Um canto triste de versos de maresia:
uma leitura da poética de Alda Lara¹

 

Paulo Geovane e Silva²

Fábio Mario da Silva³

 

Resumo: A poesia de Alda Lara é marcada por uma identificação com sua africanidade, relevando também diálogos com autores portugueses, como, por exemplo, Florbela Espanca e Fernando Pessoa, passando pelas problemáticas femininas da maternidade, da casa, da voz e da condição do tempo. Contudo, nosso intuito é observarmos mais dois elementos que se sobressaem em sua obra: o entristecimento e os elementos aquáticos que vão predominar em muitos poemas.

Palavras-chave: tristeza, Alda Lara, poesia, lágrimas, água.

A poesia de Alda Lara certamente tem como marcas e elementos inspiradores do eu poético a amargura e o sofrimento, bem como o elemento aquático associado a esses sentimentos. Aliás, Ana Paula Bernardo já notara que a poesia da autora é fortemente marcada pelos quatro elementos – água, fogo, ar e terra – que, como é bem sabido, são “elementos constituintes do Universo físico” e que seriam “pontos de partida ou caminhos de recursos de uma procura metafísica do sujeito” (BERNARDO, 2010, p. 194). Não por acaso, o poema que abre a edição de seu único livro publicado, Poemas, se intitula “Abandono” e retrata o conselho do eu lírico a um marinheiro de partida, motivando-o a enfrentar os desafios, as lutas, a sua solidão. No poema “Lago” fica evidente esse entristecimento que levará o eu lírico, seguidamente também em outros poemas, a encarar um pesar melancólico: “Todo o meu ser é um lago/ doce e fundo…/ onde a tristeza é uma ansiosa e indefinível/ aspiração” (s/d, p. 14)1. Evidentemente, encontramos alguns versos larianos de euforia, alegria ou esperança; contudo, é constante um tom penoso. Em “O grande poema”, por exemplo, o sujeito lírico escreve poemas “a sorrir”, mas, logo em seguida, revela que está “a soluçar” (p. 155). No poema “As belas meninas pardas” também encontramos “meninas pardas” que nem “são alegres nem tristes” (p. 31), e uma outra menina, a “dos verdes olhos tão belos”, que tem “olhos tristes” (“Romance”, p. 35). O desejo de ser triste vai predominando, progressivamente, como, por exemplo, em “Ronda”, no qual a dança dos dias bailam sob cantigas sombrias e os olhos choram e cansam, nessa dança, nesse tempo que se esvai. São, sobretudo, poemas feitos de “esperanças/desesperadas” e de “dor/ sincera e desordenada” (“Testamento”, p. 25).

Por isso mesmo, Ana Paula Bernardo afirma que na poesia da escritora angolana nos deparamos com um “caos interior” que “se mede pelos impulsos, desejos, inquietações, dúvidas, amores e desamores” (BERNARDO, 2010, p. 194). Por vezes, essa tristeza imensa é desencadeada pela despedida, como, por exemplo, no poema “A caminho”, no qual o amigo, incentivado pelo “eu” a seguir o seu rumo, deixa então os seus olhos tristes: “Por tudo/ eles me estão tristes/ neste fim” (p. 43). São “olhos naufragados”, cheios de lágrimas, sangue e suor. Essa tristeza e dor estão também ligadas a um estado emotivo diante da natureza circundante e das mazelas de outrem, como, por exemplo, no poema “Prelúdio”, no qual nos deparamos com o compadecimento do eu pela mãe negra que pouco chora, que resiste às injustiças sociais. Evidentemente, e apesar do tom melancólico, há nos versos larianos uma força pulsional de vida instaurados em poemas como “Presença Africana”, no qual predomina a identificação com uma “Mãe-África” que resiste forte em meio a mazelas e tem esperanças. Afinal, para Lara, as noites africanas, sob o olhar do colono, são noites de medo e tenebrosas, e por isso elas “são tristes” (“Noite”, p. 71), porquanto nessa terra “a mesma lua triste nos acariciou” (“Rumo”, p. 79). Essa tristeza também é despertada pela separação dos laços sanguíneos: “Não chores, mãe! … A hora é de avançadas!...” (“Delonge”, p. 75).

Já em outro poema, “Dança de roda”, é feita uma associação imediata do sofrimento com as mulheres:

Teus olhos estão chorando? …
pois que chorem moreninha…
Teus olhos estão esperando?...
pois que esperem moreninha…

[…]

Mulher fez-se p’ra sofrer.
para sofrer e esperar.

