Do “curso e do discurso da viagem”: Desmedida, de Ruy Duarte de Carvalho[1]

Rita Chaves[i]

Chega o momento em que é preciso saber abandonar
o continente negro, quando este toma conta do nosso
espírito a ponto de se tomar uma ideia
fixa que se alimenta dela mesma.
A loucura vem-nos da África.
(Richard Burton)

Tem rumos que o destino impõe.
(Ruy Duarte de Carvalho)


África e deslocamentos são signos que parecem indissociáveis. A terrível experiência do tráfico de gente para o trabalho escravo constitui um fato inaugural que deixou marcas que se perpetuam na história da África e dos africanos. Às migrações que dali se processam acabou por se associar uma denominação especial. Não se referindo exclusivamente ao continente, a palavra "diáspora" ficou muito especialmente ligada aos africanos. E em sua origem, frequentemente localizamos as guerras, o desemprego, as insuportáveis condições de vida ainda predominantes nos países africanos, as ditaduras que, violentas, afastam os discordantes de suas terras. Esse é o panorama que tem caracterizado a história do continente, ainda tão mal conhecido entre nós. E não tem sido diferente em Angola, onde se estendeu umas das mais prolongadas guerras do século XX. Hoje, depois de cinco anos da assinatura do Tratado de Paz, se, por um lado, o país vive um sensível processo de recuperação econômica, não podemos deixar de assinalar que tal recuperação se faz no contexto do neoliberalismo mais exacerbado, o que traz à lembrança injustiça social, desagregação de valores e exclusão nos segmentos da população de despreparados para enfrentar o desenvolvimento. Tudo fica mais trágico se nos lembrarmos de que eles são a esmagadora maioria dos mais de 12 milhões que ali vivem.

Num quadro assim delineado, a diáspora, em seu significado mais corrente, afirma-se como um destino, como nos confirmam as centenas de milhares de refugiados angolanos que se espalham pela Europa e pela América, com evidente destaque para o Brasil. Embora muito significativo, tal fenômeno não se tomou um tema de relevo naquele sistema literário. Com exceção do que podemos encontrar na obra de José Eduardo Agualusa, um escritor que tem cultivado o próprio trânsito como marca identitária e condição de vida, a migração não se revela uma constante na literatura angolana. Aliás, quem conhece a literatura angolana acaba por reconhecer a prevalência de Luanda, a eterna capital, como locus central da atividade literária que se desenrola no país. Nas obras de José Luandino Vieira e Ondjaki, separados no tempo por mais de três décadas, encontramos muitos sinais a comprovar a eleição da capital como palco por excelência dos acontecimentos que a literatura tem privilegiado no seu empenhado exercício de olhar o mundo.

Nesse contexto, chama a atenção o percurso de um escritor que, mesmo vivendo em Luanda a maior parte de seus dias, desde muito cedo, instituiu uma outra direção para seu olhar, ou, como ele próprio prefere, elegeu um outro posto de observação. Falo de Ruy Duarte de Carvalho e de sua ligação com as terras do sul, onde, nos anos 1950, iniciou-se o seu contato com Angola. Depois de se instalar com a família e passar alguns anos em Moçâmedes, atual província do Namibe, ele foi estudar em Portugal. Concluído o curso de Regente Agrícola, ele volta a Angola e instala-se mais para o norte. Mas o sul constituiu sempre o lugar de eleição. Chama-se, precisamente, "O sul" o poema com que abre Chão de oferta, o seu primeiro livro, editado ainda em 1972. No sul, realizou parte considerável de sua produção cinematográfica, e são do sul os pastores que vem estudando sistematicamente desde os anos 1990. Resultados dessa pesquisa estão brilhantemente trabalhados em Vou lá visitar pastores, narrativa em que se misturam os traços do ensaio etnográfico com o discurso ficcional.

Um olhar sobre o conjunto da sua obra afasta-o daquele universo que convencionalmente se define como o da diáspora, principalmente do que costumamos reconhecer como a diáspora negra. As referências históricas que identificam esse mundo não são detectáveis na trajetória de Ruy Duarte de Carvalho. A sua obra, entretanto, faz-nos ver que estamos diante de um escritor que tem exercitado a viagem como um procedimento que está na base do conhecimento a respeito da complexa realidade que lhe cabe viver. E essa necessidade de compreensão do seu tempo no quadro da contemporaneidade, e no quadro da longa duração a que se referem historiadores do nosso tempo, surge como uma produtiva obsessão a orientar o seu percurso.

