Viagem e exílio em Campo de trânsito
de João Paulo Borges Coelho
Wellington Marçal de Carvalho*
E voltar atrás era a pior coisa que se podia jamais fazer
porque não era preciso dizer que a gente se sentia fora do lugar
já que as coisas mudam sempre com o tempo.
James Joyce
Ulisses
João Paulo Constantino Borges Coelho nasceu na cidade do Porto em 1955, filho de pai português e mãe moçambicana. Transferiu-se com os pais para Moçambique e adquiriu nacionalidade desse país. De acordo com Couto (2007), João Paulo leciona História contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane. Sua primeira obra literária foi publicada em 2003, intitulada As duas sombras do rio. Em 2004 publicou As visitas do Dr. Valdez com o qual foi declarado vencedor do prêmio José Craveirinha. Publicou várias outras obras nos anos seguintes.
Acerca de Campo de trânsito, Mendonça (2007) afirma que Borges Coelho registra o narrador da trama como uma entidade privilegiada devido a seu caráter onisciente, com destaque para a expressão linguística de cristalina limpidez, avessa a exibições exóticas.
A via dolorosa de J. Mungau
O percurso de leitura que ora se apresenta, obviamente, é plenamente arbitrado, recortado. Nele o foco será lançado nas passagens da caminhada de J. Mungau, a personagem principal do romance, nas quais ficam evidentes questionamentos desse sujeito com relação à subtração, repentina, de sua liberdade. Bem verdade que tratar-se-ia mais acertadamente de uma “pseudoliberdade”, constatação que uma leitura corriqueira permitiria averiguar.
A viagem involuntária de J. Mungau inicia-se quando, subitamente: “Vêm buscá-lo às cinco da madrugada. Três pancadas secas na porta, depois mais três.” (COELHO, 2007, p. 7)1. Ao que ele responde imprimindo aquiescência. Logo é informado que está detido. Entre a torrente de pensamentos que lhe vêm à cabeça, questiona: “Por ordem de quem?” (p. 10). A partir dessa pergunta crucial o autor já participa ao leitor um ponto de ancoragem da vida dessa personagem, cuja resposta nunca lhe será dada, nem acerca do mandatário e muito menos sobre a motivação dessa repentina prisão. “Prosseguem pelo passeio até à esquina onde os aguarda um velho automóvel estacionado com os mínimos acesos...” (p. 12). Mais uma vez se pergunta “De que será que me acusam?” (p. 11-20).
Enquanto a viatura segue seu caminho pela cidade ainda escura J. Mungau observa que os vultos escuros que se movem, “cada vez em maior número, como se a escura individualidade desse lugar a um acinzentado colectivo desenhando-se contra o fundo leve e frio da madrugada (a solidão acomoda-se ao escuro, só a madrugada nos junta)”. (p. 13). J. Mungau, ao entrar na viatura, que logo é posta em movimento, percebe o início de mais um dia aparentemente normal para os vultos cada vez em maior número e, então, indaga-se o motivo de ter sido, tão inexplicavelmente, tragado de seu apartamento. Nessa passagem aponta-se uma incipiente tomada de consciência, por parte dessa personagem, que algo estranho à sua vontade lhe foi designado. E sem o seu consentimento. Seus protestos, também, não foram ouvidos. Pode-se constatar, aqui, um resquício do que Bauman (2005, p. 45-46) denomina como sendo o senso de perda da identidade e o consequente embate para seu estabelecimento:
Mas mesmo as pessoas a quem se negou o direito de adotar a identidade de sua escolha (situação universalmente abominada e temida) ainda não pousaram nas regiões inferiores da hierarquia de poder. Há um espaço ainda mais abjeto – um espaço abaixo do fundo. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas que têm negado o direito de “reinvidicar” uma identidade distinta da classificação atribuída e imposta. Pessoas cuja súplica não será aceita e cujos protestos não serão ouvidos, ainda que pleiteiem a anulação do veredicto. São as pessoas recentemente denominadas de ‘sub-classe’: exiladas nas profundezas além dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior do qual as identidades (e assim também um lugar legítimo na totalidade) podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas... Você é excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas. (BAUMAN, 2005, p. 45-46 – grifo do autor).
