Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara1

 Fabio Mario da Silva*

 

“Todavia, e apesar de tudo, vê lá bem, jamais Angola saia do meu pensamento”
Alda Lara (apud Albuquerque, 2014, p.23)

À memória de Alda Lara
À estimada Tania Macêdo, uma precursora dos estudos angolanos

 

RESUMO: Alda Lara é uma escritora que vivia literalmente em trânsito, dividindo sua curta vida entre Portugal, onde foi estudar, e Angola, terra natal à qual desejava regressar. Nesse trabalho iremos apontar como a vivência nesses dois espaços ajudou Alda Lara a construir o seu mundo poético. Observaremos a organização de seu único livro de poesia, publicado postumamente, apontando como a África aparece em seus poemas, se contrapondo às temáticas inspiradas pela vivência em Portugal.

PALAVRAS-CHAVE: Alda Lara, Angola, Portugal, poesia.

Alda Pires Barreto de Lara e Albuquerque, nascida em Benguela a 9 de junho de 1930, tem a sua trajetória de vida dividida entre Angola e Portugal. É filha de comerciante abastado que logo a envia para concluir seus estudos na metrópole e ingressar na Faculdade de Medicina (inicia em Lisboa e depois de casada vai para Coimbra). Alda Lara passa parte de sua infância em Benguela, onde cursa a instrução primária, até o 6.º ano, no Colégio de Paula Frassinetti, mudando-se para Lisboa em 1947 (aos 17 anos) onde frequenta o 7.º ano (2.º ciclo) do Liceu D. Maria Amália Vaz de Carvalho (BERNARDO, 2014a, s.p.). Na Universidade de Lisboa, onde ingressa em 1948, envolve-se em organismos estudantis e sociais; aliás, essas questões humanísticas são preocupações que vão acompanhá-la durante toda a sua vida. Ficamos a saber, através de seu cônjuge, no estudo de sua obra, que a autora viaja a Angola, pouco antes de seu casamento (cremos que ainda em 1953), realizado em 12 de Setembro de 1953, na igreja paroquial de S. Vicente de Fora, em Lisboa2 (ALBUQUERQUE, 2014, p.17). Sabemos também, através de excertos do seu Diário, publicado por Paula Bernardo (2014a, s.p.), no Cultural. Jornal de Letras Angolano, que, de 9 de abril a 1 de maio, possivelmente aos 29 anos, em 1959,3 se encontra de visita em Cambambe.

Seu marido, Orlando Albuquerque, conclui o curso de Medicina mais cedo, indo para Lisboa e logo a seguir retornando a Angola, ficando Alda Lara em Coimbra para conclusão do curso de Medicina, em 9 de novembro de 1959. Tal curso lhe rendeu reconhecimento: com seu trabalho de final de licenciatura sobre psiquiatria infantil, recebeu convite para uma especialização em Paris, fato que recusa, pois ansiava voltar à sua terra natal e estar em companhia de marido e filhos, vontade que realmente ocorre quando vai morar em Cambambe, em agosto de 1961, para trabalhar em medicina com seu cônjuge, mas vindo a falecer, por ocasião do parto, na mesma cidade a 30 de janeiro de 1962. Ou seja, dos seus 31 anos de vida, Alda Lara vive até os 17 anos em Angola, para depois vir a morar definitivamente entre 1961 e 1962, chegando a viver 13 anos em Portugal, mas com visitas, sempre que podia, a Angola. Isto quer dizer que mesmo passando um período de tempo menor na Europa, podemos notar que a autora desenvolve a sua escrita e a sua formação intelectual em Portugal, influência europeia que, de fato, vamos encontrar em seus versos.

