As representações do corpo feminino na poesia moçambicana:
dos grilhões à liberdade1
Vanessa Riambau Pinheiro*
No dia e noite
em que eu encher o rio
terei a minha liberdade
e nunca mais serei
de nenhum colono, escrava.
(Deusa d’África)
Introdução
O movimento feminista ressignificou os modos de se ver e perceber o corpo feminino; atualmente, a relação corpo/mulher é um tema amplamente discutido na nossa sociedade. O corpo, outrora reduzido ao seu aspecto físico, passou a ser compreendido como um arcabouço cultural definido a partir de regras estipuladas em uma sociedade regida pela hegemonia patriarcal. Assim, não nos causa espécie compreender porque a imposição de determinados expedientes biológicos femininos (como a maternidade, por exemplo) justificaram, por muito tempo, o papel secundário imposto socialmente à mulher e toda a espoliação que lhe foi imputada.
Consoante Grossi (2004), a fim de manter a hegemonia masculina, o sistema patriarcal criou estratégias para manter o eu feminino como objeto simbólico e de efeito decorativo; desta feita, a divisão social do trabalho foi estabelecida a partir da solidificação da dicotomia entre homens e mulheres. Ao homem foi reservado o espaço público, de prestígio e reconhecimento financeiro, enquanto à mulher foi relegada ao espaço privado, de baixa remuneração e invisibilidade. Com o falacioso discurso da diferença biológica como critério hierárquico, os papéis sociais foram instituídos como se fossem naturais, e a mulher foi destinada à função de cuidar dos filhos e da casa. As instituições tidas como relevantes e influenciadoras na sociedade, por seu turno, auxiliaram neste processo: a família, a Igreja e a mídia contribuíram diretamente no processo que levou à desigualdade entre os gêneros (Grossi, 2004, pp. 15–16).
Destarte, podemos verificar que a mulher foi condenada ao papel de passividade, objetificação e domesticação na História desde tempos remotos; no decorrer dos séculos, o corpo feminino foi exposto às mais diferentes formas de exploração. Lerner (2019, p. 144) aduz que “Os homens, na escravidão hebraica, podiam voltar a viver como homens livres no sétimo ano. Mulheres escravas por dívida, por outro lado, podiam ascender socialmente ao concubinato ou decair ao nível da prostituição. O destino delas era determinado pela servidão sexual. ” Ou seja, o status social de um homem era definido pelas relações econômicas que era capaz de estabelecer, e o de uma mulher, pelas relações sexuais que tivesse com pessoas bem-sucedidas economicamente. Havia, portanto, a redução do eu feminino ao seu locus externo, ou seja, ao seu corpo, bem como a terceirização da capacidade feminina de ascender por valor próprio (já que à mulher era possibilitado obter prestígio e valoração somente a partir do homem com quem se relacionava). A mulher, portanto, na sociedade patriarcal, sempre foi relegada ao papel de serviçal doméstica e/ou sexual.
O feminismo negro
Com base neste mote, é legítimo inferir que o corpo feminino negro é duplamente exposto à subalternização e à violência na intersecção entre gênero e raça, categorias imiscuídas socialmente. Hegel, ao construir a dialética do senhor e do escravo, afirma que o dominado não consegue moldar uma autoconsciência, mas assume a si mesmo a partir de uma lógica na qual impera o olhar do dominador. Tomando como ponto de partida a dialética do senhor e do escravo de Hegel, Simone de Beauvoir cunhou o conceito de Outro, que foi ampliado por Grada Kilomba (2019). De acordo com Butler (2017), o ser é concebido enquanto relacional e a relação com o si-mesmo é uma relação social e pública. Destarte, a alteridade torna-se parte fundamental para o desenvolvimento da autoconsciência.