Ao chegar ao Comando, o carro transpõe o pátio e estaciona perto do edifício central. No período em que J. Mungau permanece nesse local, a parte das instalações para onde é levado funciona muito bem como ilustração do conceito de não-lugar apresentado por Augé como
um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar... espaços que não são em si lugares antropológicos e que... não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a ‘lugares da memória’, ocupam aí um lugar circunscrito e específico. Um mundo... onde se multiplica, em modalidades luxuosas ou desumanas, os pontos de trânsito e as ocupações provisórias... um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero... o espaço extraterrestre para uma comunicação tão estranha que muitas vezes só põe o indivíduo em contato com uma outra imagem de si mesmo. (AUGÉ, 1994, p. 73-75).
Como habitante provisório de uma das celas do Comando, J. Mungau tergiversa:
Se construíssem prisões em prédios altos talvez ficasse facilitada a vida dos detidos... Olhar para fora, a partir da cela, é muito diferente e mais pequeno, resumido ao pátio do Comando... Talvez que a visão das alturas facilitasse uma mais ampla perspectiva de um qualquer futuro. (p. 19).
Não estaria aí camuflada a ideia do panoptismo? O Panóptico é um sistema de vigilância perfeito imaginado pelo filósofo e economista Jeremy Bentham no século XVIII. A ideia original foi assim analisada pelo filósofo Michel Foucault:
O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas; cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. (...) O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. (...) A visibilidade é uma armadilha. (FOUCAULT, 1977, p. 177).
Nessa estrutura panóptica, mais um passo do processo de deslocamento forçado experenciado por Mungau é realizado. O espaço ínfimo em que foi armazenado foi adrede planejado para possibilitar o solapamento da identidade, através da incerteza, quanto ao significado do que é permitido mirar a partir do interior da cela. Cria-se uma ânsia quanto ao futuro e um dilaceramento das referências, já quase inexistentes, de localização espacial.
E emerge a renitente pergunta: “Por alguma razão me trouxeram para aqui. Alguma informação que pensassem que eu tinha.” (p. 23). Seguida de “Não tenho ao menos o direito de saber as razões do meu despedimento [do emprego]?” (p. 24).
A resposta, ou melhor, a falta de uma, já é previsível.
Horas depois a “cela abre-se de rompante e gritam-lhe que saia... inunda-o por dentro uma grande apreensão”. (p. 27-28). O mesmo homem que o buscou em sua casa o conduz novamente para um automóvel que os conduzirá para o que J. Mungau julga ser o destino da turma de detidos da qual agora é integrante. Ao fim dessa fase da jornada chegam ao campo de trânsito. Assim ele é visto por J. Mungau:
De um dos lados do descampado, um pequeno conjunto de casas da administração – três ou quatro, não mais – que, sabê-lo-á depois, incluem as residências das autoridades e o gabinete do Director. Do outro, uma encosta que desce suavemente em direcção ao rio. No ínicio dessa encosta, a camarata dos guardas e várias filas de casinhas de zinco, todas iguais. Não há árvores a não ser um renque de uma espécie de choupos lá em baixo, junto ao rio. “Para que tudo o que ocorra no campo possa estar à vista dos guardas, pensa”. (COELHO, 2007, p. 28-29 – grifo nosso).
Mais uma vez constata-se uma semelhança com o dispositivo panóptico já abordado. Aqui, também, a impressão de visibilidade é ardilosa.
Quanto às normas e funcionamento do campo de trânsito, cumpre dizer que “duas vezes por dia fazem os prisioneiros longas filas de prato de esmalte na mão para ganharem o direito à ração. Ao alvorecer para receber umas papas de aveia fumegantes, ao anoitecer para as receber de novo”. (p. 44). J. Mungau rapidamente
percebe que para sobreviver no campo “a adaptação é um factor quase decisivo”. (p. 51).
