Apontamentos sobre alteridade e autoctonia na filosofia africana:

a proposta neo-animista de Ruy Duarte de Carvalho1

 

Christian Fischgold*

Vanessa Riambau Pinheiro**

RESUMO: A proposta desse artigo é situar as ideias e reflexões de intelectuais identificados com os países africanos de língua oficial portuguesa no que se refere ao debate sobre autoctonia e universalismo na filosofia africana. Abordamos questões suscitadas em dois textos redigidos nos últimos anos de vida do autor angolano Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010): Tempo de ouvir o outro enquanto o ‘outro’ ainda existe, antes que haja só o “outro”... ou pré-Manifesto Neo-Animista (2008) e Decálogo Neo-Animista (2009). Inserimos suas propostas dentro de um espectro amplo de debates acerca das reflexões produzidas por africanos e africanistas, como Valentim Mudimbe, Achille Mbembe, Paulin Hountondji e Amina Mama, dentre outros.

Palavra-chave: Ruy Duarte de Carvalho; Filosofia Africana; Literatura

Introdução

A fim de começar a discussão proposta neste trabalho, tomamos emprestado o questionamento formulado pelo filósofo marfinense Paulin J. Hountondji: “Quão africanos são os estudos africanos? ” (2010, p.118). Neste estudo, o autor problematiza a epistemologia das pesquisas produzidas sobre África, bem como chama a atenção para o que ele chama de “etnofilosofia”, feita mais por africanistas do que por africanos no sentido lato da palavra. Neste sentido, cabe refletir sobre os rumos adotados pela filosofia produzida sobre África.

Ao criticar o essencialismo como pressuposto intelectual, Hountondji afirma: “A meu ver, a filosofia africana não devia ser concebida como uma mundivisão implícita partilhada inconscientemente por todos os africanos” (Hountondji, 2010, p.121). Neste sentido, ele vai de encontro aos propósitos de afirmação autóctone e racialista nos quais se basearam o movimento da Négritude. Neste sentido, o intelectual marfinense distancia-se da vertente essencialista pois, ao mesmo tempo em que relata a importância de um local de fala nativo, alerta para o perigo de uma suposta filosofia coletiva africana, na qual as mundivisões de diferentes povos e etnias convergiriam na falácia consentida pelo mito da identidade única.

A escritora nigeriana Amina Mama, por outro lado, constata que a maior parte do que é recebido (e percebido) como conhecimento acerca de África é produzido no Ocidente (Mama, 2010). Essa constatação revela uma complexa problemática: como avançar nos estudos sobre África se o conhecimento na maioria dos casos é exógeno ou, ainda que seja de origem local, pode revelar-se igualmente redutor, já que, não raro, herda estruturais de pensamento ocidentalizadas?

Autoctonia e universalismo em questão

As propostas contidas nos Manifestos de Ruy Duarte de Carvalho refletem essa dupla perspectiva e dialogam com o debate entre universalismo e autoctonia realizados por Hountondji e Mama. Esses textos podem ser lidos como síntese conceitual de aspectos importantes de uma obra marcada, simultaneamente, por uma recusa a todo essencialismo autóctone, e também por uma crítica ao “paradigma ocidental” dominante. Para Carvalho, “toda a contestação, mesmo revolucionária, ao curso da história sob o figurino humanista se tem empenhado na proposta, na adopção ou na imposição de remedeios dentro do próprio paradigma humanista” (Carvalho, 2009). Amina Mama e Ruy Duarte de Carvalho convergem na perspectiva de que o debate entre autoctonia e universalismo está mal formulado, uma vez que tanto um como outro partem de pressupostos ocidentalizantes, meros remedeios ao paradigma dominante.

