O lago da lua: águas límpidas na poesia angolana[1]

Ana Paula Tavares - Lisboa: Caminho, 1999                                                                                      

Rita Chaves[i]

A edição de O Lago da Lua vem interromper a sede prolongada a que Ana Paula Tavares parecia condenar os leitores ansiosos por voltar a beber da boa água por ela oferecida em Ritos de Passagem. Publicado em 1985, numa série da União de Escritores Angolanos chamada Lavra e Oficina, aquele seu primeiro livro apresenta-nos já uma escrita madura, plena de imagens instigantes. Para os que acompanham a poesia africana de língua portuguesa esses quase vinte anos de espera provocaram, naturalmente, uma grande expectativa. E não nos sentimos frustrados diante do conjunto de poemas que a Editorial Caminho em boa hora nos traz.

O longo tempo decorrido parece ter servido apenas para apurar o uso das ferramentas com que ela fertiliza o chão de seu texto sem turvar a limpidez que caracterizava os versos do livro anterior. Valendo-se da força que a experiência abre, a autora assenta-se no terreno apontado desde a estreia: o exercício de sua poesia situa-se na esfera da essencialidade, ainda que agora alguns poemas escolham uma discursividade alongada, como a perseguir um objeto mais fugidio. Se tal fato quebra aquela tonalidade minimalista de Ritos de Passagem, sem qualquer dúvida, a delicadeza continua como traço fundamental. E, com ela, a sensação de que nada é supérfluo nesse repertório que continua a falar de Angola sem se limitar a isso.

Se entre 85 e 99 a ansiedade dos que aguardavam a voz de Ana Paula amenizava-se diante dos poemas estampados em revistas em revistas e antologias dispersas, também se pode dizer que o mesmo sentimento foi aguçado pelas crônicas de O Sangue da Buganvília, volume que reúne alguns dos textos produzidos para a emissão da Rádio de Difusão Portuguesa. Nessa incursão pelo gênero narrativo projeta-se a familiaridade com a poesia: as estórias são sempre tingidas pela energia de uma linguagem que faz o narrado evitar as trapas da trivialidade. Em cada uma das breves narrativas percebe-se a sua habilidade em depurar acidentes do cotidiano, como quem sabe descobrir sinais de vida sob a aparente imobilidade de tantas coisas. O movimento das mulheres que trabalham o barro nas olarias, as mudanças da flora sob o ritmo das estações do ano, o lugar da língua portuguesa no cenário internacional, todo material se converte em modo de compreender o complicado mundo e o código, tão cruel, que o regula; tudo se fazendo sem dispensar a plasticidade e as associações imprevistas como eixo de um discurso preocupado em desautomatizar as formas de estar e de ler o mundo.

Mais uma vez, em O Lago da Lula, sem colocar em risco seu pertencimento ao sistema literário angolano, a poesia de Ana Paula Tavares não hesita em acolher o legado de outras fontes e assim refazer os ciclos a que o isolamento poderia conduzir. Seu universo enriquece-se na interlocução, juntando em parcerias diversas o Cântico dos Cânticos e o poeta moçambicano Eduardo White, a quem é dedicado o poema <<O Japão>>. Abertos ao mundo, os olhos da autora não deixam de fitar Angola, o território fundamental de sua criação. E no mapa que percorre as fronteiras se abrem, articulando campo e cidade, escapando às armadilhas propiciadas pelos falsos combates entre tradição e modernidade. O seu é um canto contra a tradição obscurantista e contra a modernização reificadora que continuam a desumanizar as pessoas.

Voz autorizada pela experiência e pela sensibilidade Paula Tavares ergue sua palavra para condenar a opressão e a dor, onde e de que forma elas se possam materializar. Como contradiscurso, seus versos vão buscar as <<crianças de vidro>>

(...) Cheias de água as lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços
procurando a vida
nos caixotes de lixo.  
Com a mesma determinação com que registram a dor das mulheres:
Estranha árvore de filhos
Uns mortos e tantos por morrer
Que de corpo ao alto
Navega de tristeza
As horas.