Para Kilomba (2019), a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma: mulheres negras não são nem brancas, nem homens, estando no último degrau social. Por isso, exercem a função de o “outro” do outro. Ainda consoante a pesquisadora portuguesa Grada Kilomba (2019), ser uma antítese entre branquitude e masculinidade impossibilita que a mulher negra seja vista como sujeito, o que a torna o “outro absoluto” para usar termos de Beauvoir. O olhar tanto de homens brancos e negros e mulheres brancas confinaria a mulher negra a um local de dupla subalternidade, tanto de raça quanto de gênero.
Gerda Lerner (2019) endossa este pensamento na obra intitulada A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. A pesquisadora austríaca afirma: “Assim como a subordinação das mulheres pelos homens forneceu o modelo conceitual para a criação da escravidão como instituição, a família patriarcal forneceu o modelo estrutural.” (LERNER, 2019, p. 126). Desde o início da escravidão, homens escravos eram explorados para o trabalho, enquanto as mulheres eram exploradas tanto para o trabalho quanto para serviços sexuais e para a reprodução. Ainda segundo a autora, a invenção cultural da escravidão baseia-se, portanto, na institucionalização de símbolos de subjugação para as mulheres. Ou seja, enquanto princípio estrutural da sociedade, a dominação masculina antecede a escravização e fornece subsídios para sua institucionalização. Ou seja, ainda antes da questão racial ser considerada, como o foi durante a escravização negra ocorrida entre os séculos XV e XIX, o gênero sempre foi um fator discriminatório.
Durante o segundo milênio a.C., a formação de classes ocorreu de forma que, para as mulheres, o status econômico e a servidão sexual estivessem ligados de modo indissociável. Assim, a posição de classe das mulheres foi desde o início definida de maneira diferente em relação à posição dos homens. Mudanças estruturais já haviam resultado em uma divisão crescente entre mulheres de classe alta e de classe baixa. Restou à lei institucionalizar essa cisão. (LERNER, 2019, p. 162)
Entretanto, não podemos ignorar que o feminismo negro trata de questões absolutamente próprias, ainda que também se paute na contestação da lógica patriarcal de subvalorização do gênero feminino. Na obra Feminismo para os 99%, um manifesto, de Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 76), as autoras abordam essas abissais diferenças entre os tipos de feminismo. Consoante as autoras: “ As influentes sufragistas brancas fizeram reclamações explicitamente racistas depois da Guerra Civil dos Estados Unidos, quando os homens negros obtiveram o direito ao voto e elas não.” O antirracismo tornou-se pauta do feminismo a partir de meados do século XX, quando teve sua consolidação. Ainda assim, o feminismo negro tem suas próprias demandas.
Ribeiro (2015), na obra Quem tem medo do feminismo negro? recupera o discurso intitulado “E não sou eu uma mulher?”, proferido pela ex-escrava Sojourner Truth, em 1851. Essa frase ficou mundialmente conhecida após ter sido pronunciada como forma de protesto na Convenção dos Direitos das Mulheres em Ohio, com o intuito pedagógico de explicar que a luta das mulheres negras possui diferenças colossais comparada à luta das mulheres brancas. A estudiosa brasileira reforça que, enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, as mulheres negras ainda batalhavam para serem reconhecidas como seres humanos. Ou seja, não é possível pensar em um feminismo universal, que contemple de uma só feita as necessidades de mulheres de quaisquer raças e condições sociais.
A autora também faz um relato pessoal sobre o feminismo negro ao afirmar que, após ler autoras como Bell Wooks, Toni Morrison e Alice Walker, ela começou a entender os motivos pelos quais não se identificava com o feminismo tido como universal, que não observa as diferentes especificidades e lugares de fala de onde são originados. Consoante Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 81): “A verdade é que, embora todas soframos a opressão misógina na sociedade capitalista, nossa opressão assume diferentes formas.”
