O romance em Angola: a identidade entre a história e a poesia[1]

Rita Chaves[i]

Por breve que seja, um olhar sobre a literatura angolana percebe a predominância de linhas direcionadas à procura da identidade nacional. Do século XIX aos nossos dias, construir-se enquanto escritor e construir a nação têm sido faces de um mesmo projeto. Isso significa que, ao protagonizar cenas não propriamente invertidas por ele, o escritor angolano vem assumindo, entre as suas, a função de fazer e refazer a história de um território e seus povos que, despedaçados e rejuntados pela ordem colonial, têm no horizonte a unidade ainda interditada pelas circunstâncias do presente. Noutras palavras, num universo estabilizado sob o signo permanente da crise, escrever, sabemos todos nós, tem significado, de várias e diversas formas, escrever Angola.

No campo da poesia, essa hipótese se comprova com extrema facilidade através de um vasto repertório que inclui de Maia Ferreira a Paula Tavares, passando por Agostinho Neto, Antonio Jacinto e Viriato da Cruz, Costa Andrade e Ruy Duarte de Carvalho, sem tocar nos mais jovens. Referendada pela valorização das coisas da terra, a busca da identidade nacional revelou-se em muitos momentos, um compromisso programático, como está nítido nos propósitos anunciados e na obra deixada pela “Geração de 50”. Nos textos desses e outros autores, a escolha temática, a elaboração das imagens e a seleção vocabular indicam o enraizamento na terra angolana como uma das matrizes fundamentais da construção poética que ali emergia. Sem se definir claramente como um elemento desse programa que, desde o século passado, motiva intelectuais. O  romance em Angola – foco de nossa atenção – também revela em seu percurso marcas do empenho posto na aliança entre o conturbado processo histórico e o interessado projeto literário.1

De 1934 – data da publicação de O segredo da morta: romance de costumes angolenses, de Antonio de Assis Jr. – aos anos 60, quando a obra de José Luandino Vieira vem consolidar a presença do gênero na história dessa literatura, o romance pode ser visto como construção literária emblemática das expectativas das expectativas das várias gerações imbuídas do desejo de liberdade política e autonomia cultural. Em seu roteiro, a valorização dos elementos constitutivos da nacionalidade ultrapassaria os limites da referência para apoiar-se numa atitude investigativa capaz de conduzir a um conhecimento de caráter analítico, no qual intervêm os dados da Geografia, da História e de diversos ramos das Ciências Sociais. Na trajetória dessa forma literária que assinala o avanço da escrita numa sociedade centrada na tradição oral, podemos ver projetados muitos sinais da ambiguidade e da contradição tão intrinsecamente presentes na formação social angolana.

Ciente dos riscos que todo recorte impõe, penso poder dividir a história dessa formação em quatro etapas, observando em cada uma delas traços representativos de distintos pontos de vista diante da realidade que cada escritor quer captar, considerando que, para além das diferenças pessoais, a diversidade traduz visões de mundo diferenciadas e correspondeu a diferentes posturas políticas no curso da história colonial. Assim, Assis Jr., Castro Soromenho, Óscar Ribas e José Luandino Vieira serão vistos também como atores de momentos singulares no quadro político-cultural por cuja transformação cada qual a seu modo lutou. No conjunto temático trabalhado e na estratégia narrativa que cada um adotou revelam-se os sintomas de concepções literárias afinadas com a sua inserção no processo constitutivo da identidade nacional.

Em O segredo da morta: romance de costumes angolenses, localizamos o marco inicial da história do romance em Angola.2 Através dessa obra, Assis Jr. oferece-nos um painel da vida de populações fixadas em torno de Luanda e localidades situadas nas atuais províncias de Icolo e Bengo, Malanje e Kwanza Norte, numa época em que a aceleração econômica gerava intensas mudanças no plano cultural. Do ritmo dessas mudanças decorre a conjugação de valores representativos de dois universos em princípio antagônicos, cujos traços podem ser detectados no fundo e na forma dessa narrativa, assinalando no interior desse sistema literário, a opção pelo gênero identificado por Hegel como a épica de um mundo prosaico. Inscrito no subtítulo da obra, o termo “romance” parece sugerir a direção pretendida pelo autor, de onde não estaria ausente a vontade de combinar o próprio da fantasia com uma prática analítica favorável ao conhecimento do real. Com efeito, a complexidade da ordem social em Angola reclamava um modelo literário capaz de cumprir uma pluralidade de funções a exemplo do que havia ocorrido no período romântico no Brasil, como muito bem argumenta Antonio Candido em sua notável Formação da literatura brasileira (1981).

Entre as duas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, o aquecimento comercial permitiu a formação de uma pequena burguesia nativa que ia ocupando os espaços não preenchidos pelos colonos portugueses. O sucesso econômico gerava entre os africanos aí situados o desejo de incorporar hábitos dos colonizadores, vislumbrava-se nesse gesto a possibilidade de confirmar no simbólico as conquistas alcançadas no terreno do concreto, ratificando o estatuto de “civilizado” a que acreditavam fazer jus. A incorporação de costumes, contudo, não implicaria uma completa substituição de valores, facultando, ao contrário, a coexistência de referências tributárias de universos culturais distintos. Não se pode esquecer que, ao lado dessa camada muito apta a desfrutar dos privilégios abertos pela acumulação, sobrevivia um grande contingente de angolanos mantidos à margem de qualquer direito. Embora a escravidão estivesse oficialmente abolida – como não chega a ser raro nas sociedades periféricas – sob a égide do liberalismo burguês, os trabalhadores enfrentavam, em sua grande maioria, condições de vida muito precárias. No quadro traçado por Assis Jr., não afloram cenas de brutalidade. Entretanto, implícita na aceitação das graves diferenças e na humilhação imposta aos deserdados da sorte, a violência continuava a fazer suas vítimas.

Sobre esse terreno, as mudanças se processavam de modo brusco, mexendo nas bases da tradição, cuja dinâmica se alterava no compasso da dissolução de alguns hábitos e da inauguração de outros. Entre a perda do passado e a alusão ao futuro, as experiências pautavam-se pela imprevisibilidade, elegendo a dualidade como seu signo essencial. Expressando a atmosfera algo dilemática de que a narrativa se reveste, observamos em seu desenrolar a presença de pares como africanos/europeus, servos/senhores, profano/sagrada, passado/futuro, escrito/oral, vida/morte. Trabalhado no eixo temático, esse caráter dual seria confirmado pelos elementos estruturais do romance. Assim, na elaboração das personagens, no tratamento dado ao tempo, na montagem do espaço e, sobretudo, na constituição do foco narrativo, alinham-se os pontos que no desenvolvimento das ações tematizam a convergência de valores representativos da matriz e da colônia. A sintetizar esse movimento, inscrito no encadeamento do enredo, temos a articulação entre o jeito de ganhar a vida e o modo de viver a morte.

