O sentimento amoroso na poética de António Jacinto1

Fabio Mario da Silva*

 

À poetisa Ana Paula Tavares e ao Professor Francisco Soares, por me incentivarem a estudar a poética de António Jacinto

Quando se refere a poesia na literatura angolana “Carta dum contratado”, da obra Poemas de António Jacinto é, certamente, um dos versos mais conhecidos e aclamados, tanto pela crítica quanto pelo público leitor. Desde logo o título nos adianta que não se trata nem bem de um poema, nem bem de uma carta, dada a impossibilidade de esta ser escrita, tal como se conclui: “por que é, por que é, por que é, meu bem/ que tu não sabes ler/ e eu – Oh! Desespero! – não sei escrever também!”. Neste caso, estamos diante de uma problemática em volta do analfabetismo tanto do enamorado quanto da sua interlocutora amorosa, e por isso o recurso excessivo ao pretérito imperfeito (“queria”, “levasse”, “sonegasse”). Do condicionamento ao seu desejo de se fazer ouvido pela escrita derivam os “anseios” e “receios” do sujeito poético, bem como o “mal indefinido” de uma saudade à qual vive completamente entregue.

A carta que nunca poderá ser escrita pelo “eu” lírico é, ainda assim, redigida pelo poeta; António Jacinto assim assume essa persona comum no meio social angolano, a de um homem obrigado a trabalhos forçados, dando voz aos socialmente considerados “subalternos”, admitindo que a problemática amorosa dos “novos escravos” esbarra-se na sua falta de acesso à escolarização. Por isso Sérgio Paulo Adolfo acredita que a grande questão apresentada neste poema é “exatamente a ausência de educação formal para as populações africanas na colônia portuguesa” (2011, p. 236), como também adita Maria Rosa Monteiro, que perspicazmente nota que este poema explica “como a língua portuguesa foi uma arma, de facto poderosa, nos movimentos nacionalistas emergentes” (2001, p. 221).

Contudo, há um outro aspecto importante que é continuamente referido nestes versos: a impossibilidade amorosa gera saudades infindas no “eu” poético:

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloua2
dos teus olhos doces como maconde
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por hí... (JACINTO, 1982, p. 29)

A descrição física da amada é feita, recorrentemente, por comparação com os elementos do seu contexto; acima de tudo esta é uma “carta” de amor tipicamente angolana. Por isso os “lábios” da amada são parecidos com uma árvore africana, a “tacula” (pterocarpus tinctorius), cuja madeira, como também a casca, é de cor intensa, sendo avermelhado, cor rubra associada à paixão e à volúpia, e utilizada como tintura em atividades de rituais sagrados, isto quer dizer: a mulher amada é representada como elemento sacral. Os seus cabelos são negros como “diloua”, a solidez terrosa do fundo das águas, ou seja, o lodo ou lama;3 os seus olhos são doces como o “maconde”, referência a um tipo de feijão (o feijão-frade) que também serve para fazer doces e que ao possuir uma cor clara com uns pontos escuros centralizados, lembra as pupilas dos olhos; os seios aqui são equiparados ao “maboque”, fruta aromática de casca rija, numa interligação ao perfeito ideal corpóreo de sua mulher amada e idealizada.4 O andar de “onça” reveste-se de profundas alegorias associadas à sexualidade feminina: o andar sedutor, felino, excitante e perigoso que lhe causa lembranças dos “maiores carinhos” nunca encontrados. O corpo da amada, então, torna-se a terra cultivada numa dimensão corpórea representada metonimicamente; criam-se figuras de acordo com as carências do “eu” lírico, figuras essas que, segundo Roland Barthes, nos vêm à mente abruptamente quando estamos enamorados, “vibram sozinhas” ou repetem-se até cansar “como motivo de uma música sempre igual” (1985, p. 4). Ou seja, a lembrança desta mulher (que frequentemente repete-se através dos elementos da natureza) é também a saudade do seu espaço-terra aconchegante que lhe foi retirado devido ao trabalho escravizante.5 Toda a cena hipotética descrita no poema se passa em um espaço e atmosfera campestres e livres:

