Luís Carlos Patraquim: pulsões de desejos e de afetos1

Luciana Brandão Leal*

 

Quando a Palavra cai até à sua última altura

um incêndio magnífico recomeça

a desordem do Mundo.

Patraquim, 2011

 

Os olhos são mais maduros, agora, e podem olhar-se por dentro.

White, 1992

Luís Carlos Patraquim nasceu em Lourenço Marques, em 26 de março de 1953. Como jornalista, foi membro do jornal “A Tribuna” e colaborou com a fundação do Instituto Nacional de Cinema (INC) e da Agência de Informação de Moçambique (AMI). Atuou, também, como jornalista cinematográfico no Kuxa Kanema, cujos filmes eram exibidos em caminhões pelas zonas rurais de Moçambique. Como escritor, teve poemas traduzidos em diversos países: França, Inglaterra, Suécia, Finlândia, Alemanha e Estados Unidos. Em Moçambique, venceu o Prêmio Nacional de Poesia, em 1995.

Em entrevista a Carmen Lúcia Tindó Secco, Patraquim fala sobre os elementos caracterizadores de uma “poética dos afetos” e sobre a “dimensão do sensível” presentes em sua escrita. Sem assumir nenhum compromisso explícito com uma lírica que tende ao impressionismo, esse poeta disfarça: “Sentir? Sinta quem lê” – em evidente citação aos versos de Fernando Pessoa. (SECCO, 2014, p. 127). Para não responder, de fato, à questão que lhe foi feita, ele acaba tocando no que lhe foi perguntado: “O mundo me afeta como maravilhamento ou, no limite, como horror. [...] À parte de tudo, tenho todos os sentimentos do mundo” – diz o poeta moçambicano, evocando os versos de Carlos Drummond de Andrade. (PATRAQUIM, in: SECCO, 2014, p. 127). A própria elaboração intertextual sobre o processo de criação literária, evidencia a tendência à escrita impressionista, em que os versos são, também, pulsões do inconsciente do poeta. Em certo sentido, como o poeta se diz incapaz de falar sobre o afeto presente em seus próprios textos, passa o enigma para nós, leitores. Não sem antes confirmar: “Mantenho a ideia de que todo poema digno desse nome é de amor e de circunstância, de combate e de transfiguração. E, mais uma vez, cita um poeta de língua portuguesa: ‘Sem emoção a poesia não é nada’, escreveu Reinaldo Ferreira” (PATRAQUIM, in SECCO, 2014, p. 128). Por fim, sobre os afetos, Patraquim nos diz: “Se alguma coisa ambiciono, é que seja infixável a jangada onde navego sempre em demanda da profundidade, o reino submarino de que falava Knopfli” (PATRAQUIM in SECCO, 2014, p. 129).

Em seu primeiro livro, Monção (1980), Luis Carlos Patraquim conclama outras vozes para, com ele, entoarem o cântico que representa a voz de libertação de Moçambique. A apresentação do livro pela Editora dos “Autores Moçambicanos” (Edições 70) anuncia que “esta colecção é a afirmação duma cultura que o poder opressor não pôde destruir, pois não se pode manter indefinidamente silenciada a voz de um Povo”. (in PATRAQUIM, 1980, p. 03). Nas primeiras páginas de seu primeiro livro, Patraquim evoca seu “mestre” e conterrâneo José Craveirinha, arauto da poesia de combate da década de 1950, com os versos: “E deixem em nós gerar-se / irresistível a prole das sementes do beijo / consanguíneo do grande dia / SIA-VUMA” (CRAVEIRINHA in PATRAQUIM, 1980, p. 04). A voz de resistência de Moçambique torna-se evidente pela voz de Craveirinha, que se articula com a de Luís Carlos Patraquim, trazendo a interjeição conhecida da língua changana, “SIA-VUMA”, que expressa convicção, como “assim seja; amém”.