Nas oposições levantadas entre as ações que modulam essas duas experiências podemos situar a contradição fundamental do mundo abordado pela narrativa. Trata-se de um mundo balizado por relações comerciais, em que as atividades de compra e venda constituem o modo possível de ascensão. A lógica prevalecente é, portanto, a lógica dos negócios, na qual a ética é regida pela ideia de lucro. As peculiaridades porventura presentes vêm aludir apenas às especificidades do sistema colonial, em que os enganos e a violência mostram-se necessários ao incipiente processo de acumulação de capital. Nos capítulos X (“O assalto”) e XV (”A nuvem”), desenrolam-se episódios reveladores dos artifícios utilizados na conquista de fortunas no período colonial, contribuindo para a desmitificação de uma das imagens mais caras à propaganda da ideologia colonialista, a do valente batalhador (proveniente da metrópole ou já nascido na colônia) como responsável pelo desenvolvimento e progresso daquelas terras e merecedor indiscutível da superioridade de que desfrutava.  Branco ou negro, para enriquecer e ascender socialmente naquela ordem, o caminho utilizado não poderia afastar-se do percorrido noutros lugares. O roubo ou o logro revelavam-se os modos mais eficientes para atingir o alvo.

Se no domínio do concreto predomina a ótica do pragmatismo, no campo das subjetividades o prisma será outro e as ligações conhecerão outros vetores. Muito à vontade no emprego de táticas identificadas com o eufemisticamente reconhecido “tino comercial”, os integrantes dessa pequena burguesia apresentarão comportamentos muito diversos diante das questões afeitas à religiosidade. Na esfera do mundano, portanto, os modelos da metrópole exercem sua sedução; na relação com o que se aproxima do sagrado, o enraizamento na terra expõe sua densidade. Isso significa que, se os métodos de ganhar a vida se assemelham aos dos colonizadores, na forma de conceber a morte instaura-se a grande diferença, fazendo emergir de modo cadente o problema da identidade cultural, visto que é precisamente nesse abismo que se patenteia uma outra e especial maneira de estar no mundo.

Presente já no título da obra, a ideia de morte corta todos os momentos da narrativa e corporifica-se nas constantes referências às atividades ligadas ao ato de morrer. Do testamento aos rituais posteriores à “passagem”, tudo será captado pelo narrador,  disposto a oferecer um mosaico da ordem social enfocada, realizando assim o propósito do autor que na “Advertência” anuncia:

Este livro é para ser lido por todos aqueles, pretos e brancos, que mais decididamente se interessam pelo conhecimento das coisas da terra. A vida do angolense, que a civilização totalmente não obliterou – aquela civilização que se lhe impõe mais por sugestão e medo do que por persuasão e raciocínio, vivendo a seu modo e educando-se consoante os recursos ao seu alcance -, representa ainda hoje um problema de não fácil solução (Assis Jr., 1979, p. 32)

No roteiro do “conhecimento das coisas da terra” é que se eleva o arsenal de conceitos associados ao exercício da morte. Espalhadas por todo o texto, as alusões ao fenômeno apontam para a sua relevância enquanto princípio ordenador da própria vida. Ao ultrapassar os limites da degradação do corpo biológico, a morte situa-se numa outra dimensão, por onde circulam noções alimentadas no quadro de um complexo terapêutico-religioso cuja raiz está num outro campo relacional. Nas práticas culturais dali decorrentes, incluindo-se a relação do homem com o reino do espírito, projetam-se elementos articulados em diferentes níveis da ordem econômica, familiar, religiosa e cultural ali representados. Vale, pois, atentar para a natureza das diferenças recobrindo as situações em torno das várias mortes ali ocorridas, observando a relevância do lugar social do morto, posto em destaque pelos dados que cercam o fato.

O curso das ações em torno da doença e da morte de Ximinha Belchior, a morta que guarda o inquietante segredo, converte-se em configuração exemplar dessa concepção assumida por muitas sociedades da África. Tão enigmática, a atmosfera que em volta dela se arma indica que a ocorrência fatal não pode ser vista como natural. No desenrolar dos dados enfeixados pelo enredo, compreendemos que ela morre para que sua voz tenha mais alcance, ou seja, ela morre para falar. A aura de silêncio comumente por nós associada à morte é desfeita naquele contexto em que a capacidade de intervenção dos mortos revela-se uma excepcional fonte de poder.

Na atitude do narrador em face da matéria por ele organizada, também se podem ler os indícios expressivos das diferenças colocadas pela morte de cada personagem. A ênfase posta no tratamento das cenas exprime um ponto de vista muito atento às especificidades daquele universo cultural. A riqueza de algumas descrições, o detalhamento de certos ambientes, as referências pormenorizadas de determinados procedimentos atestam a importância de acontecimentos cujo significado transcende o aparente ou previsível. Através da mão segura do narrador, o leitor pode percorrer as trilhas sinuosas por onde se concentram as referências da identidade em processo. Cabe ressaltar que a força do plano da morte faz interromper o ritmo acelerado da vida prosaica movida pelos negócios. As razões do interesse pecuniário são minimizadas em nome de valores mais altos. Contra o apego à retenção acumulativa surge o senso da desmedida organizando tudo o que se refere ao plano do sagrado. E na própria exuberância descritiva das cerimônias relativas à morte, em cuja realização percebe-se muitas vezes a transformação do ato religioso em evento social, sobressai a intenção de conferir relevo à diferença num espaço marcado pela coexistência de valores em tese contraditórios.

A eleição da terra angolana como expressão de uma atitude de resistência será mantida no segundo momento da história do romance em Angola. Protagonizada por Castro Soromenho, a cena será então deslocada para outro espaço e tingida com outras cores. Instalada na região da Lunda, a nordeste de Luanda, a capital sempre sedutora, a câmera assumida pelos narradores de Noite de angústia, Homens sem caminhos, Terra morta. A chaga e Viragem vai incursionar pelo território inóspito em que se multiplicam as evidências da derrota colonial. Se em O segredo da morta é possível detectar a positividade de algumas sementes, na obra de Soromenho espalham-se quase que exclusivamente as marcas da destruição.

