavra: poesia moçambicana do século XX, ambos em fase de editoração. Professora do 3º Grau - Nível Adjunto II - da Universidade Federal de Viçosa (atuando no campus Florestal). Coordena projetos de pesquisas sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e sobre Artes Visuais, registrados na Universidade Federal de Viçosa. Membro do grupo de pesquisas GEED - Grupo de pesquisas em estéticas diaspóricas. Compõe o corpo editorial do literÁfricas - UFMG (NEIA/GEED)

 

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