Se observamos a produção escrita de Lara, em meio a sua formação acadêmica e viagens entre Portugal e Angola, a autora dedica-se à escrita da conclusão de trabalho de licenciatura, intitulada “Deficiências psíquicas provocadas por carência de cuidados familiares”,4 de pequenas conferências ( "Os colonizadores do século XX" , palestra indicada no Boletim Mensagem) e artigos em jornais5 (como, por exemplo, o texto publicado em 1950 por Lara em Lisboa intitulado “ O profissionalismo da mulher no sul de Angola”),6 bem como a sua única obra de contos, Tempo de Chuva, escrita em Cambambe, entre 1961 e 1962, publicada postumamente e editada por seu marido, Orlando Albuquerque, que, na altura era o diretor dos Cadernos Capricórnio, numa edição de Lobito, número 2, Angola de 1973.7 Esse livro de narrativas é composto de sete textos, o primeiro deles homônimo, “Tempo de chuva”, seguidos de “Pureza”, “Joana”, “A boneca”, “Desencontros”, “Amor” e “Diálogos do futuro”.8

Porém, nos interessa aqui desvendar os meandros do discurso lírico produzido entre essas duas nações, e como essas distâncias continentais ajudaram Lara a se inspirar e escrever uma obra que transita e dialoga entre os dois continentes.

E se observamos bem a sua obra publicada – edição mais moderna, publicada em Luanda, na qual aqui seguiremos (2014), que é uma atualização da edição de Poemas de 1966, das Publicações Imbomdeiro, com a inclusão de alguns inéditos, sob organização póstuma de seu marido –, Poemas Completos,[9] as datações ali presentes conseguem nos dar indicações do percurso poético da autora entre as duas nações. Relembremo-nos que um dos primeiros textos publicado por Lara foi com quinze anos de idade, em 1945, uma pequena narrativa intitulada “Divagando”, no Jornal de Benguela (BERNARDO, 2013a) e transcrito no Cultura. Jornal Angolano de Artes e Letras, n.º42, outubro de 2013, por Paula Bernardo (2013c, p.11). Apesar da maioria dos seus poemas terem sidos escritos em Portugal, entre Lisboa e Coimbra, como bem demonstra Bernardo, Alda Lara “sempre se sentiu ‘exilada’, os anos que viveu em Portugal privaram-na dos seres e dos seus lugares de afecto” (2014a, s.p.).

Lembremo-nos que o seu Poemas é dividido em Primeiro Livro e Segundo Livro na edição de 1966 e, depois disso, em edições portuguesas e angolanas, posteriores, acrescenta-se uma seção de inéditos. Orlando Albuquerque assume toda a responsabilidade, não apenas dos dois estudos/notas introdutórias à edição (um mais biográfico e outro de apresentação literária da autora), mas também de composição das notas nas quais o organizador nos dá uma noção do trabalho de reescrita poética que durou anos, muitas vezes, indicando, como, por exemplo, no poema “Abandono”, trechos de versões mais recente e de uma outra versão, mais antiga, que iam divergindo devido às constantes mudanças que Lara fazia para atingir o apuramento que desejava.

São nessas notas que ficamos a saber, por exemplo, que desde 1949, aos 19 anos de idade, a escritora já estava preparando uma série de poemas para a publicação do seu primeiro livro, eliminando até a terceira parte do “Poemas que eu escrevi na areia”, peça que, excluída da versão final, foi transcrita na íntegra, pelo organizador, na nota a esse poema, que possuía 3 versões, referindo também que a primeira versão desses versos foi escrito em 1949 até chegar ao corte dessa parte em 1950. (cf. 2014, p.155). Assim, nessas notas vamos encontrando uma série de poemas alterados e reescritos, fato que fez o organizador afirmar que Alda Lara– tanto a escritora quanto a mulher – “tinha uma ânsia de perfeição sempre, quer na vida quer na arte”. (2014, p.157). Na nota referente ao poema “A caminho”– quando a escritora tinha 18 anos e vivia em Lisboa, e seu futuro marido, em Coimbra–, já nos dá indício da correspondência entre ambos, visto o próprio Orlando referir que esse poema foi “escrito em 1948, data em que Alda mo enviou” (2014, p.159), demonstrando o início de uma profícua correspondência que envolvia a literatura como um dos aportes dessa interlocução, aparentando que Alda Lara via em Orlando Albuquerque uma espécie de mentor que lhe ajudaria no seu trabalho poético.