Ancorada num terreno seco e poeirento, a escrita áspera desses cinco romances não dispensará a contradição como signo essencial, mas a focalizará sob outros aspectos. A oposição entre colonizados e colonizadores será explicitada de maneira mais crua e a síntese só se fará possível na chave do fracasso. A hipotética mistura dos mundos, muito raramente aludida, sobrepõe-se a descrença nessa aproximação.  Trata-se de remarcar a impossibilidade dessa ordem apoiada pela violência e pela exploração. Se, como personagem, citado em seu próprio texto como o “Monteiro” que em Terra Morta, “em vez de cobrar os impostos e mandar gente para as minas, anda metido pelas senzalas a ver como os pretos vivem e a ouvir histórias”, Soromenho denuncia a sua simpatia pelo mundo dos pretos, os narradores que conduzem suas narrativas optam por um olhar distanciado, em cujas retinas projetam-se as sombras da desagregação. Diante de seus sentidos, nada parece salvar-se. O método analítico intrínseco ao romance só pode levar a resultados inquietantes. Conhecer a terra nesse sentido é reconhecer as mazelas geradas por um processo deteriorado na origem.

A conjugação de contrários referenciada por Assis Jr. Cede lugar à noção de ruína, que se eleva como traço fundamental da narrativa. Visto dramaticamente, o contato entre invasores e invadidos projeta-se na forma de um conflito fatal a todos: a incomunicabilidade é a marca dominante num cenário em que as experiências se pautam pela brutalidade e pela desesperança de ambos os lados. Em A chaga, a fala de Lourenço, o colono que enterrou sua vida na busca de uma compensação que não virá, expressa a sensação de falência em uma só frase. Em desalentada conclusão, ele murmura: “Tudo foi inútil e absurdo” (1985, p. 139). A avaliação dos resultados de tantas ações resume a vanidade de tantos investimentos, dos sacrifícios, das intenções e propósitos, da violência sofrida e perpetrada, para auferir lucros ou “em nome da civilização”, como ironicamente complementa a mesma personagem. Na rica região dos diamantes, a precariedade e a impotência, que a todos irmanam, não permitem dúvidas: a perda é total. Nas ações e nas palavras – tão parcas – de todos, recortam-se as notas da alienação.

Cobrindo tudo, a desgraça da alienação contamina todos os aspectos das vidas enfocadas pelos romances de Castro Soromenho. No plano narrativo, todos os elementos parecem norteados pela inviabilidade, ressaltando a automatização dos gestos dos personagens conduzidos por caminhos repetitivos, fazendo com que a ordenação do enredo reflita o sem sentido tematizado pelo escritor. Dessa maneira, a frase de Lourenço, pronunciada em A chaga, teria lugar em Viragem e/ou Terra morta. Em todos, as cenas só podem exprimir a mesma sensação de inutilidade que vem da certeza do fracasso do projeto colonial.

Resultado da crueldade de um processo histórico que tende a desenraizar os homens, roubando-lhes o direito a qualquer atividade que lhes possa confirmar a humanidade, a alienação projeta-se na geografia literária que os romances instituem. O espaço é, sem dúvida, a grande referência da narrativa de Soromenho. Inóspita, a terra – pela qual organiza-se o modelo imperial que moveu o colonialismo – mostra-se hostil aos habitantes,  impondo-lhes o desconforto de um tempo sujeito a nenhuma amenidade. A temperatura é sempre muito quente, a terra poeirenta, gerando uma atmosfera de torpor nada propicia a reações positivas, voltadas para a transformação daquela hora. Ao contrário, paira um clima asfixiante, em que a violência da situação sociopolítica parece combinar-se a condições ambientais desconfortáveis. Nesse contexto, elevam-se as doses de apatia e impotência.

A sensação de letargia, que caracteriza o movimento (ou a falta de) dos personagens e a desenrolar do enredo, contamina o gesto de narrar, privado, então, da possibilidade da experiência como base. Apartado do mundo sobre o qual deita seu olhar, o narrador vale-se da informação, o que o leva a apoiar-se estratégias de cunho jornalístico.3 Nesse quadro, podemos compreender a opção por uma linguagem que se pretende isenta, próxima da força mimética trabalhada pelas formulações do neorrealismo. À maneira dos neorrealistas, o narrador de Castro Soromenho parece acreditar que, de tão poderosa, a realidade não precisa ser mais do que registrada. Assim a objetividade descritiva converte-se num procedimento literário empenhado na denúncia de uma situação cuja transformação requer atitudes situadas fora do texto. A isenção, portanto, não se confunde com a indiferença, mas quer ser um modo eficiente de se conhecer a real condição de um processo falado à derrota. Nesse sentido, a exploração do espaço no processo de estruturação da obra ergue-se como uma estratégia eficiente e o foco narrativo confunde-se propositalmente com uma câmera cujas lentes focalizam impertubavelmente o chão duro e seco por onde se movem sem qualquer vivacidade as personagens condenadas a uma espera em que não se anuncia nenhuma expectativa.

Os homens e os bichos abandonaram, medrosos, a fúria do rio. Só a floresta lhe oferece luta, obrigando-o a revolver-se no labirinto das suas árvores e a desviar-se aqui e ali das barreiras dos cipós. Enfurecido, o rio atira-se contra a floresta, que o tenta apertar no leito, invade-lhe as terras sombrias, abre-lhe rasgões por onde estende os seus braços, envolvendo-a e pondo a nu raízes seculares (...).

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Anoitecia cedo. Poucos negros vinham à vila e não se demoravam para a noite não os surpreender nos caminhos de feras.

Os comerciantes molengavam todo o dia, encostados ao balcão imundo das lojecas. Quando aparecia um agricultor indígena a vender géneros do seu celeiro para pagar uma dívida ou imposto atrasado de parentes pobres que os sipaios procuravam para os trabalhos públicos ficavam ao balcão de conversa pegada.  O negro contava de sua vida e da vida do povo. Depois, falava dos brancos e pedia conselhos sobre uma queixa que queria apresentar na Administração.

Na Secretaria, Sampaio e Américo bocejavam, amolecidos pelo calor e sem terem nada que fazer. Estavam cobrados os impostos e era raro passar-se uma guia de trânsito, porque o indígena não gosta de viajar em época de trovoada. E poucas questões lhes eram trazidas pelos homens nus, que só quando de todo descrêem da justiça do soba apelam para a do branco, acabando, em geral, por voltarem ao soba e sujeitarem-se à sua decisão. (1985. p.166-8)

O destaque dado ao espaço enquanto elemento estrutural do texto literário será mantido na trajetória desse gênero literário em Angola, cuja terceira etapa julgo poder identificar num texto da década de 50, em que se pode notar também uma mudança no cenário. Deslocando-se do interior arrasado pela empresa colonial, a atenção cairá sobre o chão sacudido da capital: a cidade de Luana, “terra de brancos”, como a vê Severino, de A chaga, será o palco das aventuras narradas em Uanga: feitiço, de Óscar Ribas, escritor essencial para se compreender importantes fenômenos que envolvem a complexidade das relações entre colonizados e colonizadores. Por isso, antes de focalizar o texto, cabem algumas observações a respeito de seu autor, dono de um itinerário de profunda importância na história das ideias em Angola. Conhecido principalmente pela edição de Missosso, que reúne uma significativa amostragem da tradição oral africana, Óscar Ribas revelou-se sempre um homem interessado nas manifestações culturais de sua terra, dedicando atenção, inclusive, a setores, via de regra, desprestigiados pelo universo do saber, como é o caso da culinária: é de sua autoria um interessante livro de receitas das muito merecidamente famosas comidas de Angola.

