Considerações sobre o realismo animista a partir da leitura do conto “A morte do velho Kipacaça”, de Boaventura Cardoso

Eni Alves Rodrigues

 

Animismo, palavra que vem do latim animu e quer dizer espírito, vida, que antes fora definido como um conceito primitivo de ver a vida, sem distinguir objeto e seres. Segundo Emile Durkheim a palavra animismo implicaria em igualar seres animados e inanimados. Mas GARUBA (2014) vai acrescentar que o animismo é um modo de pensar a vida, sem os dualismos do modernismo. Sendo assim, “as fronteiras entre natureza e sociedade, mundo dos objetos e dos sujeitos, mundo material e o de significados agenciados e simbólicos são menos confiáveis do que o projeto modernista havia decretado” (GARUBA, 2014 p.2). Portanto o animismo seria um ponto de vista da vida amplamente diferente da visão modernista.

Nesta postura diferente de viver o animismo são conferidos outros sentidos às discussões existenciais do homem: a morte, ao tempo e ao pensamento. Na perspectiva animista a morte, que é vista, ocidentalmente, como finitude da vida, passa a ter um sentido como fator integrante da vida: um processo contínuo do viver, onde a energia vital ainda pode ser experienciada. A linearidade do tempo é transgredida, a dualidade do antes e depois cede espaço a interação, ao fluxo e, o pensamento, a construção do conhecimento que é, quase sempre a partir do referencial europeu necessita ser repensada. A linguagem e o discurso de outras culturas têm contribuições que podem ocupar lugares epistemológicos de conhecimentos antropológicos, sociais, científicos e outros, sem ocupar o lugar do exótico. Podemos, segundo Harry Garuba, (2014, p. 9), “não usar mais abertamente termos otimistas como “progresso” e “civilização”, ou o mais depreciativo “selvagem”, mas encontramos vários sintomas deles em reflexões que intentam aboli-los.” Em muitas discussões acerca do conceito animista o ponto de partida do conhecimento europeu em comparação a outros é inevitável, pois o Outro1 é que oferece condições de distinguir o que o conceito consegue ou não definir, mas ao aproximar os modos de vida de nações, a teoria deve relacioná-los e evitar depreciá-los.

O percurso do conhecimento humano caminhando para dar voz aqueles silenciados pelos processos colonizátorios perpassa pelo uso e apropriação da linguagem dos sujeitos. A linguagem busca refletir a subjetividade em relação à realidade, para tanto cada povo está inscrito em uma realidade e há que ter forma e estética que abarquem o sentido de vida destes sujeitos. O sujeito está inscrito na contemporaneidade e suas contribuições paradigmáticas ao conhecimento são válidas. Vale acrescentar que a postura animista perante a vida é mais uma visão de mundo que busca sua inscrição na estética e no conhecimento da humanidade, pois segundo Harry Garuba(2014), o animismo tem como um dos pilares uma concepção de tempo que rejeita a linearidade, mas reconhece a complexa integração de diferentes temporalidades, formações discursivas discordantes e diferentes perspectivas epistemológicas no mesmo momento histórico. E, então, devemos procurar uma linguagem capaz de representar esse conhecimento.

Nesse sentido podemos ver que ao se apropriar da linguagem e suas formas o sujeito que se coloca numa postura diferente da visão eurocêntrica da vida pode reconhecer que a complexidade do pensamento científico existe, mas que é possível uma integração de perspectivas epistemológicas. Assim “a lógica do pensamento animista fornece uma abertura para se pensar em outras histórias da modernidade, além da trajetória linear e teleológica da narrativa histórica convencional” (GARUBA, 2014¹, p.10 grifos nossos).