Na dissipação das identidades, ou do que ainda restou delas, é aplicada mais uma medida tão logo os novos ‘moradores’ do campo de trânsito aí chegam. Tal mecanismo consiste no anúncio, feito por um guarda, do nome de cada um. “Assim que é nomeado o detido dá um passo em frente e atravessa o risco para o outro lado. Ao mesmo tempo que o faz, o Bexigoso [o que chefia a missão de detê-los] também em voz alta... atribui-lhe um número”. (p. 42). J. Mungau é reduzido ao número ‘15.6’ – quinze ponto seis.
As sutilezas não cessam por aqui, pois “...como lhes explica o Bexigoso, uma vez entrados no campo de trânsito e tendo recebido o número correspondente, deixam de ser detidos e passam a ser prisioneiros”. (p. 43).
A aquisição do novo nome pode ser interpretada como mais um golpe no apagamento identitário de J. Mungau, bem como, daqueles que ingressam no campo de trânsito. Tal como confidencia Érico Veríssimo (1985), o estratagema operado pelo assassino histórico Goering é de espécie semelhante ao método de Bexigoso. O efeito almejado é obtido na substituição do nome de batismo pelo símbolo algébrico, tornando os novos habitantes do campo mais apropriados aquele novo mundo.
Nessa etapa da viagem de J. Mungau, do não-lugar para o lugar indefinido, ele será convocado várias vezes pelo Diretor do Campo de trânsito. Nas primeiras vezes esses chamados detonarão em 15.6 alguma esperança de ver sanada a dúvida que o persegue acerca de sua estada nessa situação. É o que se passa a analisar.
Nesse joguete em que 15.6 se vê tragado destaca-se o artifício que ele utiliza para se proteger do estranhamento em que vive. Situação de exilado mesmo. Como apresentado por Said:
Para o exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro ambiente. Assim, ambos os ambientes são vívidos, reais, ocorrem juntos como no contraponto. Há um prazer específico nesse tipo de apreensão, em especial se o exilado está consciente de outras justaposições contrapontísticas que reduzem o julgamento ortodoxo e elevam a simpatia compreensiva. Temos também um sentimento particular de realização ao agir como se estivéssemos em casa em qualquer lugar. (SAID, 2003, p. 59-60).
15.6, por várias vezes, aceita a beberagem que lhe é oferecida pelo Vendedor de Chá. O líquido adquire certa aura de elixir milagroso, pois a sua ingestão dispara um processo ilusório, mesmo que em tempo diminuto, de alheamento da condição não-humana que vive a maioria dos prisioneiros do campo de trânsito. O efeito do chá ainda é potencializado através da transposição, subconsciente, do 15.6 para o âmbito do palco de um teatro. Nesse lugar é possível exercitar o faz-de-conta, talvez com a esperança de atenuar, ainda que por via da alucinação, a distância que separa os exilados do seu passado. Muito embora, desse passado, muito pouco foi dado a conhecer.
Sobre a liberdade, melhor é não dispensar tempo nesses assuntos, pois como lembra o Diretor: “Este é um campo de trânsito, o que significa que cedo ou tarde quem cá está acabará por ser transferido.” (p. 83). E como quem decide para o que servirá cada prisioneiro, o Diretor agracia 15.6 com uma missão, qual seja, a de visitar os demais campos e produzir um relatório sobre o que irá encontrar por lá para encaminhá- lo ao Diretor. O que lhe confere uma mudança de estatuto “antes da ponte Mungau era prisioneiro; depois dela, um enviado com uma missão. Sente até que os seus acompanhantes deixam de ser guardas para passarem a ser uma espécie de protectores”. (p. 87).
Nesse ínterim 15.6 irá conhecer o Campo Antigo, que existe, segundo o entende o Chefe da Aldeia “para a expiação do crime da memória, é esta a qualidade que mais preza em si. É ela que o mantém vivo”. (p. 96). E visitará também o Campo Novo.
Após seu retorno para o Campo de trânsito 15.6, sobressaltado, percebe que há tempos já não mais se questiona sobre o motivo segundo o qual foi retirado do seu apartamento e levado para o Campo de trânsito. Talvez tão longo exílio o tenha feito concluir que:
Não teria para onde ir. Substituiu tudo isso pelo trabalho de fabricar – parece-lhe essa a palavra mais adequada – uma familiaridade nova com objectos, pessoas e lugares. Retorna vezes sem fim à grande pedra junto ao rio só para ver se ela não mudou de posição. Descreve mentalmente este lugar quando está longe, e quanto mais exacta essa descrição mais nítida é a sensação de que está inventando uma nova casa (COELHO, 2007, p. 122-123).