O inegável apreço pelas coisas da terra e a preocupação pelo destino de seu patrimônio cultural não podem esconder, todavia, o desconforto a que se vê condenado o intelectual imprensado entre as contradições que permeiam as relações nas sociedades coloniais. Em sua obra – e o romance em causa é exemplar – registram-se os sinais de uma impressionante ambiguidade, consequência, certamente, do jogo armado entre sua vontade de não deixar que se perdessem os chamados valores de raiz e um pesado complexo de inferioridade por conhecer o risco de ser associado a uma esfera de padrões de que se sente (ou quer se sentir) afastado. É preciso aqui ter em conta o que pode significar ser negro numa terra onde dominam os brancos racistas e letrados e os negros são majoritariamente analfabetos. A crise de identidade se faz previsível e toda a sua boa intenção não seria capaz de recobrir harmoniosamente as lacunas deixadas pela experiência do desenraizamento a que estão fadados os homens em tal condição.

O delineamento do quadro histórico de Angola nessa fase explicita a complexidade da situação do nosso escritor. Vivia-se lá o tempo do conhecidíssimo movimento dos “Novos Intelectuais de Angola” que, a partir de iniciativas culturas, com grande destaque para a literatura, pretendia mobilizar setores capazes de impedir que a atmosfera fervilhante do pós-guerra tivesse grandes repercussões nas colônias. A repressão se redobrava, buscando minar, com incursões no campo do imaginário, a resistência dos povos desejosos de um outro lugar na organização das nações. Sobretudo através da poesia, lançavam-se propostas de valorização do universo angolano com os textos norteados  por uma tonalidade fortemente política. Desse movimento, em que germinam as sementes da moderna literatura angolana, não toma parte Óscar Ribas. A impetuosidade da poesia contrastava com o exercício retraído da prosa, que só ganharia intensidade na década seguinte, como veremos através da obra de José Luandino Vieira. Desse modo, muito embora se possa captar o desejo de promover a cultura tradicional angolana, Uanga distingue-se efetivamente por refletir um pouco a hesitação de uma consciência instalada num momento de tensões e expectativas.

Já no prólogo alinham-se os objetivos do projeto que move o escritor, remarcam-se as suas razões e ressalta-se cuidando o cuidado de não ter o seu mundo confundido com o dos personagens que apresenta ao público.  O romance, por ele definido como “um documentário da sociedade negra inculta”, é fruto de um sério estudo, complementado por entrevistas com representantes desse universo que lhe cabe divulgar antes que o progresso, já reinante, com benefícios e prejuízos, o fizesse desaparecer por completo. O fato de ter nascido na África não basta para garantir a “verdadeira intimidade com o meio”, defende-se o cuidadoso romancista, ressalva que nos pareceria razoável. Surpreende, porém, é que a convivência não seja o bastante para dissolver o indecifrável que ali vigora. Em tais observações visualizam-se alguns dos sintomas de sua complicada posição, confirmada por procedimentos literários capazes de materializar no texto as hesitações experimentadas diante das contradições que, de modo aberto ou não, a vida lhe colocava.

Se, por um lado, falta-lhe intimidade com as práticas culturais que ele quer “salvar” do esquecimento, é nítido o seu esforço para demonstrar a facilidade com que transita pelo terreno da cultura europeia. Expondo sua erudição a todo o momento, o narrador confirma o estatuto de homem culto, integralmente diferente dos personagens por ele apresentados a um público que certamente também não é do “meio”. Na função de mediador, tão bem justificada, compete-lhe a tarefa de facilitar a percepção da obra. Para tanto, prepara uma espécie de glossário e povoa o seu texto com exaustivas explicações que extrapolam o conjunto das ações que organizam o enredo. Desse modo é possível compreender as constantes alusões a algumas danças, à origem de certos topônimos, a tantas práticas culturais cuja difusão é declaradamente um dos objetivos do autor:

Embora palidamente, apresentamo-vos o ambiente dos indígenas de Luanda. A fim de podermos descrever práticas que a civilização conseguiu banir, particularmente nos centros  mais desenvolvidos, fizemos decorrer a acção numa época distante (...) com o intuito de revelar a muitos o grau imaginoso da Raça, desenrolamos uma enfiada de adivinhas, algumas histórias e diversos provérbios, pois, segundo Candido de Figueiredo, “os anexins, ditados aforismos e brocardos constituem o tesoiro da sabedoria das nações, e as suas origens escapam, na sua maioria, à investigação dos curiosos."(Ribas, 1985, p. 18 – 20)

Pela transcrição, compreendemos que a ação está subordinada a uma razão maior: a de dar a conhecer  o “grau imaginoso da Raça”, ou seja, trata-se de por a narrativa a serviço da preservação de um mundo que a “civilização”, esse mal inexorável, vai condenando ao desaparecimento. Afirmando-se como elemento mediador entre esses dois mundos, o escritor procura valer-se do instrumental do romance enquanto gênero, medida acertada, uma vez que nenhum outro poderia dar conta da finalidade de exprimir de forma produtiva esse mundo assentado em princípios antagônicos: o reino da oralidade e o advento de uma organização social já dominada pelo império da escrita. O senso de historicidade e a capacidade de refletir as singularidades dessa fase de transição da sociedade em foco encontram nessa modalidade literária a sua expressão por excelência. A “fidelidade à experiência individual”, apontada por Ian Watt (1990, p. 14-5) como uma das especificidades do romance, cai muito bem na operação a ser desenvolvida por Óscar Ribas.