Podemos começar observando que a obra de Ruy Duarte é vasta e variada: em poemas, contos, romances, ensaios, cinema e desenhos, ele exercita linguagens e reflete acerca de problemas que dizem respeito a Angola, à África e à condição humana, incursionando por searas que definem e rediscutem as fronteiras das identidades, tema, aliás, de sua tese de doutoramento2 em Antropologia e objeto de sua preocupação nos muitos campos visitados pela sua reflexão. Outra marca de seu trabalho é a problematização do lugar da literatura e das artes em geral no confronto com as realidades que nos cercam. As relações entre o interno e o externo, entre o próprio e o alheio, entre a tradição e a modernidade são pontos destacados em qualquer das modalidades escolhidas para traduzir a sua inquietação de intelectual e artista. Cultor de radicalidades, ele investe em procedimentos que exprimem a consciência de quem tem exata noção dos confrontos a que está sujeito o seu olhar moldado pela pluralidade de paisagens e pelo acúmulo de leituras de que se compõe o seu repertório. Nesse campo, encontramos ficcionistas de muitos quadrantes, poetas de várias línguas, cientistas sociais debruçados sobre diferentes universos de relações e valores. Conrad, Lévi-Strauss, Adam Kuper, E. M. Forster, Céline, Joyce, Coetzee, Herberto Hélder, Antonio Candido, Marshall Sahlins, E. Jünger, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, por exemplo, integram esse universo de referências de que se alimenta o espírito desassossegado do autor.

Leitor apaixonado de Richard Burton, de quem destaca a frase que escolhemos para epígrafe, o escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho, em Desmedida. Luanda-São Paulo-São Francisco e volta - crónicas do Brasil, sua última narrativa, parece aceitar a sugestão do conhecido explorador inglês ao ensaiar um certo abandono dos cenários que estiveram, desde o começo de sua carreira, no centro de sua preocupação. Já pelo título, intuímos que as paisagens angolanas se abrem às desmesuradas dimensões dos sertões brasileiros. Num autor que tem em Angola o seu espaço de investigação, a referência explícita ao Brasil parece apontar para a hipótese de uma mudança de eixo, pois vemos um outro país assomar como foco de um olhar atento que se exprime na prosa sempre acutilante do autor. Ao mergulharmos nas 323 páginas do livro, todavia, verificamos que não se opera propriamente uma alteração espacial. Trata-se, sim, de incorporar a deriva como um movimento produtivo, capaz de intervir no conhecimento e na forma de decifrar o real, "feito de repetições, variações, simetrias, acasos, encontros e convergências", como previne o autor já no primeiro parágrafo (2006, p. 15).

Tão significativa quanto o espaço sobre o qual o narrador se lança é a dimensão da viagem, que ganha aqui um peso estrutural. Desmedida pode ser visto, assim, como um texto em que se projeta o sentido da travessia - palavra já cristalizada no léxico que envolve o sertão - e se inscreve no universo da transumância, que é uma característica das populações estudadas por Ruy Duarte em seu trabalho de antropólogo. Não seria talvez demais destacar que tal mobilidade é, sem dúvida, um dado do nosso tempo, o que justifica perfeitamente a sua escolha para tema deste evento 3. Mas vale a pena pensar que outros sentidos podem ser encontrados para a dimensão que define a mobilidade nos contextos abordados por ele, ou seja, dos significados e do peso que ela tem para as populações pastoris que vivem no sudeste de Angola, sobre as quais ele tem dedicado a maior parte de suas reflexões. Em Vou lá visitar pastores, a que já aludimos, o autor oferece-nos um alentado estudo sobre os kuvale, num texto em que o rigor científico se combina a um apurado tratamento estético, combinação que está na origem da dificuldade com que deparamos na complicada tarefa de classificá-lo: ensaio? Ficção? Diário de viagem? Difícil encontrar uma definição; e faz parte do projeto do autor o descompromisso com fronteiras previamente estabelecidas. As paisagens propícias, narrativa ficcional de 2005, já nos traz sinais dessa proposta que será radicalizada no fabuloso Desmedida, sobre o qual nos debruçamos aqui.