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que recordasse nossos dias na capopa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura
da nossa separação... (JACINTO, 1982, pp. 29-30)

O sentimento de liberdade e amorosidade é associado imediatamente a um espaço selvagem e de contato com a essência dos seres, por isso os amantes ocupavam o seu tempo quase como em comunhão com a natureza, fosse à beira da “capopa” (uma fonte), fosse sobre os capins ou à sombra dos jamboeiros. Aliás, esse ideal de “mulher” associado à uma atmosfera selvagem, mais propriamente a um fruto saboroso, comparece também em “Pamona”, poema no qual Jacinto recria uma mulher-deusa como aquela que pode nos dar o néctar dos mais doces frutos:

Que tens para mim suspenso
Dos teus lábios de espera?
Um sorriso um Sol um beijo
Um aroma ou uma flor?
Talvez ainda a saudade
Dum breve perdido amor
Doutra vida que vivemos?
 

Que tens para mim suspenso
Dos teus lábios de febre?
Um fruto um lago uma estrela
Um luar? O bom calor
Duma gruta que habitámos
Lá na floresta florida
Dum lindo país de fadas?
 

Que tens para mim suspenso
Dos teus lábios de seiva
Que eu mereça e te mereça?
Um sonho? Ah! dá-me um sonho
Nesta noite de frio e medo:}
- teus lábios juntos dos meus
à espera que amanheça! (JACINTO, 2000, p. 83)

Estes versos são construídos todos na interrogativa demonstrando, assim, as dúvidas e inquietações do sujeito lírico, para saber se esta deusa pode lhe proporcionar júbilo, já que se encontra numa “noite de frio e de medo”. Tudo gira em torno do significante “lábio”, associação imediata à súplica de um beijo, provocador de sinestesias e que serve de mecanismo para o jogo de sedução, numa tentativa de alcançar o êxtase que os “lábios juntos” podem proporcionar ao “eu” poético. Também o gosto, o recurso ao paladar, está presente neste outro poema e, tal como no primeiro, como forma de declarar um certo “sabor do amor”.

Voltemos então ao poema “Carta dum contratado”. Percebemos que a carta ativaria a recordação na amada, a memória de uma lembrança que para seu remetente é vivenciada diariamente, por isso então o “desespero!” descrito no final do poema. O grande medo do sujeito poético é que todo este amor seja esquecido:

[…]
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento. (JACINTO, 1982, p. 30)

O poema quer a todo o custo que a destinatária tome consciência de que esta “carta de amor” não deve desvanecer-se nos seus pensamentos, ser usurpada pela falta de contato, se não o físico, o contato com as letras e palavras saudosas que não podem ser escritas. Esta “carta de amor” hipotética é única em todo o Kilombo, já que outra mulher não há, que a tal tenha merecimento. Uma carta escrita de forma tão intensa, fantástica, primorosa e sublime que desencadearia os seguintes fatos:

[…]
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajús e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor... (JACINTO, 1982, p. 30)

Os animais e plantas – a natureza – evocados estão presentes como “mensageiros do apaixonado” (ADOLFO, 2011, p. 238); isto acontece porque as palavras que não podem ser escritas podem ser ditas e cantadas, num evidente resgate da tradição oral fortemente marcada na cultura angolana. Aliás, neste mesmo poema há um aspecto interessante, que Maria Rosa Monteiro mencionou nos seus estudos e que é preciso aqui referir: os recursos fônicos. Diz esta autora que

A construção anafórica da estrofe, o jogo «deste/ de ter/», binarismo em repetição extensa, tem o tam-tam que, na oposição verso curto/longo, simula a ressonância e o ressoar da mensagem – a qual, não por acaso, na 5.ª estrofe fica a cargo do vento. (MONTEIRO, 2001, p. 222)

Concordamos que, realmente, existe este jogo de combinações de cadências, de frases ora mais aceleradas, ora mais lentas, ou em alguns casos, quase apenas silábicas:

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
[…]
uma carta de lembranças de ti,
de ti (JACINTO, 1982, p. 30)