O senso de originalidade ergue-se, portanto, como um instrumento capaz de deixar mais seguro o autor na sua tarefa de selecionar os elementos com que pretende atingir sua meta. Seu texto nutre-se, dessa forma, de muitos recursos: o conhecimento resultante de muita investigação, com base em leituras, entrevistas e observação empírica dos fenômenos, é ainda alimentado pelo exercício da memória, ajudando a recompor uma realidade já esfumaçada e desprovida de documentação. Nesse caso, a objetividade analítica incorpora-se ao que seria a dimensão fantasiosa da literatura. Uanga cumpre assim a finalidade de gerar conhecimento sem deixar de responder à necessidade de fantasia que é uma das funções da literatura e o romancista faz comprovar sua capacidade intelectual, como estudioso e como artista.

Não obstante o seu desejo de exprimir a distância – que efetivamente há - entre ele e o mundo que descreve, o narrador não se mantém completamente alheio à força do universo que o rodeia. Isso se torna mais evidente quando a montagem narrativa se deixa contaminar pela atmosfera da tradição oral - um dos fatores essenciais na ordem cultural angolana. Em vários momentos podemos perceber a interferência das histórias que compõem esse patrimônio. É sintomático que nesses momentos o narrador renuncie a sua retórica um tanto “professoral” e abra espaço para que falem aqueles cujo mundo quer tornar conhecido. A passagem do serão, presente no capítulo V – “Noite de luar” – pode ser vista como um grande exemplo dessas mudanças na condução do ato de narrar. Repare-se então a predominância do discurso direto, garantindo aos personagens a centralidade roubada nas longuíssimas sequências descritivas e nos fartos comentários em que se demora a voz do narrador. Essa voz daqui não se ausenta, mas se faz ouvir em orações curtas, coerentes com a leveza da cena a ser apresentada.

Nesses momentos, a erudição  tão conscienciosamente demonstrada perde lugar e a força do texto cresce com o aproveitamento de recursos próprios de tradição oral: a recorrência às lendas, aos jogos de adivinhas, às fórmulas convencionalmente utilizadas para abrir ou fechar o ato de contar histórias. Nessa “Contaminação”, talvez de maneira involuntária, o autor permite-nos (aos leitores que também não são do “meio”) compreender melhor esse universo cultural que declaradamente ele pretendia difundir. Nessas passagens, quando se reduz a clivagem entre o sujeito e o objeto, desvela-se, possivelmente da maneira mais convincente, a complexidade desse universo de que Óscar Ribas, por muito que se defenda, é parte integrante e essencial. Nesse “desequilíbrio’ da organização textual está projetada a ambivalência que tinge a cultura e toca ao intelectual, vítima ele próprio do sentimento de mal-estar que não poupa ninguém situado na engrenagem colonial.

No ato de escrever um texto como esse, o autor exprime sua simpatia por esse “tesoiro de sabedoria”, o que poderia traduzir sua integração ao projeto político que pretendia abrir espaço para esse “saber”. No entanto, na perspectiva que adota é fácil entrever os sinais da contradição a que não se furta. Ao reunir os elementos dessa cultura, ele faz questão de declarar o seu reconhecimento quanto ao estatuto que se pode dar à obra, a despeito de sua utilidade: “Não constitui um romance de sala”. Como no contexto de que nasce, o mundo das “gentes ignaras” não pode inspirar um texto literário refinado. Tal como os seus personagens, o romance tem sua circulação restrita a certas áreas. E o autor, que se vê como um livre agente, assume assim o papel do intelectual constrangido, incapaz de perceber a força das contradições que estão no centro da sociedade em que vive.

Ao percorrer o seu roteiro, vamos observando que a natureza complexa do romance como gênero oferecia aos angolanos a possibilidade de desenvolver o exercício de análise favorável ao autoconhecimento por eles buscado. O realismo formal, enquanto um princípio constitutivo dessa forma narrativa, adequava-se perfeitamente às finalidades definidas por essa literatura desde as suas primeiras horas. O lastro da realidade e o sal da fantasia combinavam-se ali de maneira a propiciar a investigação da terra e conferir vigor às atividades intelectuais e artísticas. Remarcava-se, então, o direito à independência enraizado na elaboração de um projeto em que a dimensão cultural articulava-se à prática política.

O amadurecimento desse quadro, com a campanha pela independência reforçada pela organização de movimentos claramente políticos e a eclosão da luta armada, dá-se num contexto de efervescência cultural. A atmosfera algo do começo dos anos 60 favorece a sedimentação dos projetos no terreno da literatura e fermentará o processo de consolidação do romance através do surgimento de um escritor como José Luandino Vieira. Profundamente identificado com a terra onde tinha sido levado ainda muito criança, Luandino é dono de uma obra que pode ser vista como um marco na formação do gênero na produção literária angolana. Com ele, o romance conquista densidade sem se afastar do chão em que seu imaginário está assentado.

Nesse período, delineava-se mais firmemente o projeto da nacionalidade. No discurso político e nas realizações culturais tornava-se visível a utopia de uma sociedade calcada na pluralidade e no sentido da igualdade. Cindida pelas linhas da discriminação racial, a realidade angolana solicitava uma modificação que se orientasse pela aproximação de gentes e coisas fortemente apartadas pela lei da exclusão. A procura da identidade será, então, projetada no universo luandense, onde, sem dúvida, a radicalização e a visibilidade das contradições históricas exigiam um enfrentamento também radical. A cidade-capital, dividida entre os caminhos de asfalto e os musseques, assoma como o palco confuso das cenas dramáticas que a ordem colonial montava. Mais uma vez, no terreno da literatura, o espaço assume um papel primordial na estruturação da narrativa. Se, pela Luanda, Castro Soromenho fez circular os protagonistas do fracasso e da inviabilidade do velho projeto colonial, por Luanda, com destaque para as zonas suburbanas, mexem-se aqueles que protagonizarão essa nova fase da história. Sobre eles recai o olhar atentíssimo de José Luandino Vieira.

Mestre do conto – ou estórias, como prefere ele próprio chamar -, José Luandino é autor de três belíssimos romances nos quais a argúcia do foco narrativo combina-se a um raro domínio da linguagem. Fiel à crença de que “cada assunto segrega a sua própria estrutura”, como declara em entrevista Michel Laban (p.31), o ficionista trabalha estratégias diversificadas em A vida verdadeira de Domingos Xavier, Nós, os do Makulusu e João Vêncio: os seus amores. Em cada uma, porém, percebe-se a mão segura do escritor que não descura da coerência entre o enredo e a estrutura sutilmente cultivada. Guardadas as particularidades de cada obra, em todas manifesta-se a leitura do patrimônio cultural acumulado no desenrolar da história de Angola em articulação com todo um conjunto de procedimentos disponibilizados pelos movimentos em outras terras. O conhecido dilema entre o localismo e o universalismo, que pode ser visto como um problema inerente à condição colonial, recebe, então, um tratamento especial, testemunhando a maturidade do processo.