Os nomes dos lugares - Luanda, São Paulo e São Francisco -, presentes no subtítulo, prenunciam que Desmedida é um livro de viagem. Contudo, como é mais adequado para a produção do autor, o melhor é reconhecê-lo também como um livro de viagem, porque temos mais do que isso. O prodigioso manancial de referências sugere uma auto-biografia intelectual, em que se situam as notas de uma formação sólida e variada, atravessada pela paixão do conhecimento. Pelas páginas desfilam autores e títulos de obras que fundamentam o seu itinerário: escritores, viajantes, engenheiros, naturalistas, intelectuais de diversificado cariz que tiveram sua vida ligada ao Brasil, território que Ruy percorre com interesse profissional e militante deslumbramento.

O primeiro nome assinalado é o de Blaise Cendrars, intelectual europeu marcante na história de nossas letras, cuja presença foi crucial na gênese do Modernismo. O movimento é de aproximação, fato justificado pelas afinidades que ligam os dois. É a partir de uma vivência que Ruy Duarte se lembra de Cendrars. Um requintado jantar numa rica fazenda no interior de São Paulo traz à superfície o papel do café na economia brasileira e no percurso histórico que caracteriza a vida nacional. Símbolo da riqueza do estado, o café continua a render muito a restritos segmentos da nossa sociedade, alimentando essas ilhas de bem-estar que estão associadas a grande parte da atividade intelectual no país, como nos demonstra a história do movimento modernista. A lembrança do intelectual europeu, tão presente naqueles efervescentes anos 1920, conduz o escritor a uma situação especial, por ele definida como "agarrado a uma bolha de temporalidade e velocidade de pensamento dessas que não têm nada a ver com durações comuns" (CARVALHO, 2006, p. 16).

A imagem de Cendrars destrava a imaginação e dá início a um processo narrativo que investirá no gesto de atar pontas do tempo: o passado em que se localizam as referências intelectuais que serão convocadas e o futuro que será apreendido na decodificação das paisagens visitadas na viagem do escritor angolano. As afinidades cultivadas têm na base o interesse pelo Brasil que mobilizou a ambos e gerou tantas viagens. No meio, não poucas décadas a separar seus tempos. E, ainda, a preceder as viagens e o arrebatamento que elas têm na origem, o conhecimento assegurado pelas leituras.

Antes de se fazerem viajantes pelas nossas terras, ambos percorreram os livros e travaram com as nossas realidades uma forma de conhecimento que converte as viagens num modo de reconhecer paisagens, gentes, movimentos que nos definem. É o próprio Ruy que, em entrevista ao Jornal de Letras, quando do lançamento do livro em Lisboa, resume o projeto de que o livro é móvel e resultado: "[...] essa viagem, como programa ou como ficção de narrativa a haver, não esteve nunca destinada a procurar encontrar. Ela só se impôs quando a dada altura vi que dava para querer ir curtir e ver, ir ver, em Minas Gerais, se os sorrisos, agora lá, rimavam ainda com os que eu tinha andado a vida inteira a decifrar em livros brasileiros? (2007)."

Cendrars, tão relevante no processo de escrita dessa obra, não estará só no transcurso da grande viagem que é, afinal, a grande aventura do livro. No segundo segmento desse primeiro capítulo, o autor recua no tempo, opta por outro império e vai buscar um outro viajante célebre que também se ocupou de terras brasileiras. Richard Francis Burton é, então, apresentado e será aproveitado como um forte interlocutor. Além de alguns dados que permitem ao leitor identificar minimamente o personagem, o narrador faz questão de detalhar pontos de convergência entre os dois estrangeiros que o antecederam nas incursões pelas terras brasileiras: a ligação com a África é um desses pontos. Segundo Ruy Duarte, na Antologia Negra, do primeiro, e em Wit and Wisdom from West Africa, do segundo, teríamos rastros desses laços com o continente. O escritor angolano assinala ainda corno marca comum o empenho na fabricação de "sua própria imagem com obstinação e desabrido recurso à efabulação e ao delírio" (2006, p. 24). Essa capacidade exercitada pelos seus predecessores não é alheia à sua permanência na imaginação do presente. E as páginas dedicadas na narrativa em causa são índices reveladores da competência investida.