Essa mudança de devir subjetivo experenciada por J. Mungau e objetivada quiçá por um mecanismo de defesa exponencial, quiçá por uma postura de resignação frente ao poder intransponível do outro sobre o destino de sua vida, pode ser vista como resultante da situação do exilado.
Obviamente que para o presente trabalho uma grande quantidade de subtramas da narrativa não foram sequer mencionadas. Todavia, é relevante mencionar que toda a estrutura administrada pelo Diretor fornece sinais de futuro esboroamento através dos seguintes indícios: i) a depredação dos sítios arqueológicos com o respectivo extravio do crânio do Chefe Original; ii) a chegada ao campo de trânsito da filha do Chefe da Aldeia; iii) a chegada dos feirantes cinco dias antes da temporalidade costumeira.
Esses três acontecimentos são emblemáticos por demonstrar como a perenidade de um sistema erigido ao preço da anulação identitária e do esfacelamento das memórias é fugaz. Basta que uma(s) peça(s) do conjunto perca o tom, para disparar a ruína do mecanismo que até então era habilmente orquestrado pelo Diretor, ainda que assim o mantivesse por meio de burlas e demais coisas do gênero.
O Diretor então cogita que tanto o Chefe da Aldeia, responsável pelo Campo Antigo, quanto o professor, responsável pelo Campo Novo, ao não executarem com presteza suas funções foram os responsáveis pela desestruturação e consequente desordem que irá culminar com o fim de uma era de todo o campo de trânsito. Para esse objetivo, conforme noticia o Vendedor de Chá, a horda se coletivizou, formada por habitantes de todos os espaços e, unidos, marcham em direção ao campo de trânsito para, quem sabe, conquistar a liberdade que houvera sido surrupiada.
A horda formada especificamente nessa contingência exemplifica o que Bauman denomina comunidades-cabide:
a vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade da solitária construção da identidade levam os construtores da identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de outros indivíduos também assustados e ansiosos. É discutível se essas ‘comunidades-cabide’ oferecem o que se espera que ofereçam – um seguro coletivo contra incertezas individualmente enfrentadas; mas sem dúvida marchar ombro a ombro ao longo de uma ou duas ruas, montar barricadas na companhia de outros ou roçar os cotovelos em trincheiras lotadas, isso pode fornecer um momento de alívio da solidão. Com resultados bons ou maus, ou sem eles, alguma coisa pelo menos foi feita; podemos obter algum consolo de ter recusado servir de alvo imóvel e de ter levantado a mão contra os golpes. (BAUMAN, 2003, p. 21).
Contudo, o seu exílio está em lugar sobremaneira paradoxal. Como esclarece Said, nada nesta ambiência é seguro. Os agenciamentos que as personagens materializam, a esta altura, são bastante temerários. Nunca se pode esquecer que:
O exílio é uma condição ciumenta. O que você consegue é exatamente o que você não tem vontade de compartilhar, e é ao traçar linhas ao seu redor e ao redor de seus compatriotas que os aspectos menos atraentes de estar no exílio emergem: um sentimento exagerado de solidariedade de grupo e uma hostilidade exaltada em relação aos de fora do grupo, mesmo aqueles que podem, na verdade, estar na mesma situação que você. (SAID, 2003, p. 51).
Mas, e J. Mungau? Além de ter sua prisão reiterada, posto ter sido acusado de ter assassinado o Diretor, sentença exarada pelo Bexigoso percebe que apenas ele, J. Mungau, não houvera encontrado seu caminho: “Apenas o caminho de Mungau é um caminho que não vai dar a parte alguma.” (p. 194).
Acerca de seu incomum destino, J. Mungau chega até a interpelar o Vendedor de Chá na esperança de uma resposta, mas em troca só recebe fábulas. Como num suplício que parece não ter fim, Bexigoso, imperativo, anuncia:
Prepara-te, diz, com a voz entaramelada. Está tudo pronto, vamos partir.