Mulher fez-se p’ra sofrer
e perdoar…

(Há milênios que sofremos…
não é tempo?...) (p. 105)

Alda Lara alude então ao processo histórico-cultural que associa a mulher ao sofrimento visto que muitas delas são orientadas, desde criança, à sua função como mãe, que sofre pela espera e dor do parto e, mais tarde, sofre por seus filhos. Por um lado, isso demonstra valores presentes na cultura ocidental e herdados pelos letrados angolanos, que iam estudar na Europa e/ou tinha formação com a visão ocidental; por outro lado, as culturas africanas também têm seus mecanismos de patriarcado, de acordo com os quais as mulheres também são obrigadas ao perdão e ao silêncio. Assim, na poesia de Lara perpassa ideias culturais associadas às mulheres, por isso mesmo elas seriam as que mais choram ou se entristecem. Numa sociedade ainda dominada pelo poder colonial, como era a Angola dessa altura, as mulheres são as que mais sofrem dentro dum jogo de posse da dominação masculina. É exatamente isso a que se refere a poetisa de maneira muito sutil nesses versos.

Em outros poemas há uma identificação entre a paisagem melancólica e o eu lírico, o que se dá através de um processo empático e de alteridade, na dor e no sofrimento:

[…]
Chuva que cai,
dolorosa e triste
de um céu pesado
de amargura e acusação.
[…]

Quando a chuva cai
toda a agonia de uma vida mesquinha,
nos invade outra vez…
para que a natureza
não chore sozinha … (“Para leres numa manhã de chuva”, p. 119)

 

Já as flores compartilham também do sofrimento do eu poemático:

E as flores choram por mim
que eu já deixei de chorar
e numa prece,
que eu já não posso rezar. (“In memorian”, p. 151)

Essa projeção dos sentimentos pesarosos nos elementos da natureza1 é uma maneira de enaltecer ainda mais o seu sofrimento, como, por exemplo, acontece em “Cais”:

Adeus! Adeus…
Só havia
nos lábios tristes do vento
um choro de maresia …
(Mas era o meu pensamento) (“Cais”, p. 137)

Não apenas a natureza, mas as pessoas em volta do eu permanecem em estado de abandono, despertando pena por sua vida infeliz:

A vizinha do lado é uma menina
tristemente delgada e fugidia.
Tem uma franga esguia
e um olhar
de doçura abandonada

Toca piano, um piano triste,
tão triste como ela, todo o dia.
[…] (“Primavera”, p. 141)

O mesmo podemos verificar em “Ah! Poesia triste dos prédios cinzentos”, o qual alude às tristezas das ruas friorentas, dos velhos, das mulheres de batas cor de rosa, dos bancos dos jardins públicos; de lugares e pessoas que estão tão tristes num cenário de “horas mortas/ povoadas de insônias” (p. 120), num verdadeiro cântico do estado melancólico das coisas e dos seres, por isso o poema se encerra exaltando “a poesia triste de tudo quanto é triste” (p. 120).

Há um poema em específico, “Vida que se perdeu”, que parece se tratar de uma inspiração autobiográfica, relativo à sua jornada árdua de trabalho e estudos no curso de medicina na Universidade de Lisboa, iniciado em 1948 e posteriormente finalizado na Universidade de Coimbra, justamente a data da escrita do poema:

[…]
Na minha mesa
Há tristeza!...
E essa tristeza
Vem daquela janela fechada,
Que há em frente à minha mesa

………………………………….
Para além da janela
Está a VIDA!...
[…]

E a minha janela fechada…
E a minha cabeça curvada
Sobre o palavriado
Complexo
E sem nexo,
Que os livros contêm!...
[…]
(“Vida que se perdeu”, p. 61)

O labor intenso, os espaços fechados e associados ao entristecimento são revelados pela “prisão” em que se constitui o excesso de estudos que desestimula o eu lírico, cujo estado melancólico é expresso e dolorosamente justificado no poema, como se a existência desse sujeito poético estivesse sufocada pela impossibilidade da vida exterior.

Contudo, uma das imagens que mais se sobressaem na poética de Alda Lara é a referência ao mar, e encontramos as mesmas lamúrias do eu associadas à imensidão da água:

[…]
Vai
Vai contar às praias
que ficam além de ti, ó mar,
que chorei sozinhas as lágrimas
com que me viste chorar
[…]
(“Mar”, p. 153)

Aliás, predomina em sua poética a existência de muitos lexemas ligados ao mar, associados à sua tristeza, como, por exemplo, a maresia, os marinheiros, os tormentos marítimos, os mastros, o bergantim, o barco, os navios, a praia, os rios, os lagos, a chuva, as gaivotas. Por isso, há um liame simbólico entre o mar e a perda, a água e as lágrimas:

Foi-se ao mar meu bergantim,
Foi-se ao mar, … nunca voltou!
………………………….
E por sete luas cheias
No areal se chorou…!
(“Poema que eu escrevi na areia”, p. 18)