Nesse processo de incorporação de dois instigantes personagens, Ruy Duarte define, de certa maneira, o terreno em que deseja fincar as raízes do projeto literário - e não só - que este livro representa. As referências a esses intelectuais por quem nutre urna entusiasmada admiração dão conta da escolha de urna certa linhagem a que deseja associar o seu nome. A ligação cultivada, entretanto, não pode ocultar urna diferença, que é, ao mesmo tempo, um dado importante na concepção e na elaboração da narrativa do escritor angolano: o local de onde ele fala, quer dizer, o lugar a partir do qual se enraíza o seu discurso, ou seja, onde se organiza o seu olhar. Como os outros dois, ele é estrangeiro, mas, diferentemente, ele não vem do Norte, do centro do mundo, da base em que se definem os paradigmas com que são observados os da periferia. É de outro lugar periférico que ele vem, e é essa outra periferia que ele quer compreender, pois é para ela que ele regressará, como está no subtítulo da obra e corno ele pondera: "[...] a hipótese de urna viagem que tivesse o São Francisco em conta e de um livro que não perdesse nunca de vista nem o lugar de onde eu estava a sair nem o lugar para onde, nem que só de mim para mim, onde quer que estiver, estarei sempre a voltar (Ibidem, p. 119)."

Ficam, assim, indicadas a natureza de seu projeto e a motivação dessa errância de que o livro é causa e consequência. Não estamos, pois, diante de um transitar gratuito, nem de urna viagem mobilizada pela vontade de captar o diverso, o que equivale a dizer que estaria fora de propósito buscar a decantada sede de exotismo corno fonte inspiradora. Não é a descoberta do Brasil, mesmo que do seu Brasil, que esgotaria a proposta. O país que ele percorre, metonimizado no rio São Francisco, deve ser captado em sua dimensão extraordinária, tão intensamente trabalhada pela força imagética na linguagem do autor: "Não tanto, a dimensão de um portentoso curso de água, mensurável, trabalhável, transponível, mas antes a de um deus fluvial que é o eixo e o texto de um universo a que se dá um nome e aonde colhe a dimensão de urna ideia e dos ecos que lhe conferem a insondável espessura do fundo, e a vaga desmedida da extensão de um cosmos. Estou a falar do sertão." (Ibidem, p. 96).

A excepcionalidade sugerida em palavras corno "portentoso", "insondável" e "desmedida" converte-se num traço essencial dessa paisagem a que o narrador não pode resistir e faz recordar o enorme interesse despertado pelo Novo Mundo no século XIX. A ideia do "outro" ganhava peso com a consolidação de ciências sociais como a Antropologia, e os "países descobertos" surgiam como cenários propícios aos estudos em voga nas sedes dos velhos impérios. Em sua tese de doutoramento, Ilka Boaventura Leite observa:

Nesse sentido, o desejo de estudar e pesquisar "o outro" tornou conta de todos, até mesmo daqueles que não estavam diretamente engajados nas Academias. Urna vez estando no Brasil, procuravam sistematizar, em obra, as informações que interessavam a seu país. O conhecimento da importância que esses dados poderiam representar no futuro incentivava-os a dedicar parte de seu tempo ao registro, em diário, das impressões da viagem. Quando não escreviam no instante da observação, faziam-no depois, no país de origem, em forma de memórias.

[...]

O culto do "outro" exerceu um verdadeiro fascínio nos círculos intelectualizados da Europa. As reservas naturais abundantes e a existência de populações indígenas ainda atraíam o europeu não apenas para o estudo e pesquisa, mas também pelo simples deleite. Os “países exóticos”, como eram então chamadas as colônias, exerciam uma enorme atração. As elites dominantes tinham a oportunidade de comprovar "ao vivo". Outros, de menor poder aquisitivo ou não podendo viajar, quando muito, liam as façanhas através dos livros de viagem. Essa é, sem dúvida, uma das explicações para o grande sucesso desse tipo de obra publicada na Europa do século XIX (1996, p. 59-60).