O filósofo congolense Valentim Mudimbe (2013), por sua vez, acrescenta que o cerne da questão é que, até agora, tanto os intérpretes ocidentais quanto os analistas africanos têm usado categorias e sistemas conceituais que dependem de uma ordem epistemológica ocidental. Mesmo nas descrições “afrocêntricas” mais evidentes os modelos de análise referem-se, explícita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, à mesma ordem. Há um espaço intermédio existente em África, situado entre a reificação do primitivo e a problemática da modernidade, afirma Mudimbe. Nesse espaço revela a forte tensão entre a modernidade - que é frequentemente uma ilusão de desenvolvimento -, e uma tradição que, por vezes, reflete uma imagem empobrecida de um passado mítico. Alienada ao resgate de um passado pré-colonial inventado, os estudos sobre África, ao pretenderem legitimidade, podem cair na falácia de autenticarem-se como discursos que se constroem como ficção do Outro. Afinal, ao pretenderem inserir-se enquanto sujeitos epistêmicos do seu próprio discurso, esses, não raro, acabam por obedecer aos pressupostos engendrados a partir da perspectiva estereotipada de um exotismo autóctone que os limita à reificação da alteridade a partir de fatores condicionantes exógenos.

O pensador congolense vai ainda mais longe ao rejeitar o movimento da Négritude afirmando que também este era concebido a partir de uma epistéme ocidentalizada, ainda que apresentado por africanos. Se partirmos do pressuposto da inconfiabilidade destas premissas ocidentais, certamente questionaremos os conceitos gerados a partir destes. De acordo com Mattos, “para Mudimbe, os ocidentais se entendem como vetores de um modelo pretensamente universal. Entretanto, esta universalidade não é construída através de um modelo real de pluralidade” (Mattos, 2018, p. 89 – 90).

A proposta formulada por Ruy Duarte de Carvalho para escapar da armadilha apontada por Mudimbe - a construção de discursos como ficção do Outro - dá-se através de uma ampla reconfiguração da forma como as alteridades se relacionam no mundo contemporâneo. Para o autor angolano, a problemática-chave encontra-se não em uma dualidade essencialista africana x ocidental, cujo objetivo seria a reafirmação da dualidade autenticidade e universalidade, mas na maneira como diferentes epistemologias se relacionam.

Animismo revisitado

A definição do conceito de animismo, formulada inicialmente pelo antropólogo inglês Edward B. Tylor (1832-1917), em Primitive Culture (1871), refere-se ao conceito de que “a vida animal é produzida por uma alma imaterial”. Trata-se de um dos mais antigos conceitos antropológicos, que se difundiu por outras áreas do conhecimento, como a psicanálise e as artes. No entanto, o que chamamos de “animismo” hoje faz parte de uma reinvenção do antigo conceito antropológico. As definições antigas foram alvo de inúmeras críticas que a acusaram de preservar visões de mundo e retórica positivistas e colonialistas. Apesar disso, pesquisadores como Graham Harvey (2005) reforçam o valor do conceito “as a critical, academic term for a style of religious and cultural relating to the world” (Harvey, 2005, p. XV).

O neo-animismo proposto por Ruy Duarte de Carvalho pretende reformular (e não recuperar) o termo “animismo” em bases críticas, restaurando o conceito, de matriz antropológica e africana, para assimilar diferentes maneiras de lidar com a alteridade.

Essa compreensão reformulada do animismo configura o ponto de partida conceitual para uma releitura do que a expansão ocidental tem produzido sobre o “outro”, ou seja, sobre a alteridade ocidental. Não mais “as simple religion and failed epistemology” (Bird-David, 1999, p. S67), mas como uma epistemologia relacional que procura mudar a compreensão do / sobre o Outro, e sua relação dialética com o “eu”. Esse programa de ação proposto por Ruy Duarte de Carvalho visa a questionar o paradigma humanista que domina e conduz o mundo através do questionamento da maneira como o Ocidente lida com a sua alteridade. Ou seja, é a partir de uma reconfiguração dos pressupostos da alteridade que o programa pretende questionar o paradigma humanista que influencia tanto os pressupostos ocidentais quanto os de africanos e africanistas.

