A intimidade da nação Angola em O perigo amarelo,
de João Melo
Érica Luciana de Souza Silva*
Todo professor de literatura deveria
perceber que a experiência literária é
apenas a ponta visível do iceberg verbal: acima se encontra o
campo subliminar das reações retóricas suscitadas pela publicidade,
reles pressupostos sociais e pela conversação cotidiana.
N. Frye, A anatomia da crítica.
O ato de contar uma história, um caso, uma notícia reúne pessoas e as colocam em lugares ora como ouvintes, ora como contadores. Enquanto uma história é contada, memórias são reavivadas, fatos são lidos, relidos e reinterpretados. Contar uma história é, acima de tudo, um evento social, pois reúne pessoas em torno de uma mesa de jantar, ao redor de uma fogueira, à sombra de uma árvore, em torno de um fogão a lenha, de uma mesa de bar, entre outros cenários. Embora não seja possível precisar quando a humanidade começou a contar as suas histórias - “Para alguns, os contos egípcios – Os contos dos mágicos – são os mais antigos: devem ter aparecido por volta de 4000 anos antes de Cristo.” (Gotlib, 1990, p. 5) – o que se pode afirmar é que cada um, à sua maneira, a partir de suas experiências e vivências, registra as sociedades em que estão inseridos por meio do ato de contar.
Desta feita, toma-se o escritor angolano João Melo, autor de 26 livros, entre poesia, contos, ensaios e romance. Pode-se afirmar que o autor se insere no rol daqueles que contam a história de seu país de uma forma peculiar, a partir de seu olhar crítico, irônico e bem-humorado. Esta é a tônica do livro de contos de João Melo, O perigo amarelo (2023), publicado pela editora Alta Books. A obra é composta por 7 contos cujas personagens representam o sujeito angolano que vivencia a experiência pós-colonial.
As histórias são contadas por um narrador de terceira pessoa que, com uma ironia refinada e nada sutil, traz à baila os conflitos sociais e suas respectivas consequências geradas por anos de dominação portuguesa:
Alguns dirão que isso se deve ao fato de os angolanos já se terem completamente acomodado aos históricos sofrimentos, espoliações e abusos de que foram e continuam a ser vítimas, antigamente por parte de alienígenas desembarcados um dia, sem qualquer notícia prévia, nas suas praias indefesas e, presentemente, por indígenas nascidos dos ventres inocentes das suas próprias mães, as quais, diga-se de passagem, eram um dos alvos prediletos dos vitupérios lançados por D. Filismina, com razão ou sem ela (p. 16-17).
Por meio dos sete relatos ficcionais apresentados, os narradores, nada indiferentes à situação de Angola, apontam contextos que delineiam o cenário atual do país. Entre eles, há a descrição das várias violências a que as mulheres angolanas ainda são submetidas; críticas àqueles cidadãos angolanos que defendem a Europa como um continente civilizado e superior ao seu próprio país e que não hesitam em viver como se fossem europeus; a situação da imigração no país, especialmente a presença do imigrante chinês.
Uma das grandes facetas de João Melo em O perigo amarelo é a forma como o autor aborda em seus contos questões teóricas acerca da constituição e da designação do narrador e a discussão sobre a construção da narrativa literária por meio da metalinguagem. Tudo isso permeado pela ironia bem construída e que contribui para a construção do humor no texto.
O primeiro conto, que leva o título do livro, trata da intensa presença dos imigrantes chineses em Angola. A personagem principal é dona Filismina que, motivada por notícias falsas recebidas pelas redes sociais, desenvolveu aversão a esses estrangeiros: “Uma pessoa olha na esquerda, um chinês. Olha na direita, dois chineses. Os madiês estão em todo lado. O meu filho disse-me que são bilhões... Porra!” (p. 19).
Em meio à história de dona Filismina e seu horror aos chineses que só estão preocupados com os investimentos em África, o narrador de Melo insere uma crítica ao colonialismo português e seus binarismos estereotipados contra os angolanos:
Estimada professora portuguesa que acha, com toda a razão, que os escritores angolanos não sabem escrever: na nossa versão da lusitana língua, o advérbio “através”, ao contrário do que esforçadamente nos ensinou, não significa “por intermédio de”, mas, sim “por causa de” ou “devido a”. Sugiro, pois, que não tente corrigir os amigos de D. Filismina, pois eles não têm culpa das malhas que o ex-Império teceu. São suas vítimas tardias, pelo que só apanharam os estilhaços.
Seja como for, D. Filismina estava imune, felizmente, a essas discussões pós-coloniais. A sua obsessão era o perigo amarelo. (p. 23).
A ironia de Melo se confirma ao afirmar que a professora portuguesa tem razão ao achar que os escritores angolanos são inferiores aos portugueses para, logo a seguir, discorrer o seu conhecimento semântico a respeito dos sentidos da língua portuguesa. Mais adiante, ele aponta como a colonização portuguesa imprimiu prejuízos à nação angolana que reverberam até os dias atuais.