Nesta “abertura de pensar outras histórias” vamos realizar uma leitura de um conto do angolano Boaventura Cardoso, A morte do velho kipaça, que é também o titulo do livro. Nesse conto, o autor se apropria do animismo africano, encena a tradição angolana, principalmente a do povo banto e sua visão da morte como parte da vida e não como um fim. Para tanto o narrador nos conta uma história permeada de deslocamentos da realidade cartesiana em que estamos inseridos. A forma estética se aproxima do realismo, pois o texto relata uma cena do cotidiano daquele povo encenado no conto e, segundo Pepetela e outros estudiosos, a estética do conto é o a do realismo animista, conforme podemos ver no trecho seguinte:

Aqui não estamos a fazer país nenhum — disse Lu. — A arte não tem que o fazer, apenas reflecti-lo.

[..] Eu queria era fustigar os dogmas, un, deux, foueté, un, deux, trois, quatre, plié

Eu sei, Jaime. Por isso te inscreves na corrente do realismo animista...

É. O azar é que não crio nada para exemplificar. E ainda não apareceu nenhum cérebro para teorizar a corrente. Só existe o nome e a realidade da coisa. Mas este bailado todo é realismo animista, duma ponta à outra. Esperemos que os críticos o reconheçam. [...] O Jaime diz a única estética que nos serve é a do realismo animista — explicou Lu.

Como houve o realismo e o neo, o realismo socialista e o fantástico, e outros realismos por aí. [...] isto que andamos a fazer é sem dúvida alguma. E se triunfamos é graças ao amuleto que a Lu tem no pescoço (PEPETELA, 1997. p. 451-456, in SARAIVA¹, 2007, p.4, grifos da autora).

Trata se, portanto de uma forma estética que encena a realidade como outras formas estéticas já o fizeram na literatura, mas não se trata dos realismos já retratados e sim de um outro: o realismo animista.

Vale dizer que, em A morte do velho Kipacaça, Boaventura Cardoso, profundo conhecedor de religiões e mitos angolanos, recria características de religiosidades locais, demonstrando seu interesse em usar a criatividade literária para oraliturizar a escrita.

No conto analisado teremos a ficcionalização de uma tradição de alguns povos angolanos, que é a roda de conversa presidida por um líder ancião para resolver um problema da comunidade; no caso do enredo é a falta de chuva: “Eh! Motivo do encontro tem batucada muximante: quem faz a chuva não ter chuva? Seca no lugar da chuva?” (CARDOSO, 2004, p 35).

A narrativa traz no enredo uma reunião para a busca do motivo da falta de chuva pelos moradores do povoado e isto pode provocar um estranhamento, pois “as narrativas que contêm elementos insólitos, ou seja, aqueles que subvertem a realidade, que são incomuns, não habituais ou sobrenaturais, podem ser agrupadas sob a categoria do “insólito ficcional”.(VARGAS, 2014, p.1). Iniciando uma análise deste procedimento literário, a estas estratégias literárias que adotam o insólito, temos alguns tipos de realismos: “o realismo mágico e maravilhoso na perspectiva hispano-americana, e o animismo e o realismo animista na perspectiva africana”.

Podemos nos perguntar por que os conceitos já adotados para narrativas insólitas como realismo mágico e maravilhoso não contemplam a literatura realista africana. Podemos dizer que o referencial teórico sobre realismo mágico nos conduz por narrativas que adotam artifícios de ilusão da realidade, fuga; e na perspectiva hispano-americana temos o realismo maravilhoso que seria o mais próximo do realismo do conto, pois seria uma postura diante do sobrenatural. Porém nenhum dos conceitos abarca na totalidade os procedimentos do realismo encenado por Boaventura Cardoso, pois este encena o cotidiano de África com seu conceito de tempo, vida e morte. Esta relação vai ao encontro do animismo, que está diretamente relacionado com o modo de pensar e viver a realidade e a ficcionalizaçao deste modo de viver seria melhor definida como realismo animista. Esse estilo narrativo é bem acolhido por autores para eles mesmos dizerem de suas obras e por críticos literários africanos e também por estudiosos da literatura.