Já em outro poema o sujeito poético se constrói como uma espécie de princesa, com o palácio revestido por elementos do mar, eu lírico esse que está entristecido na “solidão” dos seus salões:

[…]
No meu palácio
batido por todos os mares de coral
encastoadas em espumas,
e rendas
e ouropéis,
coberto de cetins e anéis,
no meu palácio de ilusão
onde cantam sereis pela noite dentro”
(“Miserere”, p. 19)

O mar também separa o sujeito que está longe de sua casa, a terra africana, com quem mantém um diálogo na maioria dos seus versos, num processo de identificação com a cultura negra. O mar, então, segrega, separa os indivíduos que estão longe de África e que, por algum motivo, desejam retornar:

Olhos perdidos perscrutando o mar…
… Para lá … que horizontes se marcaram?...
- África d’oiro e sonho! a perdurar
lembranças d’outros dias que passaram…
(“Para ti”, p. 97)

Essa poética do entristecimento está associada às lágrimas, aos olhos fundos com sulcos, líquidos que vão e vêm como as ondas do mar. O mar é avistado, perscrutado, serve como inspiração e diálogo de uma poesia que quer falar de como certas dores e sofrimentos ajudam a construir a identidade dessas vozes poéticas que se enunciam e representam sujeitos reais. Para Ana Paula Bernardo, a água surge nos versos larianos “como fonte geradora de vitalidade, em todas as suas vertentes, fecundidade de terra ou nascimento de uma criança, prolongamento da vida, possibilidade de futuro” (2010, p. 194). Por isso, concordamos com Bernardo quando refere o motivo desse elemento nos versos de Lara:

Á água, que cobre grande parte da superfície terrestre, aparece sob a forma de mar-oceano ou embarcação, projecção de viagens reais, imaginadas, temidas mas muito desejadas. O insistente apelo à chegada do ‘bergantim’ (POE, 17), meio de transporte para, várias vezes repetido ao longo do texto, bem como o sentido anafórico do verbo ter no presente, juntamente com o querer, dão ênfase ao desejo de partir e marcam o estado de ansiedade do sujeito. Mas o Mar surge, por vezes, como destinatário/mensageiro, testemunho do lamento do ‘eu’. Elo de ligação ou obstáculo impeditivo da aproximação de dois pontos da terra e de concretização dos sonhos (BERNARDO, 2010, p. 194).

Lembremo-nos que os elementos aquosos são comparados à vida e à morte: por exemplo, Gaston Bachelard associa, em A Água e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria, a figura feminina às características da água, pois ela é um símbolo da origem da criação, sendo ela mãe, natureza, útero, fonte de vida (o leite materno) e de morte, associada a fontes de prazer e aos banhos enquanto limpeza do corpo (BACHELARD, 1997, p. 89-140). A água lava a sujeira e purifica o corpo, as lágrimas e os prantos funcionam como um purificador e consolador do sujeito poético que necessita da natureza a qual, chorando também, possibilita ao eu lírico compartilhar seus sentimentos, movido ainda pelo constante ímpeto da autocompreensão metafísica.

Notas

Utilizamos, para este estudo, unicamente a edição angolana de: Alda Lara. Poemas. 4.ª ed. Porto: Vertente, [197-]. Por isso, indicaremos, no decorrer do texto, apenas o título e a página em que se encontra o poema citado.

2 Há, evidentemente, poemas alusivos à felicidade efusiva da natureza: “a magnólia sorriu, e ficou./ Docemente sorriu” (“Instante”, p. 142).

Referências

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BERNARDO, Ana Paula. Em torno da poética de Alda Lara. In: SOBRENOME, Organizador, org., Vozes de Cabo Verde e de Angola, quatro percursos literários. Lisboa: CLEPUL, 2010. p. 165-213.

LARA, Alda. Poemas. 4. ed. Porto: Vertente, 1979.

 

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²Paulo Giovane e Silva – Docente da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Belo Horizonte. Membro colaborador do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra (CLP-UC), integra o grupo de pesquisa "Sexualidade e Gênero nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa" (Universidade de Coimbra), dirigido pelo Prof. Dr. José Luís Pires Laranjeira. Coordenador do Grupo de pesquisa "Gênero e Alteridade nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa" (GALA-FACISABH).

³Fábio Mario da Silva é Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará/ Instituto de Estudos do Xingu e do Programa de Pós-Graduação do ILLA/UNIFESSPA. Cumpriu estágio Pós-doutoral em Literatura Portuguesa (2016) na Universidade de São Paulo, com bolsa da FAPESP e em Estudos Portugueses pela Universidade de Lisboa (2020). Doutor em Literatura e mestre em Estudos Lusófonos pela Universidade de Évora. É pesquisador do CNPq no seguinte projeto: “Estudos Portugueses e Africanos”

 

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