Observe-se que este é um poema-carta escrito em “zigue-zague” (tal como outros poemas seus),6 num vai e vem de anáforas que para além de estabelecer um determinado ritmo tem também por objetivo criar um tom plangente e enfático através de um movimento que denota um certo “solfrimento”.7 Podemos assim aferir que nesta mensagem prevalece uma inovação estilística dentro da poesia angolana, visando realçar uma harmonia entre as partes da sua composição: a expressividade sonora, obtida através das aliterações da oclusiva dental (T) que aparece em todas as seis estrofes, conferindo não apenas uma ideia de ritmo e de batuque, mas lembrando o pulsar do coração, já que aqui se fala de amor. Este amor é tão sublime que todos entenderiam e teriam a responsabilidade e predisposição para propagá-lo continuamente. Esta “carta” fala então de coisas “ardentes” e “magoadas”, de desejos e lamentos, demonstrando o antagonismo deste sentimento, como assim referiu Octavio Paz, na obra A chama dupla: amor e erotismo: “o amor é sofrimento, padecimento, porque é carência e desejo de posse daquilo que desejamos e não temos; por sua vez, é felicidade porque é posse, embora instantânea e sempre precária” (1995, p. 154). Herdeiro de uma tradição de poetas portugueses e brasileiros, mencionados por ele em alguns dos seus poemas (como, por exemplo, Fernando Pessoa), os primeiros versos desta “Carta dum contratado” realiza uma mini-intertextualidade com os famosos versos camonianos, “Amor é fogo que arde sem se ver”.8 Vejamos, seguidamente, o trecho do poema de Jacinto que remete aos versos do poeta português:

[…]
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue... (JACINTO, 1982, p. 29, grifo nosso)                               

[….]
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes

Os de Camões dizem:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer:
É solitário andar por entre a gente (CAMÕES, 1961, p. 10, grifo nosso)

Os versos camonianos aludem que o amor é, certamente, um corolário de manifestações contraditórias; em Jacinto, o amor metonimicamente se transforma em um certo “mal indefinido”, trazendo desassossego ao seu coração chagado, tal como a Camões. Por outro lado, a diferença principal entre os dois poetas centra-se que em Jacinto tal sentimento encontra-se estritamente agregado ao sentimento saudoso.

Outra ligação ao mesmo soneto camoniano é encontrada em um outro poema de Jacinto, “Apontamentos para poema”, escrito durante sua prisão no campo de concentração em Tarrafal (Cabo Verde):

[…]
amor é fog’alma
põe brilho
diamante nos teus
olhos. (JACINTO, 2000, p. 141)

Concomitantemente e em harmonia com Camões, o amor interliga-se a um estado de alma: o “fogo que arde” em Camões, e que os olhos não podem ver, põe agora em Jacinto “brilho” nos olhos da amada, com a nítida intenção de pretender “tornar-se puro e ardente, único e universal, dramático e fiel, instantâneo e permanente” (BACHELARD, 1989, p. 119), já que o “fogo” desencadearia isto, despertaria sensações, um incêndio quase que divino, entre dois corpos e duas almas:

O amor não busca nada além de si mesmo, nenhum bem, nenhum prémio, tão-pouco persegue uma finalidade que o transcenda. É indiferente a toda a transcendência: principia e acaba nele mesmo. É uma atracção por uma alma e um corpo; não uma ideia: uma pessoa. Essa pessoa é única e está dotada de liberdade; para a possuir, o amante tem que ganhar a sua vontade. Posse e entrega são actos recíprocos. (PAZ, 1995, p.151)

O fogo referido nos dois poemas alude não apenas à pureza do amor mas à agitação sexualizada (num poema chega a “arder” e no outro “brilha”, expressões de sinais corpóreos) interligada à impureza do amor-ardente, dinâmica esta explicada por Gaston Bachelard em relação às suas reflexões sobre o fogo: “como todas as dialécticas sensíveis que encontrámos na base da sublimação dialéctica, a idealização do fogo pela luz assenta numa contradição fenomenal: por vezes, o fogo brilha sem queimar, neste caso o seu valor é todo pureza” (1989, p. 114). Isto acontece mais precisamente nos seguintes versos: “Eu disse: amor! E tu sorriste/ um sorriso de sol e lua./ Amor é luz! O sonho, sal!/ […]/ Completo sorriso e paleta/ da boca as cores insinua” (“Eu disse: amor! E tu sorriste”, JACINTO, 2000, p. 89). Já aquele fogo que queima deliberadamente deixa cinzas (BACHELARD, 1989, pp. 112-113) – muitas vezes consideradas excrementos – maculando, assim, a pureza, e provocando sofrimento.