Esse Brasil que, como sabemos, foi palco privilegiado nessa fase de pesquisa desenvolvida pelos europeus também seduz o escritor angolano. Fascina-o, inclusive, a atração despertada por esse imenso território percorrido por homens como Saint-Hilaire, Von Martius, Burmeister, Agassiz, que, atendendo a diferentes motivações, por aqui se quedaram e sobre tal experiência legaram algum tipo de testemunho e reflexão: "Mesmo depois e passados séculos, quando a dinâmica da descoberta e da expansão verdadeiramente se revela, serão ainda de deslumbramento as investidas cientifistas e românticas. A razão sob controle coexiste em muitos casos com a contrarrazão romântica, que exige, à dedução, oportunidade também para outras vias de apreensão, de percepção, de participação e de intervenção do mundo e no mundo. Lugar até para paixões, arrebatamentos e estados-de-alma" (LEITE, 2006, p. 130).

Mas, em seu caso, o deslumbramento não se encerra no encontro com a natureza fabulosa; quer dizer, a grandiosidade em tantos aspectos impressiona, mas não turva a percepção de um fato maior, determinante no acolhimento da ideia de que o Brasil vai muito além da exuberância da paisagem que foi fator de perturbação e deslumbramento na história dos muitos viajantes que por aqui passaram. O que o encanta e conduz o seu desejo de comprovar "ao vivo" é a possibilidade de conferir aquilo que ele apreende como "o Brasil de agora: o Brasil de hoje como teatro, o último talvez no mundo, de todas as fases vividas, até agora, da ainda em curso expansão européia, dita ocidental" (CARVALHO, 2006, p. 67, grifo nosso).

Em certa medida, inscreve-se nesse compasso a diferença. A esse viajante importa verificar, compreender de que maneira se articulam essas configurações de um país que vive a simultaneidade de muitos tempos, que se pode ver como a encruzilhada de rotas protagonizadas por homens de trajetórias diversas e habitantes de diferentes sertões. Certamente, mais do que diante da "anarquia e do escândalo da exuberância da flora brasileira", que deixava aturdido Saint-Hilaire em seus anos de andanças pelo Brasil (Ibidem, p. 130- 131, grifo nosso), Ruy Duarte extasia-se com outra potencialidade do país: "Instauro, para mim, uma percepção que me faltava realizar com tamanha clareza e evidência no campo do espetáculo da mudança social: a da emergência pontual do inédito. A da emergência da questão, que vai custar muito a largar-me, da produção social do inédito. O Brasil como produtor, como gerador do inusitado social" (Ibidem, p. 151).

Instaura-se essa percepção e impõe-se o movimento definidor da viagem que forma o explorador: o desejo de mergulhar na realidade sociocultural de um universo que se apresenta como porto de abrigo do que não é comum, do que não está catalogado, do que causa espanto. Em lugar das orquídeas e bromélias que deixavam perplexos os naturalistas do século XIX, é o espetáculo das gentes e dos modos de estar nas e com as paisagens que requer a sua demorada atenção. É o confronto com esse mundo que dá continuidade ao leitor que existe no escritor, que lhe permite passar das páginas dos livros à realidade da geografia, recompondo, assim, a história que começou a ler nas estórias e nos documentos daqueles que vieram antes dele e com esse espaço estabeleceram poderosas relações.

Por esses caminhos, Ruy Duarte persegue um de seus objetivos, insinuado também no subtítulo do livro, que começa em Luanda e termina com a volta. Ou não termina, já que está registrada a convicção de que o fim da viagem encaminha para "um renovado abismo que de novo aponta a cabos outros, mais austrais ainda (Ibidem, p. 308). A noção de regresso, que surge em vários pontos, indicia um dos motivos da sua incursão pelo Brasil: a sua constante necessidade de ver Angola, de observá-la a partir de outros lugares, o que favoreceria o exercício de enxergá-la sob outros ângulos.

