Memórias e lembranças em Um rio preso nas mãos:
crônicas, de Ana Paula Tavares
Maria Nazareth Soares Fonseca*
A escritora angolana Ana Paula Tavares, mais conhecida no meio literário de língua portuguesa como Paula Tavares, é poeta, prosadora e historiadora. Nasceu no Lubango, província da Huíla, Sul de Angola, tendo sido revelada, no gênero poesia, em 1985, com o livro Ritos de passagem, publicação da União dos Escritores Angolanos. Após Ritos de passagem, de grande sucesso de público, a escritora publicou, na área da literatura: O Sangue da buganvília – 1998 (crônicas), O Lago da Lua - 1999 (poesia), Dizes-me coisas amargas como os frutos – 2001 - (poesia), Ex-votos - 2003 (poesia), A Cabeça de Salomé – 2004 (crônicas), Os olhos do homem que chorava no rio – 2005 (romance, em parceria com Manuel Jorge Marmelo), Manual para amantes desesperados - 2007 - (poesia). Como veias finas na terra – 2010 (poesia), Verbetes para um Dicionário Afetivo – 2016, em parceria com Manuel Jorge Marmelo, Ondjaki e Paulinho Assunção), Um rio preso nas mãos – 2019 – (crônicas).
O livro Um rio preso nas mãos, editado no Brasil pela Editora Kapulana, em 2019, é composto de 38 textos curtos anteriormente publicados no jornal angolano on-line Rede Angola. São textos que versam sobre diferentes aspectos da realidade angolana e, por vezes, a fatos terríveis da História de Angola e da África. Não por acaso, a crônica “Carta a Francisco”, da parte intitulada Ananapalavra, remete ao genocídio praticado por colonizadores alemães, na região da Namíbia, onde foi morta, entre 1904 a 1908, a maior parte dos povos Herero e Nama. A crônica retoma dados desse genocídio em que foram utilizadas táticas de extermínio para afirmar o poder de nações europeias, após a Partilha da África que, como o próprio termo indica, dividiu a África em territórios a serem ocupados por colonizadores europeus.
Nas demais crônicas dessa parte são retomados fatos e hábitos do tempo da colonização. As figuras da “madrinha” e do “padrinho”, na crônica “Estórias de Ananapalavra”, remetem ao costume de meninas e meninos africanos serem introduzidos em casas dos colonizadores para serem criados com severidade e mesmo com violência. Na crônica “A carta secreta de Ananapalavra ou a morte dos poetas” são escavadas lembranças e recuperadas vozes que anunciam o tempo de “acender a candeia” para que a luz ilumine a “complexidade da linguagem destinada a fixar substâncias voláteis com as palavras” (Tavares, 2019, p. 23).
Na parte “Iniciação”, as crônicas tratam de rituais. O ritual de iniciação à escrita orientada pelo uso do dicionário motiva a crônica “Nós o dicionário e a professora Dina”. Uma outra crônica da mesma seção refere-se ao livro Na casa do meu pai: a África na filosofia e na cultura, considerado, pela autora, um ritual que “franqueia as portas da casa do pai” (p. 32), que tanto pode significar a casa da família Kwane, em Gana, como a casa-continente, a África. Outros rituais são tratados nas crônicas “A lebre e o camaleão (conto cokwe – versão abreviada) e em “Aprender a falar a língua de Angola”, que se faz ritual de aprendizagem das transformações operadas pelo escritor Luandino Vieira em seus livros, nos quais “Luanda, a cidade cabe inteira” e “a língua de Angola abre as portas no português” (p. 36), com seus falares e com a riqueza de seus missossos.
Na parte “Mulheres”, chama a atenção a crônica “E por que é que elas não podem brincar?” que, iniciada pelo provérbio Kwanyama “Cada boneca tem a sua própria fala e nós aprendemos a ouvi-las”, trata das bonecas com que as meninas africanas brincam e se preparam para o exercício da maternidade As bonecas podem ser feitas de madeira, osso, argila, pano, recebem nome que lhes é dado pelo primo do lado materno, nome que deve ser pronunciado todos os dias. Cada boneca é transformada pela arte de as meninas as enfeitar e brincar com elas “enquanto ninam as bonecas nos seus braços de sonho e de futuro” (p. 46).
Na última parte, denominada “Culpa”, a crônica de mesmo nome alude a regras e imposições que, cultivadas em casa, se estendiam a dimensões onde imperam “atos, delações, desejos” (p. 57). A crônica “A casa do Bungo” refere-se aos temores e segredos que criam os fantasmas que habitam os “territórios antigos onde repousam histórias e sonhos de saber e encantar “(p. 59). A crônica tem epígrafe sugestiva de Manual de Barros que refere a fantasmas, a abismos e ao que é expulsado para as profundezas e lugares mais secretos.
Várias crônicas dessa parte dizem de pactos alargados pela culpa que se faz presente em todos os espaços e contamina a todos. Nem sempre as culpas conseguem sufocar o sonho ou as maravilhas depositadas nos “cestos da tradição”, nos quais se guardavam “o pó dos alfabetos” (p. 62) e “as palavras perdidas de tantas vozes em português e noutras línguas” (p. 63), como poeticamente se diz na crônica “A cor das vozes”. A figura da avó, na crônica “Os das nuvens”, retoca os traços da tradição de contar histórias e do encantamento provocado pelas histórias contadas pelas avós que têm o dom de encantar e adoçar os enredos “conforme a violência e do medo de cada um” (p. 66). As culpas são vestidas de trajes vários em cada crônica: passam pelos “cadernos de deve e haver” (p. 78), na crônica de mesmo nome, mas também pelos momentos em que a terra já não consegue abrigar os que seguem, cansados “à procura de pão”, tema da crônica “Errâncias” (p. 84).
Como acentua Carmen Tindó Ribeiro Secco, no prefácio ao livro de Paula Tavares, “a escrita vai acendendo pequenos lumes que funcionam como “avisos à navegação, como alertas contra a violência e a ganância que destroem o sonho” (SECCO, 1919, p. 10).
Belo Horizonte, dezembro de 2024.
Referências
TAVARES, Ana Paula. Um rio preso nas mãos. São Paulo, 2019.
SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. Avisos à navegação. In: TAVARES, Ana Paula. Um rio preso nas mãos. São Paulo, 2019, p. 7-10.
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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A partir de 2021, coordena a seção literÁfricas, no literafro/UFMG, que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos sobre/de escritores(as) africanos(as) e afro-diaspóricos(as). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.