Como se vê, Patraquim reafirma seus vínculos com a dicção da poesia de combate, entretanto, nessa mesma apresentação do livro Monção, ele articula também os versos do poema de Pablo Neruda, em Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada:

Para sobreviver forjei-te como uma arma,

como uma flecha no meu arco, como uma pedra na minha funda.

Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te,

corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme”

(NERUDA in PATRAQUIM, 1980, p. 06).

A intertextualidade com os dois poemas expostos articula temáticas distintas e forja novas armas e vieses de escape para a realidade massacrante de um espaço e um contexto devastados pelos embates das décadas de 1970 e 1980; realidade ainda latente, já que a publicação do livro Monção (1980) acontece nesse cenário de destruição pós-guerra pela libertação colonial e no auge da disputa entre a FRELIMO e a RENAMO pelo poder político no país.

Ao falar sobre a “poesia de combate”, Patraquim declara, enfaticamente, que a considera muito redutora. Embora afirme não ser contra a poesia militante – pois, segundo ele, “toda poesia é militante em primeiro lugar” –, reconhece que o fazer poético não deve se abster do trabalho com a palavra, que diferencia a linguagem poética da referencial, como o faz Pablo Neruda, por exemplo. Nestes termos, Patraquim delibera sobre a “poesia de combate”:

Outra coisa é uma poesia redutora, pobre semanticamente, dirigida a um único referente, com palavras-chaves, estereótipos que todos nós conhecemos. Isso empobreceu toda uma gesta poética que estava a acontecer, e que a geração de 80 vai renegar e retomar outra vez, com preocupações de construção da tal moçambicanidade [...], e vai retomar aquelas que são as preocupações do mundo e dos poetas do mundo. (PATRAQUIM in ALEIXO, 1999, p. 3)

O poeta moçambicano reconhece que, nos anos conturbados da presença colonial e da guerra política que desencadeou a libertação de Moçambique, a poesia de denúncia fez-se necessária. Passado esse período, porém, é tempo de experimentar novas formas de escrita. Os poemas de combate escritos anteriormente por Noémia de Sousa e José Craveirinha já não bastariam neste momento, pois o contexto em que se vive clama por reconstrução, precisa de alternativas e de esperança para se acreditar em um amanhã de possíveis transformações.

É dele, sem dúvida, uma das mais inovadoras vozes da nova poesia moçambicana, aclamada por importantes críticos literários, como Ana Mafalda Leite (2013). As reverberações ideológicas do período de guerras (ainda que apareçam de maneira rasurada) perpassam a poesia de Luís Carlos Patraquim, tanto que Ana Mafalda Leite, posteriormente, retoma tais temáticas em prefácio para o livro Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora (1992). Segundo essa estudiosa, o seu trabalho poético demarca a temática geral da exaltação ideológica, delineando um percurso de intertextualidade com outras vozes da poesia moçambicana.

É uma opção que se concretiza numa textualidade onde se revela e, ao mesmo tempo, se rasura a dimensão de natureza ideológica, que se inscreve, todavia, obtusa e transversalmente. Prática que se contrasta com a postura, muitas vezes vitoriosa do discurso mimético e pleno, erguido da então recente conquista da independência política (LEITE, 1992, p. 08).

Mesmo reiterando o diálogo com propostas anteriores, Patraquim tem a sua originalidade, traça um percurso próprio, reformulando a herança deixada por seus antecessores, para ajudar a compor um novo espaço na lírica moçambicana.

Assim como se constata na obra de Rui Knopfli e de outros poetas da Modernidade, Patraquim tem seu percurso fundado na metapoesia e no jogo onírico da linguagem, cultivando a intertextualidade em palavras e imagens. Seus textos fazem referências não só a nomes conhecidos da literatura moçambicana, mas também à Pintura e a outras vozes artísticas universais: Arthur Rimbaud, Thomas Stearns Eliot, Marc Chagall, Pablo Neruda, Pablo Picasso, Carlos Drummond de Andrade, Craveirinha, Rui Knopfli, Virgílio de Lemos, Roberto Chichorro e tantos outros compõem o cenário dialógico e estético do processo criativo e textual desse autor.