Por fim, ficamos a saber com a nota a um dos poemas mais emblemáticos de Alda, “Presença Africana”, que indica três versões diferentes, inclusive a mudança de título: “Hesitou sempre em assentar, em definitivo, quanto aos títulos, tendo chegado a utilizar (como se pode ver pelos seus papéis), para o segundo, as designações de ‘África’ e ‘Presença Africana’” (2014, p.1960). Contudo, ou parece ainda haver uma quarta versão desse mesmo poema ou– quem sabe?! – pode ser uma das três versões que Orlando cita em suas notas, mas sem referenciar o título, e que se chama apenas “Presença”, publicado no Diário de Angola, numa matéria intitulada “Alda Lara no segundo aniversário de sua morte”,10 assinado por Alfredo Margarido em 31 de janeiro de 1964, página que reproduz ali o manuscrito “Presença”, datado de 1952/1953. É ainda nesta nota que Orlando alude a um fato importante: Alda Lara estava copilando e aprimorando os seus poemas, alguns meses antes de sua morte, em 1962. Sendo assim, se formos às datações do seu livro de poemas, percebemos que o labor da escrita poética da autora começa com a sua primeira peça escrita em 1948, em Portugal, cujo trabalho ainda prossegue em 1962 com as contínuas revisões que faz de sua poesia, sendo a última datação dos versos correspondente ao final do seu curso de Medicina, intitulado “Noite”, escrito em janeiro de 1959 em Lisboa.11

Outro fator importante a referir é que, apesar dos poemas que abrem as partes do primeiro e segundo livro datarem de 1948, quando se indica a data dos primeiros versos publicados ali, e apesar do “Primeiro Livro” não seguir, efetivamente, uma sequência cronológica dos poemas que se encontram datados, o “Segundo Livro” é todo organizado pela data em que primeiro foram escritos, pelo menos os poemas que se encontram datados, que são a maioria. Sendo assim, aparenta que o “Primeiro Livro” segue mais uma linha temática e de interlocução entre os poemas, lógica a qual será abandonada para a segunda parte dos Poemas Completos. Já em relação aos versos com indicações de locais onde foram escritos, encontramos a maioria com referência a Lisboa e um em Coimbra, e outros tantos sem indicação do local ou data, ou apenas de um desses elementos. Já os únicos poemas referenciados como escritos em Angola são “Anúncio” e “Presença Africana” em Benguela em 1953, provavelmente na viagem que faz antes do seu casamento, e publicado na primeira parte do livro, poemas esses que antecedem e precedem “Quadras da minha solidão”, datado de 1950, e “Prelúdio”, escrito em Lisboa em 1951. Cremos que esses poemas estão juntos no final da parte da obra porque constituem como diálogo das temáticas de viés africano do livro.

Vejamos: “Anúncio” é uma evocação das marcas identitárias africanas demarcadas no corpo físico do eu lírico: os olhos cor de sangue, os braços embrulhados em palma, cobras mansas enroladas nos quadris, azagaias nas mãos, carne rija e quente, sendo tudo isso, afinal, o “anúncio’ de uma “lei” (p.63) que o sujeito poético traz no seu corpo. Já em “Quadras da minha solidão”, comparam-se duas realidades solares, de um sol que aquecera intensamente o seu corpo outrora, referência à África, e de um outro, breve e de uma longa duração, clima português. Essas duas realidades servem como mote para esboçar o quadro melancólico em que se encontra o eu poemático, devido a sua intensa solidão, e o seu desejo de regresso, assim como tantos outros cidadãos angolanos que retornaram às suas raízes: “Donde estou vejo partir/ quem parte certo e feliz./ Só eu fico. E sonho ir,/ rumo ao sol do meu país...” (p.64). No poema a seguir, “Prelúdio”, alude-se à estória da “mãe-negra”, ama de leite que ajudou a embalar e cuidar dos filhos dos senhores de terras, crianças que cresceram e esqueceram o papel dessa “mãe”, tal como o território africano que serve de exploração e mão de obra barata para aqueles que ali imputavam a exploração em detrimento da busca por riquezas. A figura dessa “criada-mãe” aparece estática no poema, dando voz a uma personagem socialmente marginalizada, a qual Alda Lara vê como importante e que merece ser referenciada em seu poema, visto que uma das preocupações da escritora é dar voz à África e, nesse poema específico, colocar em cena também a fala daquele que é considerado inferior na escala social.