Vamos partir para onde?, pergunta Mungau.
Não te esqueças do teu estatuto de prisioneiro. Não te cabe fazer perguntas!, diz severamente o Bexigoso, antes de soltar uma gargalhada. (p. 208).
Considerações finais
Toda viagem, como assegura Onfray “é iniciática – assim como uma iniciação não cessa de ser uma viagem. Antes, durante e depois se descobrem verdades essenciais que estruturam a identidade”. (ONFRAY, 2009, p. 76).
Mesmo aquelas viagens cujo deslocamento não foi disparado por ânimo próprio. Tal como verificamos em J. Mungau. A manutenção de sua condição de prisioneiro, como visto ao final do romance, lhe imprime um estado de errância. De acordo com Onfray, a errância designa tanto o associal definitivo quanto o doente mental, ela começa quando falta o porto de matrícula, o ponto de ancoragem.
O apartamento, independente de ser considerado ou não habitável, funciona como bússola, cuja etimologia, segundo Onfray, remete à forma original, uma pequena caixa – como a casa. Nesse esteio, regressar à casa permite retomar o estado de espírito dos indivíduos que reencontravam a caverna após terem cruzado, numa natureza inquietante, com mamutes, cervos, auroques e renas perigosos para eles.
Menos para J. Mungau. Como dito por Said o pathos do exílio está na perda de contato com a solidez e a satisfação da terra: voltar para o lar está fora de questão. (SAID, 2003, p. 52). A contingência em que J. Mungau é arrancado de seu apartamento, cuja descrição e rememoração é apresentada em fragmentos ao longo do romance, possibilita considerar se tratar de uma personagem que nunca teve, propriamente, um lar. É um ser que está em constante busca do que Said, recuperando Simone Weil, classificou como o dilema do exilado: “Ter raízes é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana.” (SAID, 2003, p. 56). Na trama narrativa, a grande questão da busca pela resposta do abrupto aprisionamento de J. Mungau só equivale em importância, à irreparabilidade do dano causado pelo estado errante do ser em exílio, denominado por Said como “uma fratura incurável entre o ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada”. (SAID, 2003, p. 46).
João Paulo Borges Coelho, ao comungar desse inexorável vaticínio saidiano, magistralmente, opta por abandonar os seus leitores, perplexos talvez, com J. Mungau ainda no não-lugar de sua viagem.
Notas
1 Texto originalmente publicado em Cadernos CESPUC de Pesquisa. Série Ensaios, n. 18 (2009), p. 43-51.
2 Todas as citações dessa obra foram extraídas da mesma edição e doravante serão assinaladas, apenas, pelo número de página.
Referências
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. 111 p.
BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 141 p.
BAUMAN, Zigmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 110 p.
COELHO, João Paulo B. Campo de trânsito: romance. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. 209 p. (Outras margens, 62).
COUTO, Mia. “Campo de trânsito” é uma incursão corajosa. In: COUTO, Mia. Apresentação do romance de Borges Coelho. Savana: [s.n.], 2007. Disponível em: < http://macua.blogs.com/moambique_ para_todos/2007/06/campo_de_trnsit_1.html>. Acesso em: 15. jan. 2011.
FOUCAULT, Michel. O panoptismo. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. cap. 3. p. 173-199.
JOYCE, James. Ulisses. 2. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
MENDONÇA, Fátima. Ovídio e Kafka nas margens do Lúrio. Lisboa: Ma-schamba, 2007. Disponível em: < http://ma-schamba. com/literatura-mocambique/1959/>. Disponível em: 15 jan. 2011.
ONFRAY, Michel. Teoria da viagem: poética da geografia. Porto Alegre: L&PM, 2009.
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio: e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
VERÍSSIMO, Érico. A volta do gato preto. 14. ed. Porto Alegre: Globo, 1985.
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* Wellington Marçal de Carvalho é Pós-Doutorando em Estudos Literários na FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras pela PUC Minas. Graduado em Letras (Newton Paiva). Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas (GEED). Autor de: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014) e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). Coorganizador de Deslocamentos estéticos (2020). Integrante da Comissão editorial do literÁfricas. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.