Outro aspecto citado por Camões é uma “dor que dói” sem se ver, essa “dor que desatina sem doer” que, consubstancialmente, corrói o “eu” lírico. Na obra de António Jacinto também encontramos versos ligando o amor à dor; em “Doramor”, por exemplo, identifica-se o amor com uma possível imagem feminina, “Dora”, e o desejo ansioso de realização amorosa traz ao “eu” poético a lamentação:

Amar é, – por, e com ele – em verdade, dor
Que amor não é, se dor não se isola 

Dor de sofrer ansiedades, ansiedades que amor
Na pira que da dor esplandece amor, imola. (JACINTO, 2000, p. 84)

O amor aqui é associado, mais uma vez, ao fogo, a uma “pira” que esplandece um sacrifício (imolado) que queima e do qual restarão somente as cinzas. O sentimento antagônico do amor camoniano faz-se ecoar nestes versos: “Amar é, […] em verdade, dor/ Que amor não é.” Ou seja, apesar do sentimento dolorido experienciado pelo sujeito lírico, este crê que amar não é sofrer, resignar-se num sentimento condoído, mas, neste caso, sofre de uma dor ansiosa, causa de desconforto. Isto tudo acontece, porque este sentimento, o “amor”, se asila na poética jacintiana intimamente ligada à “saudade”:

Se disser amor como prece
É por amor que me apetece
Direi também Saudade e Dor (“Se disser”, JACINTO, 2000, p. 85)

Sentimento esse que, segundo Braz Teixeira, tem uma estreita relação com o “amor” na obra de Jacinto, principalmente na obra Sobreviver em Tarrafal de Santiago, da qual escolhemos alguns poemas para reflexão:

Na verdade, em Sobreviver em Tarrafal de Santiago, obra marcada por um lirismo sereno, melancolicamente reflectido, de que está ausente o tom panfletário ou a gritada revolta, surge, pela primeira vez, na poesia angolana, a dimensão esperançosa ou futurante sentimento saudoso e uma clara menção ao que há ou pode haver de reminiscência na lembrança de que nasce, pelo que esta poderá ser gerada ou movida por algo que não se conhece ou não se sabe. (TEIXEIRA, 2004, p. 164)

É nesta obra que nos deparamos com um neologismo tipicamente jacintiano, o “saudadimento” – uma saudade (pensa-senti)mento. Este poema dedicado a uma personagem importante na literatura angolana, Alda Lara, alude que:

Agora e aqui obriga o coração
ao aceno ausente da tua mão. 

Ou luz ou verdade
esta saudade
ressuscita. 

Cada dia palpita
na firmeza do aço
dum último abraço! (JACINTO, 2000, p. 72).

Veja-se que este poema, escrito em 31 de outubro de 1970, durante seu período carcerário em Chão Bom, campo de concentração de presos políticos das antigas colônias portuguesas, em Tarrafal, é posterior à morte de Alda Lara.9 E por mais penoso que seja sua injusta prisão e a morte de sua “camarada”, sua amiga-irmã, agora a saudade traz-lhe a reanimação uma experiência satisfatória, numa revitalização desta figura. Veja-se que a saudade neste poema pode trazer “luz” (pureza) e não necessariamente “queimar”, “provocar dor”, ou trazer “impurezas”. António Jacinto propõe-nos assim uma “vivência simbólica”, inscrita em poema, deste que é, certamente, um dos grandes ícones da literatura angolana, e pelo qual, por isso, se sente unido neste amor quase materno, numa experiência parecida com a descrita por José Ortega Y Gasset:

No amor sentimo-nos unidos ao objecto. O que significa esta união? Não se trata, em sentido estrito, de união física, nem sequer de proximidade. Pode acontecer que um amigo nosso – não nos esquecemos da amizade quando falamos genericamente no amor – viva longe e não saibamos nada dele. Todavia, estamos com ele numa convivência simbólica – a nossa alma parece expandir-se descomedidamente, transpor as distâncias e estar com ele numa comunhão essencial. (ORTEGA Y GASSET, 2002, pp. 17-18)

Esta convivência com Alda Lada é possível no encontro hipoético da poesia e da exigência do sentimento saudoso:

Voltarás
(exige em espera nossa saudade)
E surgirás
das fímbrias da memória
ledos segredos. (“Alda Lara”, JACINTO, 2000, p. 56)

A necessidade de manter viva esta saudade, na reivindicação duma memória pessoal (a do poeta) e coletiva (a do público seu leitor), deste “espectro” que em vez dum sentimento doloroso lhe traz acalento, projeta uma “alma aberta de contentamento” (JACINTO, 2000, p. 56). Isto acontece, segundo António Cândido Franco, porque na saudade poder-se-ia despertar o seguinte:

Dir-se-ia que, neste tipo de amor-saudade, quanto mais perdermos mais ganhamos; e, quanto mais profunda e penosa é a perda do ser amado, mais profundo, grato e até inesperado é o seu reencontro na saudade. Um simples momento de ausência do ser que amamos leva-nos a uma reconstituição superficial e quase imperceptível desse ser, ao passo que a sua morte ou o seu afastamento definitivo da nossa beira levam a uma laboriosa reconstituição interior da sua presença, que passa por vezes pela reanimação autêntica dum espectro, exumado das entranhas vivas da terra e reanimado nesse outro húmus que é a nossa fantasia. (FRANCO, 1996, p. 39)

Em suma, na obra de António Jacinto os poemas de amor eclodem como “mensagens-cartas” imbuídos de um sentimento saudoso interiorizado que procura harmoniosamente se adequar às questões da sua terra. Mas não só: trata-se também de anseios, receios, perdas, de um mal indefinido, de uma saudade vivenciada consubstancialmente a cada dia. A mensagem de sua “carta” não deve ser escrita mas sim declamada e cantada, com o intuito de se fazer perpetuar o seu canto amoroso dentro de uma tradição oral, restando-nos a ideia de que o amor também pode ser metaforicamente como um “fruto maduro”: o sabor que pode acalentar os “solfrimentos” do “eu” poeta, amor esse transcrito com palavras “puras”, “quentes” e “ardentes”. Enfim, embora o “eu” lírico simule analfabetismo, Jacinto domina muito bem a língua do colonizador (que agora é a sua, do seu povo) e a usa para expressar e valorizar o que é angolano, ao modo africano, mais próximo da oralidade, conforme destacamos, daí a língua como instrumento de luta.

Referências

ADOLFO, Sérgio Paulo. António Jacinto e o poema “Carta de um (sic) contratado”: diálogos no espaço da língua portuguesa, Via Atlântica, n.º 16, pp. 229-244, 2011. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50476>. Acesso em: 20, fev., 2014.

BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. Trad. Maria Isabel Braga. Lisboa: Litoral Edições, 1989.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 5.ª ed. Trad. Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1985.

CAMÕES, Luís de. Sonetos. Edição ilustrada, organizada e revista por Artur de Magalhães Basto. 2.ª ed. Porto: Livraria Tavares Martins, 1961.

FRANCO, António Cândido, “As coincidências da saudade: elementos para uma retórica da saudade”, in Actas do I Colóquio Luso-galaico sobre a Saudade, Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1996, p.39.

JACINTO, António. Colectânia de Poemas. Lisboa: A.Jacinto, 1961.

___________. Poemas de António Jacinto. pref. Costa Andrade. Luanda- Inald-Porto: Limiar, 1982.

_____________. Sobreviver em Tarrafal de Santiago. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.

Lusofonia. Plataforma de apoio para o estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: < http://lusofonia.com.sapo.pt/glossario_africano.htm#D>. Acesso em: 21, fev., 2014.