Em um texto metapoético, “Saga para Ode”, a voz lírica traça os caminhos necessários para o exercício poético, quando estabelece:

SAGA PARA ODE

 

é preciso a distância para chegar

onde o poema parte e se parte no léxico verde do teu corpo

com cinzas nocturnas e a madrugada nas mãos

 

é preciso o lugar ainda que doa

a emoção azul de sangrar por dentro

com o pensamento na galáxia terna do olhar

 

é preciso tudo como haver morte e flores

na raiz do vento dos braços inteiros que se deram

por um nome uma ideia rubra nos lábios da liberdade

 

é preciso ver musgo e alegria até as ilhargas

da tua imagem garça a deslizar

e sorver água na exuberância lustral dos teus seios

(PATRAQUIM, 1980, p. 55)

Nesses versos o eu-lírico percorre o corpo lexical do poema como se percorresse o corpo feminino. A manipulação da palavra, “fingere”, articula a saga do poeta ao dizer o que “é preciso” para se entoar o canto lírico. Os versos sinestésicos criam associações inesperadas como o “lexico verde”, a “emoção azul”, a “ideia rubra” e, por fim, a “tua imagem garça a deslizar”, como os próprios sentidos múltiplos do poema.

O poema “Australírica”, publicado no livro Monção (PATRAQUIM, 1980), traz, no corpo do texto, invenções de linguagem próprias de Luís Carlos Patraquim. O poeta se vale de neologismos e experiências vocabulares inesperadas para criar e encenar um discurso inovador, nos planos sintático, lexical e semântico.

Em “Australírica”, o que se apreende de mais interessante é a especificidade da linguagem, que se reinventa, reafirmando estratégias poéticas anteriores. Patraquim trata, de forma visceral, essa multiplicidade de Moçambique, que sobressai pela leitura:

AUSTRALÍRICA

 

como dizer revolução sem eroniciar no tempo

este admirável corpo de dança a morna geografia do ventre

o mênstruo que é de sangue

e um arco-íris o goma

e a espuma cristaliza sobre a pele

 

e agora na monção escultora litanistórica

quando a vertigem do vento

vem de vir em teu rosto a inteira

irisdição

canto porque o poema se come

desde o milho à palavra em combustão!

(PATRAQUIM, 1980, p. 25)

As reinvenções levadas a efeito no livro Monção são igualmente perceptíveis no campo lexical. Referimo-nos ao uso de neologismos, em processo de experimentação vocabular usado como artifício dessa nova expressão lírica. Patraquim apresenta a sua “invenlírica” concebendo o espaço de liberdade e invenção da escrita. Seus “invenlirismos” registrarão a “litanistórica”, que, como se vê no poema, tem a função de “eroniciar” o que o poeta chama de “australírica”.

O discurso erotizado de Luís Carlos Patraquim sobre o espaço resgata memórias de poetas como Virgílio de Lemos e Rui Knopfli que outrora cantaram o espaço geográfico do Índico e a mítica Ilha de Moçambique. Moraes (2015) em sua tese intitulada Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli estuda, especialmente, a lírica knopfliana mostrando a habilidade desse poeta para metaforizar o espaço Índico e suas ilhas. Ana Mafalda Leite aproxima a estética desse autor à de Patraquim e observa: “No fundo, Luís Carlos Patraquim envereda por percursos anteriormente experimentados com notável resultado, como é o caso exemplar da escrita localmente cosmopolita de Rui Knopfli” (LEITE, 2013, p. 128). Na obra desses poetas, a Ilha de Moçambique, por exemplo, será representada caleidoscopicamente. O exercício da palavra é o meio de reorganizar e (re)construir sentidos a partir dos fragmentos de memórias deixados neste espaço de contatos culturais e trânsitos ideológicos. Ana Mafalda Leite explica, ainda, que os vínculos de Patraquim com seus antecessores, além de expressar forte carga afetiva, são responsáveis por “rememorar, aditar, um percurso poético anterior, precursor, volumetrizando no enunciado de Patraquim um legado escolhido como tradição” (p. 11). As intertextualidades propostas reiteram “um espaço de prazer” (CORTEZ, apud LEITE, p. 11), como se na letra se corporificasse a nudez erótica da mulher desejada, da Ilha de Moçambique e da própria poesia.