Dessa maneira, Ruy Duarte potencializa e relativiza, a um só tempo, a experiência de estranhamento que remarca as viagens, tornando efetivamente produtiva a distância do local de origem que elas impõem, permitindo-nos concluir que ele procura vivenciar a dimensão temporal da viagem, beneficiando-se da abertura que essa experiência propicia, na linha do que defende Sérgio Cardoso, para quem:

[...] as viagens, na verdade, nunca transladam o viajante a um meio completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade (mesmo porque ele não se encontra "dentro do espaço", como uma coisa, nem "fora dele", como um espírito, como a cada passo insiste em lembrar Merleau-Ponty), mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio mundo, tomam-no estranho para si mesmo. Assim, neste sentimento de estranheza, de "alheamento" e distância, seu mundo não se estreita, se abre; não se bloqueia, mas experimenta a vertigem da desestruturação (sempre, em alguma medida, marcada pela perda e morte) que lhe impõem as alterações do tempo. É desta natureza o estranhamento das viagens: não é nunca relativo a um outro, mas sempre ao próprio viajante; afasta-o de si mesmo, deflagra-se sempre na extensão circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior dele próprio. O distanciamento das viagens não desenraíza o sujeito, apenas diferencia o seu mundo ... quando, é verdade, ele não se mostra demasiadamente compacto - e defendido - para deixar penetrar o tempo (2006, p. 359-360).

Essa diferenciação dos mundos, apoiada na capacidade de conjugar espaço e tempo, propicia a apreensão de lacunas e descontinuidades, possibilitando novas abordagens de situações que o vício do olhar automático interdita. Olhar o Brasil sob o signo do movimento parece ser para Ruy Duarte de Carvalho uma das chaves possíveis para a necessária tarefa de rever Angola e compreender o mundo em que estão integrados esses espaços, aproximáveis por muito mais que a dura experiência associada ao tráfico de pessoas e de mercadorias que selou a nossa história comum.

Na crença na reorganização das coisas, aqui configurada na revisitação de sertão e rios, sem ignorar as cidades que também dão notícia da vida no presente deste país, encontra-se um dos modos de tomar produtiva a mobilidade, que é do homem, que é do escritor, mas é também um dado da escrita desse livro, que traz para a estrutura da narrativa o que é tratado no plano temático, ou seja, as suas travessias no tempo e no espaço, por ele sintetizadas da seguinte forma: "E assim, de carnaval a carnaval, de Januária a Salvador, cumpri minhas punções pelo rio São Francisco e suas dilatadas adjacências. E consumi o curso, e o discurso, desta viagem" (CARVALHO, 2006, p. 309).

No curso e discurso dessa viagem, Ruy Duarte de Carvalho investe em trajetos e perfaz caminhos que exprimem novos elos entre nossos países, colocando em pauta os destinos que vamos vivendo. A situação de errância que assume e trabalha ganha novos significados. A deriva, de que tanto fala, não é condenação, como foi durante séculos e continua a ser para milhões de africanos. A deriva, assim, é tema de sua literatura e método de leitura do mundo que o cerca e urge ser decifrado. É o seu modo de compreender e de nos ajudar a compreender como, nas palavras com que abre a narrativa: " ... estamos é juntos no vaivém das balsas... ".

NOTAS

[1] Originalmente publicado em Mobilidades culturais: agentes e processos. Organizado por Ivete Lara Camargos Walty, Maria Zilda Ferreira Cury e Sandra Regina Goulart Almeida, em 2009, pela Editora Veredas & Cenários.

2 O trabalho foi publicado com o título de Ana a manda - os filhos da rede (1989).

3 Colóquio Mobilidades culturais - Brasil/Canadá - agentes e processos, realizado na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2007.

Referências

CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). ln: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 347-360. CARVALHO, Ruy Duarte de. Chão de oferta. Luanda: Culturang, 1972.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Ana a manda - os filhos da rede. Identidade colectiva, criatividade social e produção da diferença cultural: um caso muxiluanda. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Vou lá visitar pastores. Lisboa: Cotovia, 1999.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Desmedida. Luanda-São Paulo-São Francisco e volta: crónicas do Brasil. Lisboa: Cotovia, 2006.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Entrevista. Jornal de Letras, Lisboa, 17-30 jan. 2007.

LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem. Escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996.


[i] Doutora em Letras pela USP, é professora associada de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na mesma instituição. Foi professora visitante na Yale University, em 1996/1997, e na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1998 e 2004. Tem dois estágios de pós-doutoramento na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique. Integra o conselho curatorial do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o conselho editorial das revistas Via Atlântica e Mulemba. É autora de A formação do romance angolano e Angola/Moçambique: experiência colonial e territórios literários.

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