Na esteira das implicações resultantes a partir da intersecção entre raça e gênero, Danny Laferriére (2012), escritor haitiano, traz em um dos seus romances uma espécie de pirâmide social, alegorizada como relação sexual, na qual estão, em posição privilegiada, os homens brancos, que cobram de todos uma cega submissão; abaixo deles, encontram-se as mulheres brancas, seguidas pelos homens negros. Abaixo de todos os anteriores, na base da pirâmide, estão as mulheres negras, que socialmente são tratadas como credoras de todos os demais. Podemos inferir aqui a intersecção1 de categorias como gênero, classe social e raça imiscuídos no processo discriminatório.
Hodiernamente, entretanto, como afirmamos, o pensamento feminista trouxe novas epistemes culturais. Ao pensarmos no corpo como categoria analítica, concordamos com Elódia Xavier (2007), que concebe o corpo como um sistema complexo, perfilado de fatores sócio-históricos que lhe são adjacentes. Desta feita, não se pode resumi-lo em sua condição biológica, pois é mister pensar
mais em sua concretude histórica do que na sua concretude simplesmente biológica, evitando, a todo custo, o essencialismo ou categorias universais. Existem apenas tipos específicos de corpos, marcados pelo sexo, pela raça, pela classe social e, portanto, com fisionomias particulares. Essa multiplicidade deve solapar a dominação de modelos, levando em conta outros tipos de corpos e subjetividades. (XAVIER, 2007, p. 22).
O corpo negro, desde o contato com a alteridade supremacista branca, sempre foi vítima de lascívia, exotização e violência. Casos de abusos sexuais de escravizadas e violência das mais diversas formas contra o corpo feminino negro são retratados na literatura e em outras manifestações, artísticas ou de cunho documental, há séculos. A mulher negra que se encontra em condição de vulnerabilidade social está ainda mais exposta à violência (pela intersecção de raça, gênero e condição social) hodiernamente, pois sofre as sequelas do estado de exceção a que está sujeita por estar-fora do sistema e, ao mesmo tempo, pertencer a ele (AGAMBEN, 2002; 2004). De acordo com Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 80):
Hoje, milhões de mulheres negras e imigrantes são empregadas como cuidadoras e trabalhadoras domésticas. Muitas vezes sem documentação e distantes da família, elas são simultaneamente exploradas e expropriadas – forçadas a trabalhos precários e mal-remunerados, privadas de direitos e sujeitas a abuso de todo tipo.
Um caso conhecido de violência simbólica2 contra o corpo feminino foi a zoomorfização de Saartjie (pequena Sara) ou Vênus negra, alcunha pela qual ficou conhecida. Trata-se de uma sul-africana nascida em 1789, que tinha modestos 1,35 metros de altura. Pertencente ao povo Hotentote, herdou as características físicas das mulheres deste povo. De acordo com Braga (2018, pp. 39 - 40), “uma espécie de ‘avental frontal’, ou ‘avental hotentote’, que denotava a hipertrofia de seus lábios vaginais, bem como a esteatopigia, que lhe conferia um acúmulo de gordura nas nádegas, fazendo-as maiores e mais salientes do que o padrão europeu.” Aos 21 anos, ela foi levada para Londres, onde foi exposta em feiras, circos e teatros, apresentando-se em uma jaula, nua, de quatro, presa a uma corrente. “Aproxima-se o negro da imagem do ‘homem natural e instintivo’, logo, é o menos racional e mais emocional.” (FIGUEIREDO; CRUZ, 2016, p.17). Vista como exótica e selvagem por não se enquadrar no padrão europeu de beleza feminina, Saartjie era julgada como ser inferior por 1) ser negra; 2) ser mulher; 3) ter o tipo físico contrastante com o modelo normativo caucasiano padrão.