Em belíssimo depoimento sobre “Porque ao princípio era o mar e a ilha”, Luís Carlos Patraquim nos diz:

Ilha, capulana estampada de soldados e morte. Ilha elegíaca nos monumentos. Porta aviões de agoirentos corvos na encruzilhada de monções. De oriente a oriente flagelaste o interior da terra. De Calicut e Lisboa a lança que o vento lascivo trilou em nocturnos, espasmódicos duelos e a dúvidas retraduzindo-se agora entre campanário e minarete. Muezzin alcandorado, inconquistável. Porque ao princípio era o mar e a Ilha. Sindbad e Ulisses. Xerazade e Penelope. Nomes sobre nomes. Língua de línguas e Macua matriciadas. (PATRAQUIM, in SAUTE, 1992, p. 55)

Pode-se perceber que a Ilha de Moçambique é uma forma metafórica para identidade moçambicana, pois nela aconteceram mestiçagens que produziram diversos sincretismos culturais: “Língua de línguas e Macua matriciadas”.

A escrita de Patraquim, como dito, estabelece diálogo com outros poetas, antecessores e posteriores, como seus precursores Virgílio de Lemos, Rui Knopfli e Glória de Sant’Anna; e os mais jovens Eduardo White e Nelson Saute, Ana Mafalda Leite. Sua poesia é marcada pela força pictórica e rítmica que se funda em uma tradição poética na qual ele “se faz colector de sinais, versos, títulos, obsessões, afectos, estilos, tendências, desencontros, reinscritos no seu enunciado que, em amálgama, denuncia a ‘formulação’ de um diverso legado”. (LEITE, 2013, p. 128). O legado poético recebido por ele conflui, em seus poemas, em forma de estreitas identificações pictórias e literárias.

Reiterando o diálogo com A Ilha de Próspero, de Knopfli, Patraquim escreve o poema que homenageia a Ilha de Moçambique:

MUHÍPITI

 

Para Ti, com a ilha, a Rui Knopfli


É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam. 
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha. 
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito. 
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos. 
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.

(PATRAQUIM in SAÚTE, 2004, p. 466-467)

Esse poema, intitulado “Muhípiti”, assume tendências que já se anunciam no primeiro livro de Patraquim, Monção, cujo título faz referência aos ventos sazonais, típicos dos períodos de alternância entre as estações chuvosas e as secas, comuns em áreas costeiras e tropicais. A palavra se relaciona diretamente com o Oceano Índico, onde esse fenômeno é acentuado. A opção por esse título evidencia a proposta estética de Patraquim e o seu compromisso com as temáticas do mar e das ilhas, eixo identitário da poética desse moçambicano.

Com dedicatória a Rui Knopfli, o poema “Muhípiti” – nome da Ilha na tradição macua – enuncia, repetidamente, o lugar onde o eu lírico encontrará a paz: “onde deponho todas as armas” / “Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos”. Nesse lugar desejado onde “os anjos/ brincam aos barcos com livros como mãos”, o eu poético inscreve um percurso iniciático, a partir do qual poderá ter contato com o espaço cantado por tantos poetas no passado.

Em análise do poema “Muhípiti”, Ana Mafalda Leite (2013) acrescenta: “É nestes textos que a inscrição temática e histórica da Ilha de Próspero é reabsorvida e reconstituída, como inovação de um novo tempo nascente, qual umbigo concentracionário de memórias, corpo histórico e arquétipo primeiro” (LEITE, 2013, p. 131). Como se pode ver, a ilha descrita nesse poema assume o papel de lugar de origem, “umbigo concentracionário”, “arquétipo primeiro”. Mahípiti: lugar da memória de “um menino vergado ao peso de ser homem”.