Na leitura do conto A morte do velho kipacaça são fortes os elementos animistas na história. Temos a natureza que fala por sinais aos personagens, como podemos ler neste trecho da referida obra:

Vento, companheiro da seca, tem anúncio trazendo frescura debaixo da ndenga. Um pouco distante remoinho levanta montanha de areia e corre parece na direçao do local da reunião e depois remoinho se esgueira parece ter espírito estão lhe fazer ngó correr. Eh! (CARDOSO, 2004, p.37).

Aliado a essa natureza que se comunica com os homens, vemos no conto um tempo narrativo não linear dos fatos, onde o narrador traz a personagem mana Tereza que está sentada na cadeira após seu marido sair para a caça e por rememoração traz o próprio Kipacaça morto narrando sua partida para a caça.

Na realidade animista há também uma simultaneidade da vida e da morte, pois segundo Débora J.R. Vargas, 2015, “o mundo do ancestral, o mundo dos vivos e dos que ainda não nasceram... [e] o quarto espaço, o continuum escuro de transição, onde ocorre a inter-­transmutação da essência-­ideal e da materialidade.”(VARGAS, 2015, p.7). Assim vemos encenado no conto um assassinato cometido por um morto, numa das histórias que compõem a narrativa, o sábio afirma que “quem matou o filho alheio da Kakinda foi o espírito de Sebastiao Kusebeca.” Mas como já foi dito o animismo vem retirar a dualidade conceitual e trazer para a visão eurocêntrica a convivência de contribuições sem perspectivas dicotômicas como a morte e vida.

Para recriar toda esta cosmovisão africana sem ficar apenas no reduzido recurso de resgate de tradição, oralidade ou religião, Boaventura Cardoso vai trazer uma estratégia literária de recursos estéticos na forma, que saltam aos olhos do leitor, pois um mundo diferente não pode ser narrado de modo comum. Então vemos um discurso direto povoado de recursos linguísticos como léxico e suas sonoridades: Ngana Kapiapia, na boca dele tem sempre palavra, se levanta ngo assim e fica claro para todos que ele, palavroso, vai palavrar. Eh! (CARDOSO, 2004, p.35 grifos nossos).

O que vimos na citação anterior é que o próprio autor nos diz em umas de entrevista sobre seu modo de escrever: “A tradição entra no texto enquanto forma e não apenas tema”. (SARAIVA², 2007, p.4). Falando ainda da forma, temos um narrador performático (MOREIRA, 2005) que encena, que gesticula o que diz: “pum!Pum!Pum! E a pacaça, unh!, morreu assim”. Nesta narrativa ritmada de uma cultura acústica temos ainda o plurilinguismo que o autor ressignifica ao utilizar o idioma kimbundu- umas da línguas angolanas, entrelaçando ao português oficial para dar voz ao conteúdo e reinventar a produção de sentido do que foi narrado.

Essa pluralidade de estratégias literárias mostra o jogo narrativo do realismo animista, que não o faz assim por primitivismo ou por desconhecimento do cânone literário e sim com “o “diálogo pela diferença” e a “recusa da linha dos sentidos únicos”, aliados àquele movimento dialético entre “o isto e ou aquilo” apontado por Padilha, e que são parâmetros para o estudo dessas obras literárias através de lentes menos reducionistas” (SARAIVA², 2007, p.3) e ainda , pela multiplicidade de recursos literários podem produzir sentidos e promover uma leitura mais abrangente das literaturas africanas em culturas diversas.

Portanto ao ler o conto A morte do velho kipacaça, deparamos com um narrador que nos conta de uma investigação da causa da ausência da chuva, algo, que para a visão cartesiana da vida seria puramente racional, mas somos conduzidos por uma história composta de histórias que num primeiro momento aproxima da ideia de ler o texto pelo viés do realismo “fantástico” e “maravilhoso” de Carpentier que destacava que o conteúdo narrado é “constituinte de uma realidade social representada no romance, afastando-o de um conteúdo artístico criado, “inventado” (SARAIVA², 2007). Mas ainda assim o conceito se torna insuficiente por não abarcar a diversidade da cosmovisão africana diante da vivência cotidiana. Distancia ainda do conceito de realismo maravilhoso, pois este contém um momento de hesitação na leitura, perceptível e o leitor escolhe ser guiado por este caminho ou desvencilhar e fazer uma leitura do sobrenatural do texto. Já o conto analisado é mais próximo do realismo animista pois a história contada é sobre o contexto social e cultural ficcicionado, onde é o próprio morto que vai afirmar sua morte, na cerimônia de seu funeral:

Cantem em memória do Kipacaça, rei da mata, campeão do tiro caçante, dono da caçada, o Rei dos caçadores. Cantem e dancem! Kuatiça o ngoma! Eu estou morto! (CARDOSO, 2004, p.63)

O personagem do velho kipacaça ressurge dos mortos nas festividades de seu próprio funeral e para ironizar que isto não é específico de África, também é para a cultura ocidental o narrador inclui nesta aparição um símbolo daqueles que ressuscitam e Kipacaça “tem na volta dele auréola luzidia!” (CARDOSO, 2004, p.62).

Enfim, a realidade encenada no conto traz na forma e no conteúdo estratégias literárias que estão investidas de uma postura de interação homem-natureza e simultaneidade de tempo e contínuo da vida com a morte, o que leva a fazer uma leitura de pelo viés do realismo animista, apoiada por uma vertente defendida por autores e estudiosos como Sueli Saraiva ( 2007) quando esta nos diz que “parece necessário uma perspectiva ampliada, que considere a possibilidade de exigência, por um determinado conteúdo, de uma forma de representação artística apropriada, para além dos conceitos canônicos; fustigando dogmas com o olhar voltado para “o isto e o aquilo e, não, o isto ou aquilo”, nas sábias palavras de Laura Padilha.

A escrita reinventada por Boaventura Cardoso, na sua vasta obra, e neste conto especificamente, nos leva para além das formas e dos conteúdos canônicos, e amplia aquilo que já nos é caro, o aspecto múltiplo e processual da arte literatura.

Notas

Texto originalmente publicado em Cadernos CESPUC de Pesquisa Série Ensaios - Edição 32- Páginas - 28-34, 2018. Nesta versão, são feitos ajustes e correções.

2O outro espectral de Lacan.

Referências

CARDOSO, Boaventura. A morte do velho Kipacaça. Luanda: Edições Maianga, 2004.

CHIAMPI, Irlemar. O mágico e o maravilhoso e A forma discursiva do Realismo Maravilhoso. In: O realismo maravilhoso. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980.

GARUBA, H. On animism, modernity/colonialism, and the African order of knowledge: Provisional reflections. e-flux 36. 2014. 10p. [Foi utilizado a Tradução de Alice Peixoto. Manuscrito]

GARUBA, Harry. Explorações no realismo animista: notas sobre a leitura e a escrita da literatura, cultura e sociedade africana. Tradução de Elisângela da Silva Tarouco. Nonada Letras em Revista. Porto Alegre, ano 15, n. 19, p. 235- 256, 2012.

MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção moçambicana. Belo Horizonte: PUC Minas, 2005.

Rodriguez, Alexis Márquez. Teoria carpenteriana de lo real-maravilhoso. In: Lo barroco y lo real-maravilhoso en la obra de Alejo Carpentier. Editora Siglo Vinteuno, 1982, p. 29 -36.

SARAIVA¹, Sueli. O realismo animista e o espaço não-nostálgico em narrativas africanas de língua portuguesa. Anais Encontro Regional da ABRALIC,2007, p. 1 - 10.

SARAIVA², Sueli. Fustigar os dogmas: Singularidades da critica africana e africanista. Revista Crioula, no. 2, 2007.

VARGAS, Débora Jael R.; SILVEIRA, Regina da Costa. O insólito na literatura e a cosmovisão africana. Letras & Letras, v. 30, n. 1, p. 207-218, 2015.

 

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