Há que se levar em consideração, entretanto, que essa alteridade é pautada em um determinado padrão hegemônico estabelecido. Ou seja, existe o componente cultural que se impõe ao natural. Afinal, os corpos são significados pela cultura e são, frequentemente, por ela alterados. Na complexa política de papeis sociais que se expressa na base da nossa estrutura histórico-social, os traços negroides, não raro, são estigmatizados como inferiores. Neste sentido, a presença física de um negro suscita uma série de pré-conceitos associados ao racismo estrutural vigente socialmente. “A cor da pele, o cabelo, as nádegas, a forma do nariz, etc. são alguns desses traços.” (FIGUEIREDO; CRUZ, 2016, p. 16). Ainda segundo as organizadoras mencionadas, a existência de menor ou maior número de traços fenotípicos negros é capaz de segregar os indivíduos a partir do colorismo, que classifica e confere gradação ao racismo. O mercado da aparência ou o mundo da beleza é uma esfera que tem sido marcada pela construção de estereótipos negativos associados aos fenótipos negros. Um dos fenótipos que mais tem sido enfocados de forma negativa no corpo negro é o cabelo, alvo de intervenção nos mais variados contextos e culturas. Neste sentido, o colorismo cumpre seu papel excludente, ao conferir status social às mestiças claras de traços negroides suavizados e cabelos mais facilmente alisáveis. O cabelo crespo, portanto, funciona como legitimador racial, denotando estatuto ontológico. O orgulho da negritude passaria, por conseguinte, por este percurso de validação do fenótipo e autoaceitação. Bell Hooks (2019, p. 60) alerta para esta problemática:
Enquanto as pessoas negras forem ensinadas a rejeitar nossa negritude, nossa história e nossa cultura como única maneira de alcançar qualquer grau de autossuficiência econômica, ou ser privilegiado materialmente, então sempre haverá uma crise na identidade negra. O racismo internalizado continuará a erodir a luta coletiva por autodefinição.
Novas dimensões do corpo feminino na poesia moçambicana
Isso posto, pretendemos contribuir para desconstruir essa representação subalternizada do corpo negro feminino a partir da análise de poemas de autoras moçambicanas contemporâneas que mostram, em sua lírica, outros contornos do sujeito negro. Conforme mencionamos anteriormente, Xavier (2007), no livro Que corpo é esse?, estabelece uma tipologia do corpo, a partir da qual analisa narrativas de autoria feminina. Os corpos podem ser do tipo invisível, subalterno, disciplinado, imobilizado, envelhecido, refletido, violento, degradado, erotizado e liberado.
Compreendemos que, historicamente, o corpo feminino negro tem sido controlado por terceiros, tendo sofrido violência dos mais diversos modos, desde a esfera laboral até a sexual. Dessa forma, importa-nos evidenciar a mudança deste status quo, através de poemas que denotem liberdade e autonomia do corpo feminino, representadas a partir da dança, da vaidade, do desejo sexual e da consciência do eu feminino. Neste estudo, utilizando a tipologia de Xavier (2007), privilegiaremos os corpos erotizado e liberado, únicos passíveis de ressonâncias positivas, na tessitura lírica das poetas contemporâneas moçambicanas Lica Sebastião, Sónia Sultuane, Deusa d’África, Melita Matsinhe e Rinkel.
Observemos inicialmente o poema de Lica Sebastião, poeta nascida em Maputo que é autora de três obras poéticas: “O meu sexo é uma casa com nuvens/e finíssimos cursos de água./Tu esperas à porta e és o sol./Atravessas-me e fazes uma dança frenética/E eu desaguo,/grata.” (SEBASTIÃO, 2015, p. 23):
Neste poema, o eu-lírico estabelece uma conexão transcendental entre o ato sexual e a natureza a partir da analogia com os elementos nuvem, água e sol. Se tomarmos nuvem como a representação do ar e sol como a do fogo, teremos aqui três dos quatro elementos da natureza (ar, água e fogo) metaforicamente presentes no ato sexual. A terra, elemento representativo da racionalidade, não é bem-vinda neste momento de torpor e de entrega aos sentidos sem arrefecimentos. Podemos perceber a representação do corpo deste poema, que passa pelo erotismo sem, contudo, limitar-se ao sexual, expandindo-se ao sagrado feminino, a partir do qual o corpo adquire dimensões metafísicas. (“E eu desaguo, grata”).