Seguindo os caminhos abertos por seus antecessores, Luandino investe na dimensão original do romance e transforma-o em veículo de expressão de uma leitura muito particular do mundo que o rodeia. Claramente identificável em A vida verdadeira, a dimensão histórica, muito cara ao gênero, está presente em todos os textos. Se, ali, a trajetória de Domingos Xavier é contada numa linguagem que permite o reconhecimento dos passos impressos à luta pela libertação em Nós, os do Makulusu são as contradições da guerra colonial a maximizar a complexidade de uma sociedade que vive a experiência de sua própria inviabilidade. A história aqui é apanhada sem os esteios da linearidade, e o fio narrativo se organiza em cima de fissuras, de assimetrias, de cortes sucessivos, tudo a refletir uma ordem que já não abre espaço para o herói exemplar. Nessa sociedade balançada pelo combate das armas, o intercâmbio de experiências ficou inviável. Portanto, inviabiliza-se igualmente o papel do narrador sereno, com total domínio sobre a matéria narrada. Consoantes a esse mundo, os heróis são invadidos pela dúvida, expostos à cadeia de fatos e movimentos próprios desse novo ciclo. Da mesma maneira, o(s) narrador(es) encontra(m)-se tomado(s) pela perplexidade. Cabe-lhe(s) a função de organizar um mundo cujos pilares revelam-se atingidos e a opção é seguir os rumos desordenados da memória, buscando com ela refazer o conhecimento roubado.

Com efeito, o discurso de Mais-Velho em Nós, os do Makulusu guia-se pelo código da memória. É ela que recupera as imagens do passado, é ela que refaz a geografia da cidade, é ela que recompõe os quadros capazes de traduzir o jogo difícil das relações no interior da sociedade colonial, capitando-lhes habilmente os sinais de dissolução. Porque governada por essa linha sinuosa, a narrativa tem fragmentados os seus elementos estruturais. A noção de tempo e o conceito de espaço são relativizados, desconhecendo-se os parâmetros dados pela racionalidade externa. Nessa traição à correspondência com a aparente linearidade dos fatos, está para o próprio autor a marca do sentido histórico.

Em resumo, não me parece possível escrever Nós, os do Makulusu sem ser daquela maneira, como fluxo de memória, que por um lado, como fluxo da memória, se alimenta do passado e por outro lado tem avanços, digamos irreais sobre o futuro (...) Há uma espécie de premonição. Isso é o que, em termos de estrutura narrativa, penso que seja o sentido histórico. A visão da história que faz com que o narrador invente e minta em relação ao futuro que ele ainda não conhece, mas que põe como se já soubesse que vai suceder assim, como aliás depois sucede. (Vieira, 1980, p. 32)

Se em A vida verdadeira, o foco narrativo, ainda que em terceira pessoa, já não consegue camuflar a identificação entre sujeito e objeto, renunciando ao distanciamento como base para a confiabilidade do narrado, no segundo texto vemo-nos diante de um caso em que a fusão entre esses dois elementos se manifesta vivamente, a cada passo, ratificando a individualidade da experiência e o seu peso na organização narrativa. O narrador em primeira pessoa está no centro das ações de que fala, ostentando, sem constrangimento, o seu total descontrole sobre o que vive, situação projetada numa fala feita de mil pedaços, um mosaico curioso que não pretende disfarçar as fissuras entre as peças que o compõem. Mais que isso, nas lacunas em destaque encerram-se muitos significados que a linearidade não conseguiria exprimir. Contrariamente ao narrador de Óscar Ribas, preocupado em estabelecer, também através dos registros linguísticos, a diferença que o distinguia de seus personagens, o narrador de Luandino manifesta sua adesão à “verdade” dos personagens, tingindo seu discurso de construções em que se podem notar algumas das transgressões operadas por quem não tem total domínio do código que é obrigado a usar:

Mussunda vivia só, muito tempo já que ninguém lhe conhecia com mulher desde o óbito da falecida. Boa companheira como aquela, nunca!,  costumava dizer. Também para dormir com marreco, mesmo quando a cabeça dele é mais direita que muita gente, custa a se encontrar. Sua fama de alfaiate corria musseques, farristas do Rangel, do Prenda, do Boavista mesmo, vinham encomendar suas calças de suinguistas, de dezoito na banha. Com o tempo a passar, João Rosa começou também a cortar e acabar trabalho, mas falando sempre nos fregueses o corte é de sô Mussunda. Assim o mestre ficava com mais tempo para as conversas que gostava, com meio litro e gasosa, na hora que os amigos apareciam (Vieira, 1988, p.64).

A colonialidade que incide sobre a sua fala sintomatiza a comunhão com essa camada da população que protagoniza a luta em questão. Isso que ocorre já no texto de 61 se vai radicalizando, ganhando complexidade de obra para obra. Assim é que em Nós, os do Makulusu e em João Véncio: os seus amores as contradições que pulverizam a ordem social deixam de ser tema e convertem-se em traço estrutural da narrativa. Em ambos os romances, o leitor depara-se com os sinais da transformação e da convulsionada mutabilidade das coisas estampados em imagens que modulam a narrativa. Em João Véncio, a estrela de três pontas assume o estatuto de metáfora iluminadora do percurso multifacetado do herói marginal. Em Nós, os do Makulusu, o tiro que atinge o Maninho não poupa nada nem ninguém, explode fazendo estilhaçar as bases sobre as quais parecia estar assentada a sociedade que mobiliza o discurso narrativo. Tudo aponta para a instabilidade e a impossibilidade de domínio.

Que cara, que face, que vida é essa que está me olhar no espelho? Trinta e quatro anos de queimadas de células e os mesmos olhos sempre iguais: os mesmos só tu, meus olhos, me dizes que sou o mesmo. Arranjo a gravata, fica bem, nunca uso casaco-gravata e não é meu e então ao vestir-lhe de repente sou outro como nunca fui, é isso que o espelho diz. E os olhos me olham, então vou  buscar a última fotografia ampliada quatro vezes postal, a grão grosso sem retoque, manias de Maria, seu orgulho de louvadeus-fêmea, em imagem me  queria inteirinho e eu rio-me daquela dedicatória cuidadosamente riscada com tinta-da-china, ela voltou-ma, já sabia que odiava essa ampliação de mim mesmo mas ai fiquei a amar-lhe porque lhe recebera e era eu com vinte e quatro anos a olhar de frente a máquina, sem sorrir sim, o sorriso só dos meus olhos que vejo  no espelho. Então coloco a fotografia no lado da cara, olho no espelho, quatro vezes dois oito, oito olhos sempre iguais. Como é, Maria?
- Olhos de diabo em cara de anjo!
(Vieira, 1985, p. 38-9)

Desataviadas, as falas tentam no momento mesmo em que se constroem, reconstruir a visão de mundo sob o impacto das ações que lhes coube viver. A morte do irmão Maninho (e a dissolução do Makulusu como espaço da plenitude a ser recuperada) e a experiência da prisão (como a decorrência de uma atribulada travessia em que a miséria e a desagregação estão aliançadas) são fenômenos de forte densidade a exigir respostas que não podem ser trabalhadas apenas no plano da racionalidade.