Por fim, o primeiro livro encerra-se com um dos poemas mais conhecidos de Lara, “Presença Africana”, que se inicia utilizando o “apesar”, ou seja, apesar do seu deslocamento territorial e/ou mudança/crescimento intelectual, o eu lírico, tipicamente feminino, refere que continua a mesma. Ou, nas palavras de Érica Pereira, Alda Lara assim afasta o patriarcado, recorrente da situação colonial, revalorizando as linhas das tradições matrilineares e que mesmo as agruras que teve que enfrentar jamais apagou de sua memória o amor à sua terra (2010, p.149). É a demonstração de um sentimento de pertença, de um certo nacionalismo que se remete não a um país, mas a um continente, a um contexto social e ambiental, com forte apelo e exaltação à natureza: “Mãe forte do planeta e do deserto (...) / A dos coqueiros/ de cabeleiras verdes/ e corpos arrojados/ sobre o azul...” (p.67), valorização resgatada por essa existência “em trânsito” que tanto contribui para as reflexões que faz de si, do seu país, do contexto africano e de Portugal em sua obra. Vale referir ainda que esse poema se contrapõe às paisagens europeias que também inspiram o sujeito lírico, como em “Entardecer”, escrito em Coimbra em 1959 e que fala da delicadeza de um jardim e de suas mariposas, bem como a cor fúcsia das magnólias de certo jardim, cantada em “Instante”, texto no qual o vento passa e as vem beijar (p.141).

Por seu turno, no “Livro Segundo”, os poemas que fazem alguma referência direta ao contexto africano são, inicialmente, 3 poemas arrolados seguidamente: “Noite”, no qual são evocadas as langorosas noites africanas, os seus mistérios, batuques, solidão, florestas, negros e brancos, e um clima que também desperta medo, fantasmas mais recônditos e histórias de feitiçarias. Seguidamente, em “Regresso”, mais uma vez é explícita a saudade dessa paisagem, desse território, ainda a explorar pelo eu poético, que deseja ver essa paisagem e embriagar-se nela, quase como se estivesse fundindo a ela: “Sede... Tenho sede dos crepúsculos africanos,/ todos os dias iguais, e sempre belos,/ de tons quase irreais...” (p.83). Contudo, é nesse poema em específico que Lara refere Angola e as problemáticas da luta armada, terra essa cheia de promessa de prosperidade aos que regressassem: “Com que prazer/ hei-de esquecer/ toda esta luta insana.../ que em frente está a terra angolana,/ a prometer o mundo/ a quem regressa...” (p.84).

Já em “De Longe”, num tributo à sua mãe, os versos resgatam a reminiscência da infância e de paisagens vivenciadas na África nesse período, de quando estava próxima da figura materna, poema certamente escrito em Portugal. Já “Rumo”, dedicado à J.B. Dias em 1949 e à sua memória em 1951, é um poema que tenta despertar no seu “companheiro” a consciência do regresso à terra natal, do sol ardente que queima, terra essa que clama pelo retorno de ambos. Em “Para Ti”, por fim, alude-se a um certo “Poeta” moçambicano, que ainda menino a velha ama preta não cansou de embalar e que apenas o eu lírico não o conhecia quando menino. (p.92).

Por sua vez, nos poemas que fazem alusão explicita ao contexto português/europeu, encontramos – logo no texto de abertura da segunda parte, intitulado “Vida que se perdeu”, de 1948, ano que ingressa da Universidade de Lisboa – traços biográficos duma experiência à sua mesa de estudo, do tempo exaustivo, do desgaste, que demanda o trabalho de formação acadêmica e o qual, consequentemente, leva o sujeito a espaços fechados, atividade que realiza com frequência e que leva a uma certa melancolia: “Para além da janela,/ Está a VIDA...” (p.71).