Também podemos associar o corpo à sexualidade, esta considerada mítica e transcendental, no poema a seguir: “Sou a ponte e tu o rio./Queria ser antes cada uma das tuas margens./Em todas as estações, cuidares do meu solo sedento.” (SEBASTIÃO, 2015, p. 15). O signo da água surge novamente, como metafórica nutrição de um solo desidratado, que representa o corpo feminino. Novamente, o sujeito do desejo do eu-poético surge travestido de água, mas agora funde-se à terra, que imageticamente representa o eu-lírico. Entretanto, essa representação da terra não se relaciona com a sua concretude material, antes se relaciona com a deusa-mãe Gaia, geradora dos demais elementos. O corpo do eu sexual feminino aqui perde sua concretude material e ganha estatuto primevo e cosmogônico. É relevante pensar como ocorre a ressignificação e expansão do corpo sexualizado feminino que, longe de reviver estigmas de objetificação ou de violência, adquire contornos sacros.
Nesta mesma direção temos o poema a seguir, da jovem poeta moçambicana Melita Matsinhe: “Celebração/Te ver voltar/ em ti me fundir:/sou luz, som, cor./É teu o sol!” (MATSINHE, 2017, p. 22). O ato sexual, nestes versos, possui conotação de fusão de sentidos e experimentações que remetem à alegria, vivacidade e arrebatamento amoroso. O próprio título do poema, “Celebração” remete a este estado de êxtase. Também aqui o corpo feminino é percebido como algo de proporções cosmogônicas. Ainda que exista a alusão à consumação sexual, a erotização do corpo não se limita ao enleio físico. O eu-lírico, ao definir o objeto de desejo como “sol”, de onde se infere que dele tira o calor que necessita, revela ser “luz” (intensidade, força, brilho), “som” (voz, importante instrumento de resistência e de visibilidade feminina) e “cor” (que nos remete alegria, poder).
Ainda na esteira do corpo erótico mas agora em sua dimensão materialista, observemos os poemas abaixo, escritos por Sónia Sultuane, polivalente artista moçambicana:
A fome que te tenho, descontrolada
de te ter, o de te possuir,
o meu corpo, fogo ardendo, queimando,
torna-se num imenso doloroso, num profundo,
os meus olhos vagueiam, olho-te,
o meu pensamento voa,
os lábios incham, a face dói,
a língua, esculpida na tua, toca-te, engole-te,
o meu corpo procura-te para o arrepiar
do sangue fervendo,
esta fome insaciável,
o leve,
o leve deste papel onde agora te sinto
sem o peso que é isso.
(SULTUANE, 2002, p. 29)
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Saboreias no meu corpo o gosto do amor,
nos meus mamilos dou-te o gosto do morango carnudo,
no meu ventre o gosto de abacaxi,
nas minhas coxas, nessas, dou-te mangas verdes,
vens buscar na minha boca o açúcar,
para aprisionares e mordiscares a tua fruta,
nesse banquete inesquecível.
(SULTUANE, 2009, p.17)
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Esta noite dormi perdida, entregue nos teus braços,
saciada e exausta,
deitei-me de ventre para baixo, nua,
deitada por cima de ti,
embriagada pelo teu cheiro, o calor do teu corpo,
as tuas entranhas, o teu abdómen,
as tuas mãos, nas minhas costas,
o teu abraço guardando-me profundamente,
para que não fugisse,
para que não quebrasse o nosso laço de cumplicidade,
adormecido estavas entregue a mim,
longe de tudo e de todos,
queria chamar-te para que me possuísses novamente,
mas o teu sono era tão profundo,
em paz, que fiquei ali,
somente a contemplar-te como podias ser meu,
sem estares ali, mas mesmo assim,
fazendo parte deste meu sonho desperto.