Embora as imagens propostas a configurem como um lugar propício à evasão da subjetividade, algumas imagens da Ilha, como “A terra empapada. Golfando. Vermelha”, trazem à cena enunciativa as paisagens dos muitos embates que deixaram cicatrizes na própria paisagem geográfica, povoando-a de mutilações.

(Re)elaborando as temáticas do amor e do erotismo – concebido como “aquilo que na consciência do homem põe o ser em questão (BATAILLE, 1987, p. 27), do imaginário das ilhas do Norte de Moçambique –, a poética de Patraquim dialoga com a de Virgílio de Lemos e retoma a direção lírica abraçada, desde os anos quarenta até hoje, pelos poetas de Ibo, como assinala Carmen Lúcia Tindó Secco:

Tanto a produção lírica de Virgílio de Lemos, como as do poeta referidos – Ana Mafalda Leite, Nelson Saúte e Patraquim – reinventam, através do voo da imaginação e da artesania do próprio fazer literário, os subterrâneos dos sonhos e mitos, fazendo com que estes funcionem como procedimentos libertadores de tensões sociais oriundas da repressão, do autoritarismo e do medo. (SECCO, 2000, p. 223)

Ao estabelecer diálogo com Virgílio de Lemos, Patraquim já declara o legado que escolhera como tradição. No prefácio do livro Para fazer um mar (LEMOS, 2001), Patraquim escreve: “o mar vem sendo na poesia virgiliana o agente transitivo que a simbólica lhe confere, espécie de tela para um exercício combinatório de elocução, incisão, registro cromático” (PATRAQUIM, in LEMOS, 2001, p. 7). Virgílio de Lemos, o “senhor das ilhas” (PATRAQUIM, in LEMOS, 2001, p. 7): poeta vanguardista cuja importância não foi menor do que a de inaugurar, na lírica moçambicana, uma nova dicção, propondo a libertação dos cânones coloniais que determinavam os rumos da literatura da época. Virgílio de Lemos, apesar de também ter praticado a literatura combativa e de cunho social, não se restringiu a ela, buscando novos espaços poéticos para expressão de desejos e de questões existenciais.

Na poética de Patraquim, se sobressai a escrita de Eros e da terra. O corpo erotizado é evocado em poema sem título, transcrito a seguir, publicado no livro Monção:

afasto as cortinas da tarde

porque te desejo inteira

no poema

 

e passas de capulana

teu corpo como as dunas

plantadas de pinheiros

rumorejando perto

 

a fúria das ondas

caindo brandas

no meu gesto

(PATRAQUIM in SAÚTE, 2004, p. 462)

Evocando imagens como “teu corpo como as dunas / plantadas de pinheiro”, Patraquim erotiza o espaço que percebe. É possível sentir a pulsação da poesia, anunciada desde o início do poema: “afasto as cortinas da tarde / porque te desejo inteira no poema”. A palavra erotizada apreende a paisagem em que tudo está em movimento, como “a fúria das ondas caindo brandas no meu gesto”. A ideia do duplo amoroso, aqui, se desdobra em várias imagens: o eu e o tu, a palavra e o poema, o poeta e a paisagem. A aparência serena da mulher desejada vestida de capulana, que transita a tarde/à tarde (na memória e no poema) é contraposta pela “fúria das ondas / caindo brandas”, como os próprios pensamentos do eu-lírico. Antíteses que aguçam os sentidos dos leitores e os fazem fruir a beleza desses versos metapoéticos.

