Materiais para confecção de um espanador de tristezas, de Ondjaki[1]

Rita Chaves[i]

Após produtivas incursões pelo mundo da prosa narrativa, Ondjaki retoma o caminho da poesia que já havia percorrido em Actu sanguíneu, de 2000, e em Há prendisajens com o xão, de 2002. Com Materiais para confecção de um espanador de tristezas o escritor confirma o que alguns de nós já identificamos em seu trabalho: a indiscutível capacidade de, sem nunca renunciar ao céu de Angola, captar sinais de outras terras, num movimento que procura integrar a diversidade dos universos que lhe vão compondo a forma de estar no mundo. Fazendo-se presença decisiva, o seu país mistura-se às referências vivamente incorporadas no percurso acumulado. Pelas ruas e veredas de muitas cidades, ou pelas páginas dos livros, as viagens se realizam e o poeta não economiza na aquisição da bagagem que será filtrada e participará na construção dos poemas. Armada com uma delicadeza fortemente pontuada por aquela acertada dose de ironia, sua escrita coloca-nos a todo momento diante da relação entre poesia e experiência, recordando- nos um dado essencial das literaturas de nossos tempos.

Escritor de uma sociedade que aos olhos dos habitantes do chamado mundo ocidental se marca pelo traço da excepcionalidade, seja pelo curto tempo de sua independência, seja pela cruel presença das guerras, seja pelo ritmo voraz das transformações que a História lhe vai impondo, Ondjaki não faz do exotismo um capital, preferindo revelar traços do cosmopolitismo que também circulam pelos terrenos da periferia. Relaciona-se desse modo com a contemporaneidade, a cujos impasses deve responder. A partir do seu chão, reconhece serenamente que é preciso encarar os dilemas da vida concreta e os problemas da expressão que nenhum escritor que se queira maduro pode ignorar. Mesmo no universo dessas literaturas reconhecidas como jovens, é fundamental que o frescor não se confunda com aquele espontaneísmo fácil. A simplicidade é, ao contrário, qualidade que se cultiva e que nasce da famosa luta com palavras que nos faz lembrar Drummond e seus notáveis metapoemas.

Nesse Materiais para confecção de um espanador de tristezas, salta aos olhos o cultivo do familiar como atitude que integra a constituição do lirismo na maior parte dos poemas, procedimento que, aliás, não causa surpresa ao leitor de Bom dia, camarada e Os da minha rua. Observamos que na trajetória de Ondjaki a vivência inscreve-se como uma atitude definidora modelando a própria concepção de literatura que quer exercitar. E o cotidiano constrói-se como uma fonte de imagens a partir da qual ele modula as palavras, procurando talvez revelar o que há de cotidiano no inesperado e o que há de inesperado no cotidiano. Assim se constroem os movimentos que tendem a anular barreiras entre o trivial e o insólito, o sagrado e o profano, o mágico e o corriqueiro. E assim se explica que referências inquestionáveis do mundo da arte integrem um espaço habitado por insetos de nenhum prestígio, como podemos observar acerca de Jorge Luis Borges em “Certo personagem” e a lesma de “O início”. Sem banalizar o sagrado ou o sacralizado, o poeta busca aproximá-lo do comum, do imperfeito, do que escapa ao círculo algo limitador do exemplável. Por isso negocia com a garça gaga. E demonstra que ambos podem ganhar com a troca que dá origem a “A graça e as tardes” (p.14), um dos belos poemas do livro. Essa espécie de paronomásia que vem particularizar a ave, frequentemente referida pela sua elegância, tonaliza a linguagem reveladora do projeto poético que anima o livro.

No aparente despojamento que se confirma em tantos poemas, o autor vai tecendo a rede com que prende a nossa atenção e nos conduz ao centro de seu trabalho, alimentado pela consagração de uma certa intimidade (com personagens do ciclo familiar, com seres do mundo animal que ganham ares mitológicos, com nomes da literatura) que também se materializa no mundo da poesia pela força e graça de um jogo estilístico apoiado na condensação. O ritmo quase narrativo não dilui a energia da linguagem; ao contrário, retesa o gesto de captar os movimentos com que as palavras constroem as verdades da poesia. E é como se estivesse apenas a contar uma história que Ondjaki nos coloca, por exemplo, diante da penosa lição da morte em “Lembranças da casa de tia Anita”. Mais uma vez como no itinerário de sua ficção, ele vai buscar a companhia de seus mais velhos e renova a tradição, remexendo no baú de instrumentos que foram tão bem utilizados pela famosa Geração de Mensagem. Na esteira de Antonio Jacinto, Viriato da Cruz e Aires de Almeida Santos, ele incorpora procedimentos do ato de narrar. Também como eles, convoca o espaço da infância e dos afetos para explicar coisas de si próprio e do mundo, menor ou maior, que o rodeia.