(SULTUANE, 2006, p.11)
A produção lírica de Sónia Sultuane, publicada desde o começo dos anos 2000, inaugura a temática erótica de autoria feminina em Moçambique. Podemos perceber que a poeta encarna o corpo erotizado, em uma lírica de volúpia e sedução. No primeiro poema, existe a manifestação do desejo sexual, sentido de forma sensório-corporal tão fortemente expressa que provoca até mesmo sofrimento pela ausência do objeto de desejo: “o meu corpo, fogo ardendo, queimando,/torna-se num imenso doloroso, num profundo,/os meus olhos vagueiam, olho-te,/o meu pensamento voa,/os lábios incham, a face dói [...]”.
Neste poema, podemos observar verbos que expressam o forte desejo sexual em progressão, como os gerúndios “ardendo” e “queimando”; a seguir, são reveladas as consequências físicas da não satisfação deste desejo, a partir de verbos como “inchar” e “doer”. A fim de suplantar o meramente carnal, a imaginação do eu-lírico também é intensificada (“o meu pensamento voa”); entretanto, ao final, a vontade carnal não satisfeita converte-se em dor, como confirma o verso “torna-se num imenso doloroso”.
O segundo poema, apesar de oriundo de outro livro da autora, constitui uma possível continuidade do anterior: neste momento, o eu-lírico encontra-se em pleno deleite de coito, e compara os sabores e sensações sexuais ao degustar de frutas, consciente do poder de sua própria feminilidade: “Saboreias no meu corpo o gosto do amor,/nos meus mamilos dou-te o gosto do morango carnudo,/no meu ventre o gosto de abacaxi,/nas minhas coxas, nessas, dou-te mangas verdes”.
O último, de outra obra, poderia configurar-se como o desfecho das cenas evocadas nos poemas anteriores: consumado o desejo sexual (“saciada e exausta”), o eu-lírico relaxa o corpo, agora satisfeito, ainda que fantasie com novas consumações sexuais (“queria chamar-te para que me possuísses novamente”).
Nos poemas de Sultuane que destacamos, há a personificação de um eu-lírico consciente da sua própria sexualidade e legitimado em seus instintos sexuais: sem remorsos, puritanismos ou necessidade de amor que os justifique. Este corpo erótico, assim refletido em sua plenitude, hibridiza-se com a próxima tipologia corporal que iremos observar, a do corpo liberado. O poema a seguir é de Deusa d’África, uma poeta nascida na cidade de Xai-Xai e cofundadora de um importante grupo de poetas em Moçambique, o Xitende. Vejamos, pois, de que forma podemos perceber a transição entre o corpo erótico e o liberto:
Hoje apetece-me
Pintar os meus lábios,
Com a tinta da minha boca,
E este pincel nela mergulhado
Até ela ficar oca.
Hoje apetece-me
Soletrar em surdina
Tudo que eu queria ouvir
Como o sopro que deu a vida a Adão
E ulteriormente tornar-me
Tuas vestes
Desse corpo despido
Pelo meu desejo
E os deuses dando-me um ensejo
De alcançar a carreira de estilista
Só para te vestir
Com a tua nudez que almejo.
Hoje apetece-me
Fazer sem cunhas
Mas sim, usando minhas unhas
na textura da tua tez.
Hoje apetece-me
Fumar as tuas mágoas
E aliviar os pulmões
Com um charuto.
Hoje apetece-me
Ao altar, levar-te,
E casar-te
Só e só por hoje,
Ter a lua-de-mel,
E esquecer a acerbidade
Desse coração fel
Na escolha de homem, cheio de sumptuosidade.
Hoje apetece-me
Nas tuas entranhas, arquejar
Nelas manejar
Mergulhar no mar da incerteza, só para te ter.