O sentido histórico que balizou todos os romancistas anteriores, já vimos, não é desprezado por Luandino. Porém aparece, sobretudo nesses dois textos, mediado pelos recursos da poesia. As estórias que se contam não dependem dos nexos de causalidade, da organização lógica do enredo. Os narradores exprimem-se também como poetas e deixam o seu discurso ser atravessado pelo cultivo intencional dos procedimentos comuns à atividade poética. As imagens têm por base antíteses, oximoros, metonímias refinadas.

Simples e raro é o teu nome. Porque eu digo: Maria, só, e não marilena, mariarosa, maria da conceição, da purificação. Tu não tens outro nome que te estrague nessa lisura de pedra mármore da cara e do nome e do sisal dos teus cabelos rebeldes. É fresco o nome, é quente. Maria! – ainda digo no espelho, mas dez anos estão entre esse nome e a fotografia do outro que era eu e suas múltiplas caras no espelho. Maria!, repito. Mas teu nome é só a mancha condensada de vapor na superfície fria do espelho que vai, pouco-pouco, desaparecendo. Nunca teu nome me lembra criadas que são as marias, como quando tinha de dizer, todos os anos e a todos os professores preenchendo todas cadernetas da minha vergonha:
-... mãe: Maria Gertrudes...
(Vieira, 1985, p, 39)

Na sintaxe estão presentes as elipses, as repetições. São recursos que quebram a convenção do discurso prosaico, introduzindo a possibilidade de outras expectativas, potencializadas por uma economia textual que se vale sem limites das rimas, das aliterações, da paranomásia.

Não sabiam ler em mim, mas sabiam. Sabiam, ainda que todo o meu corpo, a minha pele estivesse tapada no vestuário, coberto na mortalha, sabiam: o meu modo de andar, de por os pés, tamanho deles e forma e modo de assentar o tacão, de quem está habituado a andar sem medo que, de repente, façam-lhe saltar no coração: cartão? Imposto? onde vais a esta hora? Onde trabalhas? Rusgado, batido, deportado, humilhado, assassinado. Isso só chegava para estar sempre nu diante dos seus olhos. Ou morto mesmo e tapado e enterrado, meu corpo vai ter outros odores adivinhados, saberiam por tudo quanto comi décadas e décadas, coisas que delas o nome só cadavez sabiam bastava sair esse cheiro, saberiam. Cadáver, eu vou cheirar ainda a quem comeu muito, bem, pelo menos quem comeu melhor que eles. (Vieira, 1985, p. 143)

A fusão entre sujeito e objeto que os textos espelham segue, dessa maneira, projetando-se na linguagem apresentada. Se em Nós, os do Makulusu, a narrativa tem como titular o Mais-Velho, o irmão intelectual, militante clandestino da causa que já está na rua e espalhada pela mata, em João Vêncio cabe ao homem popular, acusado de crime comum, o direito à palavra. É a voz, mediada pela do “muadié”, que com ele divide a cela, que nos vem apresentar o mundo onde viveu sua insólita história. Adversário ferrenho da cristalização da vida e declarado amante da beleza, Vêncio aposta militantemente na invenção. Como metonímia do autor que o cria, o narrador investe contra a obviedade, certo de que a aparente realidade é apenas uma mentira que só se pode sustentar nas linhas da falsa consciência. Por isso seu discurso, rompendo com as convenções, vale-se de tantos e imprevistos recursos. Em cada página vemos surgir os neologismos, as palavras em quimbundo, os palavrões, as citações dos textos a que teve acesso:

Muadié sorri-se? Ua-ngi-uabela... Casando o fogo e a água no seu foro (...) Mas o meu pai é que me pôs o vício: ele me deu o dicionário aberto e fechado, estudei de cor. E depois meu musseque, as mil cores de gentes, mil vozes – eu gramo dos putos ‘verdianos, palavrinhas tchêu! E os rios da minha vida, minhas vias que com marujos eu ainda fui cicerone de portas, pratos, pegas e prostitutas. “Gee!” the clean dirty smell of this sweet old she –rat ... How much? Cem angolares? "Vêncio, tell this old-crab I would rather f ... myself …” “Aiué, minhas munhungagens, sotaques! (Vieira, 1987, p. 41)

Tais recursos não são pontuais, nem devem ser compreendidos como simples adornos ou acessórios alheios ao projeto literário desenvolvido pelo escrito. São, antes, exigências da tensão que o move para enfrentar criativamente as cisões do mundo em que se situa como homem e como artista. Nesse confronto, amplia o arco de suas alianças do contexto histórico e dos muitos textos de que recolhe peças para montar o seu desenho. Em Nós, os do Makulusu e em João Vêncio, trabalhadas de maneira sofisticada, coexistem citações de autores e referências a universos culturais de múltiplas nacionalidades: Padre António Vieira, António Cadornega, Shakespeare, Ngola Ritmo, Guimarães Rosa, Antero de Quental, a Bíblia, canções e poemas populares dos vários povos de Angola e de outras terras. A frase “aqueles a quem se estendiam os tapetes da vida”, que integra um poema de homenagem a Manduma, o último rei independente dos cuanhamas, por exemplo, reiterada enfaticamente na fala do Mais-Velho, convive com a “Cumparsita” e provérbios em quimbundo, num jogo que ilustra o uso da paródia a intervir na organização da narrativa. Mas da modernidade, essas inovações são incorporadas de modo profundo ao romance de Luandino, que nesse diálogo não se dispõe a ferir a tradição enraizada da cultura da qual se quer e é representante.