Mas  que não se veja nesses focos traços daquela feminilidade tipo stander a que algumas leituras reduzem a obra de escritoras da África. A Consistência dessa poesia ultrapassa os terrenos incertos da mitologia descontextualizada com que se procura explicar o desconhecido que ainda encobre a realidade africana. Conceitos como maternidade, docilidade, resignação e outros, tantas vezes clicherizados pelo processo de exotização a que continuam sujeitos o continente africano e suas gentes, são revistos pela escritora que conhece bem o contexto que os gera ou explica a sua perenização.

Na fatura de seu texto, reitera-se a aposta na contenção como chave de trabalho poético. Ana Paula prefere os versos curtos em poemas que são, na maioria, igualmente breves, exceção aberta apenas para os dois que encerram o livro. A eloquência aqui não se pauta pelas repetições, pelas hibérboles, pelas torrentes verbais características da retórica cultivada por tantos e alguns tão bons escritores de Angola. O exercício reflexivo patente em seus textos se faz na linha da condensação, optando pela contenção lírica para cortar a matéria bruta sobre a qual trabalha. Mas presentes estão outros traços que não camuflam a linhagem a que pertence, e que honra com seu talento. Os sinais da oralidade, o cultivo da plasticidade que aproxima o poema da estatuária, as situações tematizadas não deixam dúvida quanto à matriz, convicção expressa pela escolha do léxico a confirmar a geografia de seus passos. Ali está o território demarcado por expressões como <<terracota>>, <<massambala>>, <<fogueiras>>, <<missangas>>, <<couro de boi>>, <<plantas da savana>>, <<cabeças de leite>>, <<altar de pedras e paus>>, <<a máscara/Mwana Pwo em traje de festa>> ... Da profusão das marcas, todavia, não salta o tom da idealização, pois o risco mitificador se dissolve pelo contraponto de construções que, falando em <feridas fundas>>, <<olhos secos>>, <<ovos de serpentes>>, <<água amarga>>, <lâminas>>e <<cicatrizes>>, vêm engastar na harmonia do espaço poético imagens desconcertantes que deixam <<gravada a escarificação das lágrimas>>.

Nessas viagens poéticas por Angola (de onde está fisicamente – e só fisicamente – afastada) e por outras terras, Ana Paula carrega consigo o legado incorporado também nas travessias realizadas através da leitura. Sua dicção surge, assim, enriquecida por um diálogo vivo que inclui escritores de muitas épocas e quadrantes. De Shakespeare a Sophia de Mello Breynner, passando por gregos e chegando a Ruy Duarte de Carvalho (um seu camba), nas conversas com outros repertórios – sem se agastar de sua pedra, parece encontrar um modo de afiar pedra, parece encontrar um modo de afiar <<a lâmina de uma espátula afagando a pele / de escritas muito antigas e falas tão ardentes>>.

Desses e de muitos outros materiais se nutre a poesia de Ana Paula Tavares. Sem cedências a modismos, mas valendo-se, com sabedoria, daquilo que lhe oferece a contemporaneidade, ela, de maneira impressionantemente serena para quem atravessa terrenos tão convulsionados, expõe a coerência de seu projeto poético. Em forma de síntese, talvez pudéssemos, recorrendo ao encanto poderoso de suas imagens, dizer que, nesses tempos de aspereza, sua escrita segue os passos daquela mulher que:

(...) não canta
Abre a boca
E solta os pássaros
Que lhe povoam a garganta.

NOTA

[1] Originalmente publicada em Metamorfoses. Revista da Cátedra Jorge de Sena da Faculdade de Letras da UFRJ, Lisboa, v. 1, n.1, 2000.


[i] Doutora em Letras pela USP, é professora associada de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na mesma instituição. Foi professora visitante na Yale University, em 1996/1997, e na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1998 e 2004. Tem dois estágios de pós-doutoramento na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique. Integra o conselho curatorial do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o conselho editorial das revistas Via Atlântica e Mulemba. É autora de A formação do romance angolano e Angola/Moçambique: experiência colonial e territórios literários.

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