(d’ÁFRICA, 2014, pp. 22 – 23)
O eu-lírico, nesta poesia, reitera seu desejo em todas as estrofes, que pode ser verificado na repetição do verbo “apetecer”. O desejo expresso nos versos não diz respeito apenas ao sexo, antes se manifesta como consciência da sedução feminina (“Hoje apetece-me/Pintar os meus lábios,/Com a tinta da minha boca”) e de empoderamento (“E os deuses dando-me um ensejo/De alcançar a carreira de estilista/Só para te vestir/Com a tua nudez que almejo.”)
Os demais verbos do poema, a maioria escritos no infinitivo (pintar, soletrar, tornar-me, alcançar, vestir, fazer, fumar, levar-te, casar-te, ter, esquecer, arquejar, manejar, mergulhar) são verbos indicativos de ação, com teor performativo. Dessa forma, demonstram uma atitude anímica proativa do eu-lírico, representativa de iniciativa e dinamismo, características não comumente associadas ao feminino na estética normativa tradicional. Outrossim, podemos perceber a reverberação deste “neofeminino” reivindicado em versos que denotam a inversão dos papéis sociais tradicionais de homem e mulher: “Hoje apetece-me/Ao altar, levar-te/E casar-te/Só e só por hoje,/Ter a lua-de-mel....” Também se manifesta na ressignificação de características comumente atribuídas à mulher, como a suposta fragilidade emocional feminina. Nestes versos, o eu masculino é retratado como um ser enfraquecido diante da mulher: “Hoje apetece-me/Fumar as tuas mágoas/E aliviar os pulmões/Com um charuto”; observamos também a necessidade de liberalidade (“Hoje apetece-me/Fazer sem cunhas”) e demonstração de agressividade, em uma inversão à virilidade masculina: “Mas sim, usando minhas unhas/na textura da tua tez.”
Por fim, ao assumir-se no comando do sexo (“Nas tuas entranhas, arquejar/Nelas manejar/Mergulhar no mar da incerteza, só para te ter”) o eu-lírico reafirma a voz ativa expressa no poema pois, ainda que possa sentir-se insegura (“Mergulhar no mar da incerteza...”), é na concretude do ato sexual que o sujeito poético reafirma sua sexualidade (“só para te ter”).
O poema chamado “Quando estivermos vivos”, da mesma poeta, também reivindica a desconstrução da imagem tradicional da mulher submissa e casta, invocando o sexo e a liberdade como restauradoras da energia vital: “Quando estivermos vivos/Nos amaremos e activos/Elanguesceremos outros cadáveres/Sepultados na nossa boca/Transladando uns aos intestinos delgados/E aos intestinos grossos a todos os que em vida não foram amados/E a quem os estoicos emanara.” (d’ÁFRICA, 2011, p. 63). Em momento posterior, o eu poético declara: “Quando estivermos vivos/Eu e tu seremos um/Iguais a outro casal nenhum/E em cada solo, nosso sêmen/Fecundará o alimento do povo, o pão [...].” (d’ÁFRICA, 2011, p. 63, grifos nossos). Ao proferir “Eu e tu seremos um”, não há distinção ou hierarquia de gêneros, haja vista que masculino e feminino se fundem num só enleio amoroso. Por outro lado, ao apropriar-se do fluido seminal masculino (“E em cada solo, nosso sêmen”) e viabilizar a fecundação conjunta dos dois (“Fecundará o alimento do povo, o pão.”), o eu feminino se vale da imagética sexual para revelar a transcendência e sublimação das diferenças biológicas entre os gêneros.
Mas não é apenas sexualmente que o corpo pode manifestar liberdade. Existe a poetização de um corpo em movimento, que dança sem pudores ritmos tradicionais. Observemos mais um poema da já mencionada Melita Matsinhe (2017, p. 14, grifo da autora):
Abrir os sentidos
clausura à palavra
mundo.
Afagando em dolorosa ternura
descalabrados tambores ao rubro
e acordes em mim.
Estender, marrom, a pele infinita
feita dias sem horas
tu de mim.