A alteridade ocidental já foi compreendida de diversas maneiras. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos relata três formas pelas quais esse espelho da diferença foi compreendido pelo Ocidente no último milênio: o Oriente, enquanto alteridade civilizacional, uma vez que detinha desenvolvidas formações hierárquicas de poder, além de Escrita e História; o “Selvagem” americano e africano, que causa forte impacto sobre o pensamento europeu, já abalado pela relação com um mundo plurilinguístico decorrente do contato com o Oriente, entre os séculos XI e XIII; e a “Natureza” (natureza selvagem), terceira e última grande descoberta do Ocidente. Enquanto o “Selvagem” é marcado por uma caracterização negativa, a natureza é, por excelência, o lugar da exterioridade. “Mas como o que é exterior não pertence e o que não pertence não é reconhecido como igual, o lugar da exterioridade é também um lugar de inferioridade”, afirma Santos (2006, p. 188).

O programa neo-animista adquire conotações pós-coloniais ao refinar essa versão da alteridade ocidental proposta por Boaventura de Sousa Santos. O autor angolano lista três categorias (não excludentes, nem essenciais), que apontam para uma diversificação da compreensão de alteridade, não mais pressuposta em categorias estanques (oriental e africano). Essas categorias seriam (1) o outro, imigrante nas ex-metrópoles, filhos de ex-colonizados; (2) o ‘Outro’, ex-colonizado ocidentalizado nas ex-colônias; e (3) o “outro”, representado pelos povos que mantém práticas e comportamentos mais afins a quadros pré-coloniais e sobre o qual incide uma pressão ocidentalizante. Na perspectiva de Ruy Duarte de Carvalho as ex-metrópoles não sabem o que fazer com o outro, assim como o ‘outro’ não sabe o que fazer com o “outro” (Carvalho, 2008).

Se por um lado o autor identifica outras formas de alteridade que configuram ramificações internas aos contextos dos modernos Estados-nação, por outro, a perspectiva neo-animista amplia o horizonte dessa alteridade para além do humano. É para superar essa limitação e ampliar as perspectivas acerca da alteridade que o autor recorre à perspectiva (neo) animista. Essa concepção já se encontrava esboçada em sua obra, embora o próprio autor ainda não a tivesse objetivamente formulado2.

Dessa forma, a reconfiguração dos pressupostos da alteridade move-se de polos estáticos essencialistas (Oriente, Selvagem, Natureza) para esferas relacionais / dialéticas e assume com o neo-animismo uma perspectiva ampliada, absorvendo animais e a natureza enquanto alteridade que também deve ser antropomorfizada. A alteridade não é mais concebida como algo essencial, estático, mas em constante mutação, em devir.

O estudioso camaronês Achille Mbembe (2014a) complementa esta concepção dialética da identidade ao considerar que existe um aparato próprio do sistema colonial que parece impor ou insinuar, mesmo aos que pretendem rechaçá-lo, a existência de um discurso preexistente que o condiciona à imitação de si próprio, ou seja, a um simulacro. Nesse sentido, os temas ditos autóctones não seriam, como comumente se poderia atribuir, responsáveis pela reafirmação da identidade africana no mundo ocidental, mas corresponderiam ao reforço desta estereotipação que se pretende evitar. Assim, para o autor, a identidade negra também só pode ser problematizada enquanto “identidade em devir” (Mbembe, 2014a, p.166).

A concepção neo-animista propõe a ampliação dessa perspectiva identitária em devir. Alteridade e identidade concebidas enquanto formulações não estáticas ou essenciais, transformadas em pontos móveis de uma relação dialética. Estes preceitos vão ao encontro do pensamento do crítico ganês Kwame Anthony Appiah (1997), segundo o qual devemos renunciar à ideia de que existe uma África mítica na qual as culturas se inter-relacionam. Assim sendo, seria mister considerar cada país com suas próprias especificidades, sabendo que todos, em algum momento de sua história, farão a busca para redescobrir sua cultura e “(re)inventar as tradições”.