Essa capacidade de articular contrários, de juntar e expor as contradições, dinamizando-as no interior da obra literária, assegura a Luandino, um lugar-chave no processo literário angolano e muito especialmente na trajetória do romance no interior daquela história literária. A trilha iniciada por Assis Jr., cultivada por Castro Soromenho e Óscar Ribas, é apanhada por ele numa perspectiva que investe na renovação de modelos, aproveitando com argúcia o legado de seus predecessores. Aberto a outros repertórios nacionais, o escritor mostra-se leitor da produção desenvolvida em Angola e sobre esse material debruça-se de forma intensa, avivando as pegadas deixadas por quem o antecedeu. Os pares dilemáticos trabalhados em O segredo da morta os sintomas de inviabilidade do sistema colonial patentes em Terra morta, A chaga e  Viragem, e o patrimônio cultural dos bairros periféricos    apresentado em Uanga – feitiço, mediados por outros filtros, presentificam-se em A vida verdadeira de Domingos Xavier, em Nós, os do Makulusu e em João Vêncio: os seus amores. E os laços com a tradição oral, um dos esteios da cultura angolana, ali se refazem ao compasso de notas ditadas pela inexorabilidade das mudanças historicamente vividas.

No itinerário do romance em Angola, podemos constatar que, tal como é possível perceber noutros sistemas literários, o gênero não se coíbe de estabelecer certas formas de associação com diferentes e complementares ramos do conhecimento. Para cumprir minimamente a tarefa de oferecer um quadro analítico da situação que elege como foco de abordagem, podemos dizer que Assis Jr. e Castro Soromenho se valem de instrumentos da História e da Sociologia, enquanto na obra de Óscar Ribas realiza-se um esforço de pesquisa etnográfica nitidamente assumida pelo autor. Sem dispensar esses apoios, Luandino refina seu método e recorre, sem inibição, aos recursos da poesia. São as estratégias da lírica que virão completar o seu projeto estético e desvendar a radicalidade de sua visão política.

Com efeito, pode-se dizer que esses três romances marcam a consolidação em Angola de um gênero até então pouco cultivado também nos outros territórios africanos. Sua configuração atesta a maturidade do sistema literário em foco, se considerarmos que, em lugar do corte total com o passado, vemo-nos diante de uma produção que se volta de maneira progressista para o que está antes. Nas palavras de Antonio Candido, o sistema beneficia-se dos chamados nexos de causalidade interna que permitem uma relação dinâmica com as referências internas, evitando-se a preponderância de valores importados (Candido, 1987). O olhar sobre o passado nessas condições perde a dimensão nostálgica que imobilizaria o movimento e transforma-se num gesto de revitalização dos elementos tradicionais com que se vai construindo a identidade coletiva.

Consolidada a sua formação, o romance, como gênero, converte-se num veículo fundamental no quadro da literatura angolana contemporânea. Mais do que nos outros países africanos de língua portuguesa, é em Angola que se vem ampliando a área ocupada pelo gênero no repertório literário produzido. Dos anos 70 para cá além da consagração de Pepetela4 como um importante romancista em língua portuguesa, temos verificado o aparecimento de romances notáveis assinados por escritores que até então se tinham destacado principalmente como poetas e contistas. A boneca de quilengues e A casa velhas das margens, de Arnaldo Santos, O signo do fogo e Maio, mês de Maria, de Boaventura Cardoso e 1 vivo e os mortos, Crônica de um mujimbo e Rioseco, de Manuel Rui, vieram confirmar depoimentos feitos por esses autores em 1987, quando, em visita a Angola, ouvimos de cada um a declaração de que escrever um romance era um projeto. A publicação dessas obras demonstra que o gênero cunhado tão longe, no tempo e no espaço, vai-se revitalizando no contato com as sugestões que brotam do contexto cultural angolano. Mesmo Luandino ainda nos mantém à espera, nós, que acompanhamos com interesse o percurso das letras angolanas, com a edição desses textos, reforçamos nossa convicção de que vale a pena aguardar o cumprimento das intenções anunciadas nos anos 80.

NOTAS

1 Originalmente publicado na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004, publicada pela Editora da PUC Minas. O tema do artigo foi desenvolvido na tese de doutorado Entre intenção e gestos a formação do romance angolano, apresentada à USP.
2 Embora Ervedosa e outros estudiosos façam referência à publicação de romances ainda no século XIX, a obra de Assis Jr, foi tomada como ponto inaugural porque nela já podemos detectar elementos da chamada “angolanidade”.
3 “O narrador, considerações sobre a vida de Nicolai Leskov” é dos textos fundamentais de Walter Benjamim para a compreensão do fenômeno.
4 Agraciado com o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte em 93 e com o prêmio Camões em 1977, Pepetela é autor de romances importantes como Mayombe, Yaka, Lueji, A Geração da Utopia e A Gloriosa família, entre vários outros.

Referências
Dos autores estudados:
Ribas, Oscar. Uanga (feitício) 4. Ed.  Luana: União dos Escritores Angolandos, 1985
SOROMENHO, Fernando Monteiro de Castro. A chaga. 3. Ed. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985.
SOROMENHO, Fernando Monteiro de Castro. Homens sem caminho. 4 ed. Lisboa: Ulisséia, 1966.
SOROMENHO, Fernando Monteiro de Castro. Noite de angústia. 4 ed. Lisboa, 1965.
SOROMENHO, Fernando Monteiro de Castro. Terra morta. 2 ed. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985.
SOROMENHO, Fernando Monteiro de Castro. Viragem. São Paulo.Arquimedes, 1967.
VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier. 4 ed. Lisboa. Ed. 70, 1988.
VIEIRA, José Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa. Edições 70, 1987.
VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. Lisboa: Edições 70, 1985.

Das obras citadas:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. V.1.São Paulo. Brasiliense, 1985.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo. Ática, 1987.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos.  Belo Horizonte. Itatiaia. 1981.
CARDOSO, Boaventura. Maio, mês de Maria. Porto. 1997.
CARDOSO, Boaventura. O signo do fogo. Porto Asa. 1992.
EVERDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. 4 ed. Luanda. União dos Escritores Angolanos, s/d.
HEGEL. Estética. V.7. Lisboa Guimarães. s/d.
MONTEIRO, Manuel Rui. Crônica de um mujimbo. Luanda. União dos Escritores Angolandos. 1991.
MONTEIRO, Manuel Rui. 1 vivo e os mortos. Luanda. União dos Escritores Angolanos. 1992.
MONTEIRO, Manuel Rui. Rioseco. Lisboa. Cotovia. 1997
SANTOS, Arnaldo. A boneca de quilengues. Luanda. União dos Escritores angolanos. 1991.
SANTOS, Arnaldo. A casa velha das margens. Luanda. União dos Escritores Angolanos, 1990.
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.



[i] Doutora em Letras pela USP, é professora associada de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na mesma instituição. Foi professora visitante na Yale University, em 1996/1997, e na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1998 e 2004. Tem dois estágios de pós-doutoramento na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique. Integra o conselho curatorial do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o conselho editorial das revistas Via Atlântica e Mulemba. É autora de A formação do romance angolano e Angola/Moçambique: experiência colonial e territórios literários.

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