Num hábil contraponto ao desenho dessas quase narrativas, o poeta trabalha cortes significativos, iluminando sentidos a partir de fragmentos. Com algumas pinceladas, dispensando a ideia da continuidade, procura – na economia dos nexos sintáticos, quer dizer, contrariando os preceitos gramaticais – sugerir mapas de sua identidade. O rio Kuanza e a cidade de Luanda são signos que o seu verbo busca redesenhar, livrando-os do desgaste com que são ameaçados pela rala apologia do discurso publicitário, fartamente presente no cenário político. Pode-se vislumbrar, então, um frutuoso diálogo com José Luandino Vieira, um de seus autores preferidos. Aqui, a geografia se constitui pela via da História e com base numa linguagem que recusa a linearidade como princípio. O contato com a oralidade reside na opção pela elipse como um princípio da comunicação, cujo resultado traduz-se numa convenção poética que recusa o excesso, pautando-se pela força de um lirismo ancorado na dimensão do essencial. Ou mesmo no sentido da falta: a garça gaga, as “teias imperfeitas de uma aranha preguiçosa” (“Em carta para Isabel”, p. 28), e até a “borboleta futuramente surda” (“Uma borboleta em Sondela”, p. 29) são imagens que ilustram tal tendência.

Ainda a respeito de diálogos, pode-se reiterar a presença indisfarçada da intertextualidade como força motriz dessa poética. Indiciados ou explicitados, os jogos intertextuais compõem a estratégia de Ondjaki que, como já assinalamos, não hesita em trazer para dentro do universo que constrói com palavras seres com os quais comunga afetos, crenças, concepções, na vida e na literatura. E desse modo podemos compreender o significado de “esquinas”, ponto em que o poeta encontra-se com aqueles que elege como parceiros, como no posfácio se refere Paulinho Assunção, outro de seus “cambas”. Sem restrições no que tange a línguas e linguagens, ele incorpora referências: a par dos brasileiros Manoel de Barros e Adélia Prado, temos o já citado Borges e Chet Baker. De Angola, Arlindo Barbeitos vem fazer companhia a Luandino, presença fortemente evidenciada no belíssimo “Manipular a grande ardósia” (p. 24). Nesse aspecto talvez esteja uma marca significativa do livro, pois o gesto observado em textos anteriores alcança um nível que reflete o amadurecimento de seu trabalho. Confirmando suas lealdades, o poeta constrói uma atmosfera de cumplicidade já distante da noção de paráfrase que por vezes percebíamos em algumas outras obras. Isso significa que, na confirmação de algumas características, inscreve-se, ao mesmo tempo, um processo de superação em sua trajetória, projetada sobretudo nas formas com que são utilizados os recursos da escrita.

Conjugada ao cultivo da intertextualidade, Ondjaki exercita a metalinguística, um dos modos de resistência da poesia em tempos de grande aspereza segundo o célebre ensaio de Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia. Como quem sabe que é preciso espanar a tristeza, o poeta atira-se a tais exercícios, debruçando-se francamente sobre a construção da poesia. Em “Corpo” e em “Confecção de um poema esfarrapado”, o eu lírico confunde-se com o poema, numa projeção que, todavia, limita a entrega com o ato reflexivo a barrar a possibilidade de um devaneio escapista. Talvez se possa dizer que a subjetividade intensamente construída, inclusive pela recorrência do registro da memória, desagua numa prática poética que permite ao autor fugir às armadilhas de um romantismo extemporâneo. Conduzida por imagens como as manchas da infância que se convertem em varicela, ou as borboletas que, afinal, são ramelas a indicar o estado desperto de quem escorrega do sonho (“Apalpar manhãs”, p. 19), a ironia empenha-se em impedir os deslizes a que o sentimentalismo poderia levar.

Atento ao seu trabalho, Ondjaki permite-se, inclusive, um diálogo com sua obra, e alimenta uma reflexão sobre seu próprio percurso. Como um sinal de maturidade, a autoconsciência assegura uma camada crítica a um olhar que poderia se limitar à devoção. Assim evita-se o perigo dos excessos e corrige-se o tom. Um bom exemplo vamos encontrar em “Pequeno espanador de tristezas (a derradeira confissão)”, texto com que fecha “A noite seres”, a primeira parte do livro. Numa espécie de síntese, o escritor entrega-se a um ato reflexivo, a partir do qual desnuda-se, apontando referenciais que definem o seu horizonte, remetendo-nos a águas e pedras que estariam por baixo da (sua) “poesia seja salobra ou salgada”(p.59). Cabe ao leitor perseguir a exploração dos materiais. Dos que ele nos indica e de outros que podemos descobrir em solo tão fértil.

NOTA

1 Originalmente publicado em Ipotesi, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 251-253, jul./dez. 2010.

Referências

ONDJAKI. Materiais para confecção de um espanador de tristezas. Lisboa: Caminho, 2009.


[i] Doutora em Letras pela USP, é professora associada de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na mesma instituição. Foi professora visitante na Yale University, em 1996/1997, e na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1998 e 2004. Tem dois estágios de pós-doutoramento na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique. Integra o conselho curatorial do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o conselho editorial das revistas Via Atlântica e Mulemba. É autora de A formação do romance angolano e Angola/Moçambique: experiência colonial e territórios literários.

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