Paradoxalmente, os movimentos africanistas valeram-se da mesma lógica do mundo ocidental para afirmarem-se diferenciados. O pan-africanismo, em especial, apostou no reducionismo da África à raça negra, subvertendo os critérios geralmente adotados pelo mundo ocidentalizado em prol de outros de cunho valorativo; entretanto, a ideia da raça diferenciada - “O pan-africanismo define de facto o nativo e o cidadão, identificando-os com o Negro” (Mbembe, 2014a, p. 160) – seja por exotismo ou por superioridade – foi mantida, e com ela a lacuna que separa o Mesmo dos Outros. 

Esta redução do Negro àquele que “nascido em África, vive em África e é da raça negra” (Ibid., p.161) traz consigo uma dupla aporia: em primeiro lugar, desconsidera os negros nascidos fora do continente africano, ignorando fatos inalienáveis como o tráfico de escravos e a diáspora; em segundo, deslegitima os africanos não-negros, relegando-os ao lugar inglório de descendentes de colonos e impossibilitando-os de afirmarem-se enquanto cidadãos autóctones. Assim, apesar de caracterizar-se como um discurso de inversão, o discurso pan-africanista, contraditoriamente, contribuiu para fornecer subsídios às dicotomias instauradas no mundo ocidental acerca dos africanos e de seu suposto exotismo.

Ao atribuir aspectos de origem autóctone na base das literaturas africanas, o cânone que se estabelece firma-se como um discurso identitário definido, prioritariamente, pela sociedade ocidental. Entretanto, como já foi referido, esta identidade também é forjada, na medida em que é uma imitação de si; outrossim, também espelha uma imagem distorcida ao mundo euro-americano. Mudimbe (2013) ratifica esta assertiva, ao argumentar que os discursos sobre as realidades africanas foram gerados à margem dos seus contextos de origem, e que tanto seus eixos quanto sua linguagem têm sido limitados pela autoridade de sua exterioridade, o que lhe retira a densidade e lhe confere um cariz artificioso.

Entretanto, há um processo complexo envolvido na estrutura deste paternalismo pós-colonial; não podemos reduzi-lo ao mero antagonismo de partes. Concordamos com Leite (2013), que ressalta que se deve evitar uma visão dicotômica da história em África, a fim de se buscar uma perspectiva mais neutra dos factos. Hountondji (2002) indica que a incapacidade de descolonizar a vida intelectual é uma externalização persistente da pesquisa acadêmica africana, que homogeneíza e simplifica o complexo continente africano.

Como referido anteriormente, os africanistas são apontados como prováveis corresponsáveis pela ampliação da imagem de alteridade atribuída aos africanos. Mbembe (2014a, p.305- 306) atribui esta necessidade de diferenciação do Outro a uma forma de protesto diante da autenticidade negada durante o processo da colonização. Para ele, a proclamação da diferença é a linguagem invertida do desejo de reconhecimento e inclusão. Ou seja, mais do que o desejo de matar o pai, existe a imperiosa necessidade de aceitação. “O discurso da Negritude aspira a ser um discurso da diferença, um discurso da comunidade como diferença. A diferença era entendida como um meio de reaver a comunidade, na medida em que se considerava que a mesma tinha sido objecto de uma perda” (Mbembe, 2014b, p.179).

Significativamente, Ruy Duarte de Carvalho convoca o trickster Nambalisita, proveniente da cultura dos povos do sudoeste angolano ― Hereros, Kuvales, Kwanyamas e Nyanekas ― para representar “a grande volta paradigmática” (Carvalho, 2008) da proposta neo-animista. Tricksters são figuras míticas que apresentam normalmente traços cômicos e são importantes para realçar valores culturais à medida que profanam quase todas as crenças centrais, apontando, precisamente, para a natureza dessas crenças (Doty; Hynes, 1997).