Há ainda uma referência às festas de Santo António em Lisboa, em “Dia de Santo António”, escrito em junho de 1949, demonstrando a euforia por esse festejo e suas respectivas comemorações, principalmente da fogueira do santo, que, por um lado, emociona e alegra, mas, por outro, parece estar totalmente esquecido. Essas cidades desenvolvidas despertam, de certa forma, em “Ah! Poesia triste dos prédios cinzentos”, um vazio e tristezas, captadas pelo eu poético e que, como já referido por Fabio Silva e Paulo Silva, compõem um reflexo de um clima friorento, onde velhos e mulheres estão nos bancos dos jardins das praças “de lugares e pessoas que estão tão tristes num cenário de ‘horas mortas/ povoadas de insônias’ (p. 120), num verdadeiro cântico do estado melancólico das coisas e dos seres, por isso o poema se encerra exaltando ‘a poesia triste de tudo quanto é triste’ (p. 120).” (2018, p.28-29).Versos nos quais também ficam plasmadas a influência de autores e literaturas fora de África e do mundo Ocidental, também já aludidos por Silva e Silva:

No todo do poema, é possível perceber uma poética da visão poética, ou seja, a poesia, enquanto ato criador, poiesis, dá a ver o mundo à volta tal como ele é de fato: triste, melancólico, sofrido, cujos sentimentos o eu lírico partilha com aqueles e aquelas que o cercam, destacando cenas e situações mormente esquecidas. O sofrimento expresso na poesia, temporalizado em “horas mortas”, é intensificado pela afirmativa “Nunca mais!...”, retomada do poema “O corvo”, poema escrito pelo norte-americano Edgar Alan Poe (1845). Como se sabe, nesse texto, o animal macabro adentra-se na casa do eu lírico, que reflete sobre o falecimento da amada, e ali fica, marcando a inevitabilidade da morte, donde o leitmotiv “Nunca mais!”. No poema de Alda, essa intertextualidade reforça o tom tétrico do cenário e das pessoas evocadas no poema, ambos marcados por um traço de morte e melancolia. (2018, p.29)

Por seu turno, “A Coimbra” é um canto de exaltação à “cidade eterna”, que agora é sua também, visto ter acolhido Lara durante a sua conclusão do curso de medicina. Cantando as suas ruas e as paisagens, a escritora conclama a cidade à luz da leitura do de António Nobre, que lhe ajuda a perceber a imagem de cidade estática no tempo, à espera de algum sonho que já morreu. Na seção de inéditos encontram-se os poemas “In Memoriam”, “Mar” e “Pátria”, leitura saudosa de regresso à África, bem como “O grande poema” e “O poema da nostalgia”, que são tentativas de reescrita e aprimoramento do mesmo verso.

Por fim, há de se notar, em seus poemas, a constante alusão a imagens aquáticas – navios, barcos, mar, lagos, bergantins – que demonstram, através dos referidos lexemas, entre tantos motivos, uma barreira, o mar, que separa os continentes europeu e africano e se serve, por exemplo, para o eu lírico sair do “marasmo” em que se encontra, o que fez com que se conjecturassem a possibilidade de se entender essa insistência ao elemento aquoso como uma maneira de expressar “a melancolia angolana e africana, associando-a à água, cuja substância e fluidez não deixam de sinalizar também um discurso marcadamente feminino, porquanto catalizador de uma purificação pela qual as vozes líricas de Alda Lara têm de passar.”(SILVA; SILVA, 2018, p.34)

Enfim, à melhor guisa de conclusão, notamos que estamos diante de um discurso saudoso, melancólico, deslocado, que retrata, evidentemente, a partir também de uma visão europeia, a influência de muitos anos vividos na metrópole: o paradoxo entre o mundo europeu e africano. Por isso, poucos poemas fazem alusão ao contexto europeu e/ou português nitidamente. Mas, efetivamente, as alusões a objetos e imagens que ativam lembranças da África – e, portanto, de tessitura da memória, da sua infância, do desejo do regresso – se tornaram os mais expressivos e eufóricos, contrastando com o cenário melancólico português, no conjunto de sua obra e, portanto, são mais constantemente abordados por sua crítica.