No conto “O país está desgovernado”, Melo (2023) aponta suas considerações sobre a questionada democracia angolana. É um conto em que as alegorias estão presentes durante toda a narrativa, objetivando demonstrar o quanto há de farsa no denominado estado democrático angolano. O protagonista, Jorge Kalupeteka, é um homem cujo principal defeito era ter várias mulheres:
Assim, enquanto os amigos falavam mal do governo, da oposição e dos autodeclarados independentes, ele concentrava-se no único assunto que o fazia realmente ser vivo: mulheres. Sim, Jorge Kalupeteka era um mulherengo. (p. 33).
Dessa vez, a aventura amorosa de Jorge era com uma das esposas de um general. A senha combinada para que se desse o encontro sem que o marido descobrisse era “O país está desgovernado”. Os elementos apontados na imagem do adultério da esposa do general que, além de militar, é também empresário, bem como a senha que indicava a liberdade para a transgressão apontam, alegoricamente, para uma nação que vem sendo, continuamente, adulterada por interesses individuais e políticos. O preço, inevitavelmente, é pago pela população:
As consequências do seu caso com a Diva Bumbum, no entanto, eram tão legítimas para justificar essa afirmação como as suas queixas contra a falta de água ou de luz, o trânsito na cidade ou a corrupção que todos criticavam, mas que já se transformara numa espécie de desporto nacional (todos ou quase todos a praticavam) (p. 47).
A essas alegorias, juntam-se outras representações como “relacionamentos ambíguos e suspeitos” (p. 35), o ministro de combate à pobreza que lutou apenas contra a sua própria pobreza, o partido governamental, manifestações secretas, agentes da ordem que realizam escutas autorizadas e não autorizadas pela justiça. Todas as referenciações apresentadas culminam na crítica que o autor faz à constituição e à estruturação do estado angolano.
A partir de uma história cômica sobre um relacionamento amoroso, João Melo desfia denúncias sobre o sistema governamental de Angola que, embora seja considerado democrático, demonstra caminhar em direção contrária, como é possível observar no trecho abaixo. O fragmento retrata o momento em que Jorge é quase preso pela polícia sem qualquer ordem judicial:
“Abre!, Abre!, Abre a merda da porta!... Rápido!, rápido!... É a polícia!...” A diva escondeu-se na casa de banho. Abri. Um grupo de matulões à civil entrou na sala, derrubando tudo à frente deles, algemou-me imediatamente e obrigou-me a sentar no sofá. “O computador? O computador?”, perguntavam os resolutos agentes da ordem. Eu nunca usei essas merdices, como sabem. Nem consegui abrir a boca. O chefe do grupo dirigiu-se a mim incisivamente: “Ouve lá, seu sacana! Quem te autorizou a dizer que este país está desgovernado? Quem mais sabe disso? Quantos é que partilharam essa informação secreta? A quem a transmitiram? Estás fodido, meu, temos a informação de que o cabecilha dessa conspiração és tu!...” [...] Estás preso! Vamos lá ver se na prisão falas ou não falas...”, disse o chefe dos agentes. (p. 42-43)
Jorge é quase preso por ter usado em vários telefonemas com a Diva Bumbum a senha em que afirmava que o país estava fora de controle. De acordo com o narrador, o protagonista fora surpreendido pela polícia, pois escutas ilegais apontaram a suposta conspiração.
Uma das riquezas desse conto é a forma como João Melo faz as suas denúncias a respeito da ação fascista descrita. Utiliza a ironia e com ela constrói o humor do conto. Ao final, o leitor se encontra rindo das trapalhadas amorosas de Jorge Kalupeteka, mas com um sinal de alerta na consciência sobre os confrontos vivenciados em Angola. Não há como, nessa estrutura narrativa, não deixar de refletir sobre os conflitos pós-coloniais, nos problemas estruturais e sociais da cidade de Luanda, além do sistema de governo angolano que se apresenta como democrático.
Outro conto que merece destaque é “Uma mulher séria” que traz a história de Ana Maria, a jovem que se envolveu com um homem 30 anos mais velho, o doutor Adérito. O narrador faz questão de frisar que a pretendente a esposa é da idade de alguns dos filhos que dr. Adérito tivera com a esposa anterior. Durante o namoro, Ana Maria recebia de seu amado como presente lingeries sensuais, e elas vinham acompanhadas de palavras como:
Tu és tudo para mim, meu amor!... – dizia ele. És a minha paixão, a minha mulher, a minha putinha, o meu amor... Sim, vou ensinar-te a ser tudo para mim... Até minha putinha, meu amor!... Sim, Ana, a minha putinha!... Sempre que sairmos, quero que vistas estas calcinhas, para que não te esqueças nunca que és a minha putinha, só minha... (p. 79).