Em outro texto, “Canção”, a voz lírica de Patraquim personifica a fala do amor, de modo a anunciar as diversificadas formas assumidas por sua chegada:

CANÇÃO

 

Para a Paula

 

chegarei com as árvores

meu amor ao som do sangue

às catedrais do puro gesto

com o grito e as aves

marítimas dentro das sílabas

ao breve cume da espuma

mãos nas mãos chegarei

 

chegarei com as espadas

areia verde da planície

ao tutano meu amor da fome

com os frutos nos teus olhos

amante vento à espera

ao sexo nuclear do mundo

nervo a água chegarei

 

chegarei nas manhãs suadas

da voz meu amor liberta

à nocturna onda do poema

com as aves dentro do grito

ou só marítimo eco

à raiz exígua dos cristais

morte a morte chegarei

 

chegarei de pé ao silêncio

que vaza meu amor nos rios

remo a canto deslumbrados

contigo ao princípio chegarei

(PATRAQUIM in SAÚTE, 2004, p. 464-465)

A canção dedicada à esposa, Paula, encena a linguagem do desejo, a possibilidade do Eros verbalizado. Mais uma vez, o “gesto” da/na escrita evocará o amor que se extravasa pelas palavras. A temática amorosa presente na obra de Patraquim será, mais tarde, retomada por Eduardo White.

A leitura da obra poética de Patraquim evidencia o que observa Fátima Mendonça quando entende a tendência da poesia moçambicana das últimas décadas do século XX, como cunhada na “percepção do cosmos através do conhecimento erótico” (MENDONÇA, 1989, p. 7). Essa tendência erótico-amorosa, ressaltada por Mendonça, também pode ser identificada em obras de poetas anteriores, como Virgílio de Lemos e Rui Knopfli. Luís Carlos Patraquim sabe dinamizar esses aspectos, recria e recicla as experiências colhidas em obras de seus antecessores, (re)elaborando-as como produtos originais.

Analisando-se a lírica patraquimiana, evidencia-se a erotização dos elementos geográficos. A ilha de Moçambique é erotizada, assim como a figura feminina. O Oceano Índico, como espaço de trânsitos, ganha novos significados e, conforme afirma Secco: “se mostra como imenso reservatório mítico do inconsciente afro silenciado pela conquista e colonização lusitanas” (SECCO, 1999, p. 7); assim como a palavra que assume a hibridação e se faz travessia.

Nota

1 Texto originalmente publicado em: Leal, L. B. (2020). Luís Carlos Patraquim: pulsões de desejos e afetos. Scripta24(52), 286-302. https://doi.org/10.5752/P.2358-3428.2020v24n52p286-302

Referências

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CHICHORRO, Roberto; PATRAQUIM, Luís Carlos; LEITE, Ana Mafalda. Mariscando luas. Lisboa: Vega, 1992.

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LEITE, Ana Mafalda. Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa: Edições Colibri, 2013.

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MENDONÇA, Fátima. Literatura moçambicana: a história e as escritas. Maputo: Faculdade de Letras / Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mandlane, 1989.

MORAES, Viviane Mendes de. Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli. Orientadora: Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco; co-orientadora: Ana Mafalda Leite. 2015. 250 f. Tese (Doutorado em Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa) - Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

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PATRAQUIM, Luís Carlos. Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora. Lisboa: Ed. ALAC, 1991.

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SAÚTE, Nelson (Org.). Nunca mais é sábado: antologia de poesia moçambicana. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004.

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Luciana Brandão Leal é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas. Atuou como investigadora visitante na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES de doutorado-sanduíche. Professora Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa (atuando no campus Florestal). Coordena projetos de pesquisas “Poesia moçambicana do século XX” e “Corpo e territorialidade em Maureen Bisiliat e Marcel Gautherot”, ambos registrados na Universidade Federal de Viçosa (2020-2022). Membro do grupo de pesquisas GEED – Grupo de pesquisas em estéticas diaspóricas, coordenado pela profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca. Integra a comissão editorial do literÁfricas. Possui diversos artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Autora dos livros Descolonizar a palavra: poesia moçambicana do século XX e Virgílio de Lemos: poesia em trânsito, em fase de editoração.

 

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