Durante esse seu curto período de vida, Alda Lara, como já referimos, ficou dividida entre duas nações e nutria um grande desejo de regressar a Angola, apesar da sua origem europeia, visto que sua família vinha das terras do Minho (Bernardo, 2013a). Assim, percebemos porque com frequência nos deparamos com referências ao contexto africano, tão desejado pelo eu lírico, que vê, estreita e almeja essa terra distante e, apesar de um passado e presente fatídicos com a exploração dos “irmãos negros”, Alda Lara acredita que essa terra do futuro, ainda que sob o julgo de tantos maus-tratos, sempre existirá com fulgor:

Vem dizer
que para além
de tudo o que é passado e porvir,
a Pátria das palmeiras e dos dongos ficará...
p´ra sempre ficará brilhando,
sobre a campa dos Homens que se foram
e sobre o berço dos Homens que hão-de vir... (1957(?) (p.152)

Por último, há de se notar que, efetivamente, as edições que reproduzem “a obra completa” de Alda Lara carecem de uma revisão e de um trabalho mais extensivo sobre a produção da autora, tendo em vista, por exemplo, que ela publicava constantemente em jornais visto que “a sua presença em publicações periódicas em Portugal e Angola, desde a década de 40 até à década de 70, do século XX” (BERNARDO, 2013c, p.10) é frequente. Logo, ainda está por sair realmente o volume definitivo de sua Obra Poética Completa, depois de tratado todo material publicado em jornais,[12] juntamente com o espólio da autora e a obra que já temos publicada.

Por fim, concluímos que é exatamente por se sentir “exilada”, que essa sua existência em “trânsito” contribuiu para a produção temática e poética de Alda Lara. Ou seja, apesar de fronteiriça, a lírica de Alda Lara tende mais para o apreço a Angola e aos espaços africanos em detrimento do Europeu, que contribuiu com a sua formação intelectual.

Referências

ALBUQUERQUE, Orlando. A mulher – Breve Notas biográficas. in LARA, Alda. Poemas Completos. Luanda: GRECIMA, 2014, p.15-18

_________. A Poetisa. Para uma introdução ao estudo da sua poesia. in LARA, Alda. Poemas Completos. Luanda: GRECIMA, 2014, p.19-25

_________. Notas. In LARA, Alda. Poemas Completos. Luanda: GRECIMA, 2014, p.153-168.

BERNARDO, Ana Paula. Perfil de Alda Lara II. In Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras online, n. 45, 3 jan. 2014a. Disponível em: <http://jornalcultura.sapo.ao/letras/perfil-de-alda-lara-ii>. Acesso em: 23 abr. 2019

_________Textos dispersos de Alda Lara. In Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras online, n. 46, 23 jan. 2014b. Disponível em: <http://jornalcultura.sapo.ao/letras/textos-dispersos-de-alda-lara>. Acesso em: 23 abr. 2019.

_________. Alda Lara e a imprensa do seu tempo. In AREIS, Laura; CUNHA, Luís Pinheiro. As mulheres e a imprensa periódica. Lisboa, CLEPUL, 2014c, p.67-84. Disponível em: < https://issuu.com/clepul/docs/as_mulheres_e_a_imprensa_peri__dica_036d5f38a02d5d>. Acesso em: 25 jun. 2019.

_________. Perfil de Alda Lara. In Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras online, n. 44, 14 dez. 2013a. Disponível em: <http://jornalcultura.sapo.ao/letras/perfil-de-alda-lara-i>. Acesso em: 23 abr. 2019.

_________. Alda Lara – Textos dispersos. In Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras online, n. 42, 23 nov. 2013b. Disponível em: <http://jornalcultura.sapo.ao/letras/alda-lara-textos-dispersos>. Acesso em: 23 abr. 2019.

_________.  Alda Lara – Textos dispersos. Divagando... In Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras online, n. 42, 28 outubro, 2013c, p.11-13. Disponível em: <http://jornalcultura.sapo.ao/capas?y=2013&m=10#capa>. Acesso em: 23 abr. 2019.

LARA, Alda. Poemas Completos. Luanda: GRECIMA, 2014.

LARA, Alda. Tempo de chuva. Lobito: Cadernos Capricórnio, 1973.