Nambalisita nasce de um ovo, comunica-se com todos os animais da criação, enfrenta monstros antropófagos, e desafia as entidades mágicas das sociedades pastoris angolanas: o imbondeiro, o boi, e Kalunga (Deus). Enquanto um dos “Heróis semideuses-deificados” da corte de Kalunga, Nambalisita é um componente da Divindade e, ao mesmo tempo, “produto da cultura social contra Ela”, como afirma o antropólogo Henrique Abranches (1980, p. 84–85). A afirmação máxima da personagem mitológica - eu sou aquele que se gerou a si mesmo – demonstra metaforicamente que Nambalisita

não deve nem obediência, nem rebelião a um pai, a quem prestar e pedir contas……….ele é homem fora da condição humanista porque vive sem invocar a obrigatoriedade de um pai que lhe tenha filiado numa genealogia divina que só lhes dissesse respeito a eles, aos homens parentes de deus, e lhes conferisse autoridade, génio e legitimidade para controlar e regular tudo, a criação inteira……….” (Ibid., p. 408).

É esse herói, que não pretende matar nem ser aceito por um pai, que não deve subordinação nem insurreição, que sintetizará a proposta de Ruy Duarte de Carvalho. A importância de Nambalisita nas configurações atuais do mundo está no fato de tratar-se de um “herói ecológico e da alma comum”, nas palavras de Ruy Duarte de Carvalho (2009a). Um herói para os tempos presentes, que juntamente com outras culturas animistas do resto do mundo, teria muito a acrescentar no programa global imposto a partir do modelo ocidental. Ruy Duarte de Carvalho subscreve a assertiva de Viveiros de Castro de que agora é a vez do nativo — the turn of the native. Não se trata, no entanto, de um retorno a qualquer visão essencialista dos saberes autóctones. Não é the return of the native, mas “the turn, a torção, a hora, a virada inesperada” (Viveiros de Castro, 2015, p.87-88), o momento de expor os limites do paradigma humanista através de uma outra perspectiva - ou da perspectiva do “outro”.

Na esteira dos diálogos contemporâneos, os pensadores da escola moçambicana de Filosofia Africana, da qual destacam-se José Castiano e Severino Ngoenha, desenvolveram uma visão pragmática deste tema. De acordo com o prefácio de Rogério José Uthui ao livro de Castiano (2010, p. 21), Ngoenha caracteriza a existência do africano um “permanente processo de procura pela liberdade apelando para uma ciência filosófica mais interventiva para o processo de desenvolvimento”. Essa liberdade começaria na libertação do próprio passado e na busca do diálogo intercultural. De acordo com o próprio Ngoenha, a nova filosofia africana “deve ser procurada filosofando em equipa entre os africanos e com os filósofos de outras raças e continentes” (1993, p. 109).

Castiano (2010, p. 21), por sua vez, complementa esse pressuposto, sugerindo a criação de espaços de intersubjetivação, através da abertura a um diálogo sistemático intercultural filosófico. “Desta maneira a escola moçambicana é pela «glocalização» da Filosofia tornando-a, ao mesmo tempo, mais interventiva a nível social e epistemológico”. Nesse sentido, as diferentes alteridades são consideradas, pensamento que vai ao encontro do proposto por Ruy Duarte de Carvalho. Ainda de acordo com o pensamento de José Castiano, “o processo da intersubjectivação da filosofia africana passa necessariamente pela criação de valores e atitudes que levem ao reconhecimento do outro como um interlocutor válido, como um sujeito com dignidade e conhecimento” (2010, p. 190). O sociólogo moçambicano Elísio Macamo (2002) também pode auxiliar-nos nesta reflexão; ele identifica três momentos na produção do conhecimento em África que possibilitaram seu constructo social. O primeiro é o saber tradicional, o segundo é o saber colonial e o terceiro é o saber africano. Para Macamo, essa projeção é fruto da aceitação da condição moderna, na perspectiva de encontrar nela um espaço identitário próprio, sem incorrer na falácia essencialista.