MONTEIRO, Maria Rosa da Rocha Valente. C.E.I. Celeiro do sonho. Geração da “Mensagem”. Centro de estudos Humanísticos, Universidade do Minho, Braga,  2001.

ORTEGA Y GASSET, José. Estudos sobre o Amor. Trad. Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002.

PAZ, Octávio. A chama dupla: amor e erotismo. Trad. José Bento. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.

RIBAS, Óscar. Dicionário de regionalismos angolanos. Matosinhos: Contemporânea, D.L. 1997.

SILVA, Fabio Mario. A Mensagem poética de António Jacinto, Revista Navegações, n.º 85-90, 2013. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes>. Acesso em: 21, fev., 2014.

TEIXEIRA, António. Expressão e sentido na saudade na poesia angolana, Cardernos Vienenses, n.º 34, pp. 157-170, 2004. Disponível em: <http://gib.cm-viana-castelo.pt/documentos/20081028102516.pdf>. Acesso em: 14, jan., 2014.

Notas

[1] Silva, F. M. da. (2014). O sentimento amoroso na poética de António Jacinto. Signótica26(1), 31-44. https://doi.org/10.5216/sig.v26i1.28599

[2] É preciso salientar que há uma flutuação deste lexema. Na edição utilizada para este trabalho (a de Luanda, INALD, de 1982) encontramos esta assim “diloua”, na edição portuguesa anterior a esta (a de 1961) nos deparamos com “dilôa” (p.20), já no site Lusofonia. Plataforma de apoio para o estudo da língua portuguesa no mundo este vocábulo está grafado como “diloa”.

[3] O filho do poeta, Manuel Furtado Amaral Martins, crê que (segundo conversa pessoal que tivemos) esses cabelos refleteriam beleza e brilho, aparentado que Jacinto teria a impressão de criar a imagem produzida pela mistura da areia com o petróleo nas praias e nos lamaçais; assim ficariam mais escuros e, consequentemente, mais brilhantes os sedosos e reluzentes cabelos da amada.

[4] Conferir Óscar Ribas, Dicionário de regionalismos angolanos, 1997.

[5] Por isso Maria Rosa Monteiro conclui que este amor vivenciado é absolutamente africano (2001, p. 223).

[6] Consultar A Mensagem poética de António Jacinto, de Fabio Mario da Silva, 2013.

[7] António Jacinto utiliza-se em quase toda a sua obra de corruptelas. Em “Ilha do Sal” ele escreve “lágrimas solfridas” e “sofrido povo-solferido” (JACINTO, 2000, p. 42), e por isso utilizamos este lexema ao falar de sua poética porque acreditamos que é uma forma jacintiana de se referir ao sofrimento.

[8] Fatos observados por Maria Rosa Monteiro (2001, p. 221), que no entanto não desenvolve a relação entre os versos de ambos os poetas.

[9] Em “Alda Lara” o poeta exorta esta autora e refere os sentimentos seus em volta de sua morte repentina: “Irmã/ Não se frustrou a vida/ de breve interrompida/ […]/ Em dor merencória/ recebemos teu testamento/ - esse que é de sofrimento” (JACINTO, 2000, p. 55). Este poema foi publicado nas duas versões reescritas pelo poeta, uma de 15 de abril de 1967 (JACINTO, 2000, p. 55) e outra em 21 de agosto de 1969 (JACINTO, 2000, p. 56), numa forma de apuramento do poema e revisitação do sentimento saudoso.

* Fabio Mario da Silva é pós-doutorando em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, com apoio financeiro da FAPESP( Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), doutor e mestre em Literatura pela Universidade de Évora , como bolseiro da FCT. É Membro colaborador do grupo do  CEL (Centro de Estudos em Letras da Universidade de Évora) e do CEC (Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa). Também faz parte, como membro integrado, do CLEPUL (Centro de Literaturas e Cultura Lusófona e Europeia) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente dirige, em conjunto com a Professora Cláudia Pazos Alonso, a edição anotada das Obras Completas de Florbela Espanca pela Editora Estampa.

Texto para download