LARA, Alda. Deficiências psíquicas provocadas por carência de cuidados familiares. Braga: Edições APPACDM Distrital de Braga, 1997.

PEREIRA, Érica Antunes. De missangas e catanas: a construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-tomenses (análises das obras de Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição Lima, Noémia de Sousa, Paula Tavares e Vera Duarte). Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-04012011-101230/pt-br.php,a>. Acesso em: 09 junho 2019.

SILVA, Fabio Mario e SILVA, Paulo Geovane e. Um canto triste de versos de Maresia. Uma leitura da poética de Alda Lara. In: Interfacis, Belo Horizonte: FACISA, v. 4, n. 1, 2018, pp.20-34.

Notas

[1] Texto publicado, inicialmente, na Revista Mulemba. SILVA, Fabio Mario. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. DOI: https://doi.org/10.35520/mulemba.2019.v11n21a31260

[2] Datação indicada por Paula Bernardo no ensaio online disponível em: http://jornalcultura.sapo.ao/letras/perfil-de-alda-lara-ii

[3] Segundo Paula Bernardo, no Diário a informação é que são excertos de 1959/60. Mas, como são apenas excertos, a datação exata é difícil porque não sabemos se pode ter havido montagem. De qualquer modo, há excertos com referência a que Alda Lara teria 29 anos. (relatos feito por -email no dia 9 de junho de 2019)

[4] Tal trabalho foi publicado em 1997, pelas edições APPACDM: Deficiências psíquicas provocadas por carência de cuidados familiares. Braga: Edições APPACDM Distrital de Braga, 1997

[5] Alda Lara publica também poemas esparsos em jornais.

[6]Texto transcrito e publicado no Cultura. Jornal Angolano de Artes e Letras, online, sem indicação de qual jornal teria publicado tal ensaio, disponível em  http://jornalcultura.sapo.ao/letras/o-profissionalismo-da-mulher-no-sul-de-angola

[7] Além do livro de Alda Lara, Orlando publica o seu próprio livro, o número 1, intitulado Um grande negócio, bem como Irmã da Humanidade, também publicado em 1973, de Jorge de Macedo, entre outros autores

[8] Uma única análise em artigo acadêmico que foi feito sobre Tempo de Chuva é de nossa lavra com coautoria de Paulo Geovane e Silva, ainda no prelo, intitulado “Alguns aspetos da obra Tempo de Chuva, de Alda Lara”, trabalho apresentado No Colóquio intitulado “Mulheres Africanas em Trânsito. Homenagem a Alda Lara”, decorrido de 15 a 16 de Novembro de 2018 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a seguinte programação:  http://mulheresafricanasemtransito.blogspot.com/.

[9] Cremos que talvez aqui não estejam reunidos os poemas completos, dado que a autora também tem poema publicado antes de sua ida a Portugal em jornal de Angola e tem contribuições em diversos periódicos. Por isso, aguardamos que futuramente seja publicado a sua obra completa e definitiva.

[10] Essa peça foi exposta durante o Congresso que organizamos na Universidade de Lisboa, intitulado “Mulheres Africanas em Trânsito. Homenagem a Alda Lara”, sob curadoria de Ana Paula Bernardo. Site do evento: http://mulheresafricanasemtransito.blogspot.com/.

[11] A seguir,encontram-se dois poemas, “A Coimbra” e a “Paul Éluard”, sem indicação de data ou local.

[12] Para maiores informações sobre os jornais e algumas publicações de Alda Lara em jornais ler o importante artigo de Paula Bernardo intitulado: “Alda Lara e a Imprensa do seu tempo”, de 2014c.

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* Fabio Mario da Silva é pós-doutorando em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, com apoio financeiro da FAPESP( Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), doutor e mestre em Literatura pela Universidade de Évora , como bolseiro da FCT. É Membro colaborador do grupo do  CEL (Centro de Estudos em Letras da Universidade de Évora) e do CEC (Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa). Também faz parte, como membro integrado, do CLEPUL (Centro de Literaturas e Cultura Lusófona e Europeia) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente dirige, em conjunto com a Professora Cláudia Pazos Alonso, a edição anotada das Obras Completas de Florbela Espanca pela Editora Estampa.

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