Para Hountondji (2010), embora haja em África, na atualidade, a formação de um campo institucional de produção de conhecimento, não se caminhou o suficiente no sentido de formular problemáticas originais, isto é, formular “conjuntos originais de problemas estribados numa sólida apropriação do legado intelectual internacional e profundamente enraizados nas experiências africanas” (Hountondji, 2010, p.140).

Podemos verificar que, apesar de estes pesquisadores africanos possuírem perspectivas distintas acerca do modo como seria possível projetar uma nova intelectualidade em África sem incorrer em essencialismos, há consenso dentre as variadas vertentes acerca da premência de que seja deslocado este lugar de alteridade exotizado dos povos africanos, bem como a necessidade da legitimação de um posicionamento moderno intercultural que permita um lugar de acesso isonômico à estrutura sociocultural contemporânea.

Conclusão

A partir destas reflexões, podemos começar a compreender como se processa a dinâmica do pensamento africano, que parte de uma necessidade de alteridade à consciência da aceitação dos diversos “outros” imiscuídos no processo pós-colonial. Se esta tendência se confirmar, a reformulação do pensamento essencialista africano a partir desses pressupostos poderia permitir, outrossim, o reposicionamento do sujeito enunciador africano na sociedade atual, bem como sua adequada inserção de pensamento no eixo da sociedade, tanto africana quanto ocidental. Nesse sentido, é válido observar algumas das colocações de um dos mais inovadores intelectuais angolanos, Ruy Duarte de Carvalho. A proposta do autor angolano parece ser, ao mesmo tempo, um esforço de deslocamento do olhar com vias a evitar o etnocentrismo da cultura e do paradigma ocidental e, ao mesmo tempo, a recusa ao essencialismo autóctone de algumas propostas concebidas por africanos, dentre os quais destacam-se as propostas pan-africanista e da Négritude. Neste sentido, o autor angolano vai ao encontro dos grandes intelectuais africanos do nosso tempo, como os já citados Mbembe, Mama, Mudimbe e Hountondji, além de contribuir para os estudos africanos de língua portuguesa e de dialogar com os intelectuais moçambicanos Severino Ngoenha, José Castiano e Elísio Macamo. Compreender a complexa epistéme africana em suas multiplicidades e hibridismos sem por isso incorrer na ocidentalização do saber parece ser um objetivo comum destes pensadores que, preservando seu local de fala, promovem a ampliação das perspectivas identitárias africanas e desafiam a lógica binária local/global, autóctone/universal, mostrando que esta divisão não é estanque e encontra-se em vias de constante reformulação.

 

Referências

ABRANCHES, Henrique. Reflexões sobre Cultura Nacional. Lisboa: Edições 70 para a União dos Escritores Angolanos, 1980.

AGUIAR, Itamar Pereira de. O decano da filosofia africana: Paulin Jidenu Hountondji. In: CARVALHO FILHO, Sílvio de Almeida. NASCIMENTO, Washington Santos (Orgs). Intelectuais das Áfricas. Campinas, SP: Pontes, 2018, pp. 95-116.

ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Ed Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1978.


APPIAH, Kwame Anthony. Na casa do meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BIRD-DAVID, Nurit. “Animism” Revisited: Personhood, Environment, and Relational Epistemology. Current Anthropology. 41, p.67–91, 2000 (S1).