Entoar sonetos,
mares proibidos,
marrabentar!
O eu-lírico manifesta-se, de antemão, predisposto à liberdade (“Abrir os sentidos//Estender, marrom, a pele infinita”). A dança tradicional moçambicana é invocada como ícone desta libertação: a marrabenta, que em seu nome já contém a ideia de extravaso (sua origem seria da contração m’arrebenta). De acordo com o historiador Rui Guerra Laranjeira, a marrabenta terá tido origem na região sul de Moçambique, região que comporta Maputo, Gaza e Inhambane. O nome marrabenta provém de rebenta, associada ao dançar em excesso. Teria começado nas décadas de 30 e 40 na Mafalala, um dos principais bairros suburbanos da então Lourenço Marques, atual Maputo.
A dança aparece neste poema como signo de liberdade, tanto do corpo - a partir do movimento -, quanto da palavra (a poesia é a libertação possível da língua). Naturalmente, como o processo de libertação significa ruptura, vem acompanhada de contradições (“Afagando em dolorosa ternura”) e de quebra de padrões pré-estabelecidos (“Entoar sonetos,/ mares proibidos/ marrabentar”).
Por fim, observemos o poema de Rinkel:
Não contes a ninguém
não contes dos meus encantos nem das vezes que eu caio em prantos
não contes dos meus desejos e da minha estonteante curva nem das nossas longas noites regadas a champanhe e uva
não contes das noites que finjo de donzela nem daquelas que sou fogosa e bela
não contes das algemas que usas para me dominar e eu não contarei o que faço para te ouvir gritar
(RINKEL apud RISO, 2011, p.67)
Neste poema, há a reversão de expectativa do leitor: uma leitura descuidada pode nos fazer pensar de que se trata de um eu-lírico cujo comportamento remete ao corpo subalterno [não contes] “das vezes que eu caio em prantos”), ao corpo disciplinado (“não contes das noites que finjo de donzela”) e ao corpo imobilizado (“não contes das algemas que usas para me dominar”). Entretanto, o que pode ser observado é a transição do corpo erotizado (“não contes dos meus desejos e da minha estonteante curva”) à irreverente libertação (“sou fogosa e bela/não contes das algemas que usas para me dominar e eu não/contarei o que faço para te ouvir gritar”).
Considerações finais
Temos, a partir da análise de poemas dessas cinco poetas moçambicanas contemporâneas, a exposição de facetas outras do eu-lírico feminino, categorizadas a partir da observância da presença do corpo erotizado e do corpo liberto na produção lírica dessas autoras. Consoante Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 80, grifos das autoras): “A verdade é que o racismo, o imperialismo e o etnonacionalismo são escoras fundamentais para a misoginia generalizada e o controle dos corpos de todas as mulheres.” Quebrar este paradigma de controle e dominação do corpo feminino com uma poesia de autoria africana feminina empoderada e decolonial é um elemento sintomático dessa imprescindível, ainda que gradual, transformação do status quo atual, reminiscente do racismo e do patriarcalismo ainda vigentes na nossa sociedade.
Sintomáticos de uma geração de ressignificação do corpo da mulher negra, estes poemas traduzem possibilidades de nuances femininas de expansão, que felizmente apontam para uma ruptura do padrão invisível / subalterno / disciplinado / imobilizado / envelhecido / degradado que constituíram o imaginário negro nos últimos séculos. Oxalá essas versões de corpo feminino (erotizado/liberto) sejam cada vez mais frequentes. Não apenas na literatura.
Notas
1 Artigo publicado na Revista Criação & Crítica, n. 27, nov. 2020.
2 “A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.” (AKOTIRENE, 2018, p. 19).
3 Consoante Bourdieu (2012).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, trad. Henrique Burigo, 2 ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte - MG: Letramento: Justificando, 2018.
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%, um manifesto. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.
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* Vanessa Riambau Pinheiro é Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.