Contudo, a situação se modifica completamente logo após a cerimônia matrimonial. A fala sedutora e libidinosa cede lugar ao discurso moralista do representante do homem de bem angolano, preservador e mantenedor da moral, dos valores familiares e dos bons costumes: “Uma mulher séria não pode usar essas calcinhas minúsculas que se usam agora [...] Mulher minha tem de usar cuecas a sério e não esses biquínis que deixam tudo à mostra!...” (p. 65).
Ana Maria é obrigada a usar roupas íntimas em tons cinzas que cobrem toda a região compreendida entre o umbigo e metade das coxas. Nada das cores alegres e vivas das calcinhas, a liberdade e o frescor proporcionado pelo tamanho pequeno das peças íntimas femininas. A ela é reservada apenas a austeridade das cuecas – símbolo da opressão e da imposição masculina –, que mais se aproximam de um cinto de castidade. Uma falsa castidade que leva a pequena jovem Ana Maria a ter cinco filhos do dr. Adérito em cinco anos de casamento. Ela agora engorda cada vez mais. Seu tempo é voltado exclusivamente para o cuidado da casa e dos filhos. Nunca mais saiu com as amigas.
Passaram-se cinco anos desde o seu casamento. Cinco anos em que ela teve exatamente cinco filhos. Cinco anos em que deixou praticamente de falar com as antigas amigas. Cinco anos em que não ousou olhar, mesmo por acidente, para qualquer outro homem. Cinco anos em que, sem se dar por isso, engordou diariamente. Cinco anos em que nunca mais vestiu uma calcinha daquelas que ela gostava de usar e que, na realidade, não eram tão ousadas assim, mas em que passou única e obrigatoriamente a usar aquelas coisas enormes que o marido lhe impingia, umas cuecas gigantescas que lhe cobriam todo o corpo, do umbigo ao meio das coxas. (p. 79)
Ao se ver no espelho e não reconhecer a imagem que ali se projeta, vestida com cuecas cinzas que chegam à metade das coxas, Ana Maria sente vontade de se libertar. Seu primeiro ímpeto é cortar as cuecas com uma tesoura e declarar a sua liberdade. Suas forças levam-na, no máximo, ao choro contido em sua cama.
Nesse ritmo de contar histórias de Angola, mais precisamente de Luanda, é que João Melo nos apresenta o seu país. Não o país geográfico, mas a nação em sua intimidade, no segredo das casas, das pessoas cujos ancestrais vivenciaram a exploração colonial. Embora a vivência seja anterior, residentes no passado, as consequências se encontram no presente que guarda os reflexos fascistas e ditatoriais. Esses são representados por personagens que encarnam governos corruptos, ministros de estado que utilizam suas amantes para realizarem seu tráfico de entorpecentes, homens que dominam, subjugam e humilham suas mulheres. Cidadãos considerados de bem que não aceitam a identidade angolana e consideram as demais pessoas de seu país como inferiores.
Permeando todos os casos, está a literatura que:
[...] não serve para dar sermões e muito menos lições de moral. Ou seja, para eles, a literatura não passa de uma tautologia. Eu sei perfeitamente que essas seráficas figuras apenas empunham a bandeira da neutralidade constitutiva da literatura quando isso convém aos seus interesses [...] (p. 54).
Novamente o leitor se depara com a ironia de João Melo, mas aqui mais ácida, afrontando diretamente aqueles que usam da literatura como um suposto lugar de neutralidade, desde que os próprios interesses sejam mantidos. Melo (2023) toma o texto literário como um campo de denúncias, mas sem abandonar a boa escrita e elaboração literária:
Não é todos os dias que uma personagem coincide com o narrador. Como sabem melhor do que eu, este é traído muitas vezes pelas suas próprias personagens, que evitam os caminhos originalmente desenhados para elas, rejeitam certas palavras e mesmo frases inteiras que o narrador pretende pôr-lhes na boca e, no limite, se recusam a aceitar o destino que este último julga, presunçosamente, ser o mais justo e apropriado para elas. Algumas, mais rebeldes, não aceitam inclusive os nomes que o mesmo, a muito custo, logra atribuir-lhes (p. 52-53).
O perigo amarelo, de João Melo, é livro imprescindível para aqueles que desejam conhecer a Angola atual, compreender seus conflitos sociais, ler os reflexos, ou estilhaços, como o autor destaca, que a colonização deixou no país. Ler João Melo é entrar em contato com a literatura contemporânea angolana que, utilizando a ironia e o humor, faz diversas denúncias, a fim de contribuir para a formação de uma nação angolana com melhores condições de vida para a sua população.
Juiz de Fora, dezembro de 2024.
Referências
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1990.
MELO, João. O perigo amarelo. Rio de Janeiro: Alta Books, 2023.
TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora UNESP, 2018.
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* Érica Luciana de Souza Silva é Doutora em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente no Instituto Federal Fluminense (IFF). Integrante GEED e NEIA.