CASTIANO, José P. Referenciais da filosofia africana: em busca da intersubjectivação. Maputo: Ndjira, 2010.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” ainda existe antes que haja só o outro... ou pré-manifesto Neo-Animista. Buala, 2008. Disponível em http://www.buala.org/pt/ruy-duarte-de-carvalho/tempo-de-ouvir-o-outro-enquanto-o-outro-existe-antes-que-haja-so-o-outro-ou-p

_______. Decálogo Neo-Animista. Buala, 2009. Disponível em http://www.buala.org/pt/ruy-duarte-de-carvalho/decalogo-neo-animista-ruy-duarte-de-carvalho

_______.A Terceira Metade. Lisboa: Edições Cotovia, 2009a.

CARVALHO FILHO, Sílvio de Almeida. NASCIMENTO, Washington Santos (Orgs). Intelectuais das Áfricas. Campinas, SP: Pontes, 2018.

DOTY, W. G.; HYNES, W. J. (Orgs).Mythical Trickster Figures: contours, contexts, criticism. Alabama: The University of Alabama Press, 1997.

HARVEY, Graham. Animism: Respecting the Living World. London: Hurst & Co, 2005.

HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

HOUTONDJI, P.J. Conhecimento de África, conhecimentos de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. in SANTOS, Boaventura. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2010, pp.117-130.

_______. The Struggle for Meaning: Reflections on Philosophy, Culture and Democracy in Africa.Athens: Ohio University Press, 2002.

LEITE, Ana Mafalda. Ensaios sobre literaturas africanas. Moçambique: Alcance Editores, 2013.

_______. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2014.

MACAMO, Elísio. A constituição de uma sociologia das sociedades africanas. Estudos Moçambicanos, 19, pp. 5-26, 2002.

MAMA, Amina. Será ético estudar África? Considerações preliminares sobre pesquisa académica e liberdade. in SANTOS, Boaventura de Souza. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul.  3ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2010, pp.529-560.

MARTINHO, Ana Maria Mão-de-Ferro. Cânones literários e educação: os casos angolano e moçambicano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 

MATTOS, Regiane Augusto de. Percursos translocais: Valentin Mudimbe e o pós-colonial. In CARVALHO FILHO, Sílvio de Almeida. NASCIMENTO, Washington Santos (Orgs). Intelectuais das Áfricas. Campinas, SP: Pontes, 2018, pp. 71-94.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014a.                                                         _______.Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada. Angola: Edições Mulemba; Portugal: Edições Pedago, 2014b.

MUDIMBE, V.Y. A invenção da África: gnose, filosofia e ordem do conhecimento. Angola: Edições Mulemba; Portugal: Edições Pedago, 2013.

NGOENHA, Severino. Filosofia africana:das independências à liberdade. Maputo: Edições Paulistas-África, 1993.

NOA, Francisco. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. Lisboa: Caminho, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo. São Paulo: Cortez Editora, 2006.

SANTOS, Boaventura de Souza. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul.  3ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2010.

TYLOR, Edward Burton. Primitive Culture.London: John Murray Albermale Street, 1871.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais. São Paulo: CosacNaify, 2015.

Notas

[1] In: Revista Abril (UFF), v.10, n.21, 2018.

[2] Especialmente em alguns filmes da série Presente Angolano, Tempo Mumuíla (1979), em Nelisita: narrativas Nyaneka (1982), e em obras como Vou lá visitar pastores... (1999) e A terceira metade (2009).

* Christian Fischgold é Pesquisador Colaborador Pós-doutorado do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL UNICAMP. Doutor em Letras – Literatura Comparada pela UERJ. Trabalha as relações entre as literaturas africanas e a literatura brasileira, com ênfase nas representações mitológicas e relações interdisciplinares entre etnografia, literatura e linguagens audiovisuais. Membro do Grupo de Pesquisa Multi-Institucional Áfricas UERJ-UFRJ.

** Vanessa Riambau Pinheiro é Professora Associada na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) onde coordena o Grupo de Pesquisa GeÁfricas. Integra o CEsA (Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina) na Universidade de Lisboa, onde realizou uma pesquisa de pós-doutoramento sobre a formação do cânone literário em Moçambique, sob orientação da Profª Drª Ana Mafalda Leite (2016-2017).

Texto para download