Literatura Cinema em Angola: narrativas necessárias da Nação pós-colonial1

Marinei Almeida*

Resumo:

Levando em consideração a premissa do cineasta Ruy Guerra de que um país deve “criar a própria imagem coletiva, num processo de “existir” ao outro” e a afirmação que Octavio Paz (2003) faz de que o poder da linguagem nascida da palavra desemboca em algo que a ultrapassa e faz a imagem recobrar asas, este artigo tem o objetivo de refletir criticamente, em um diálogo positivo entre cinema e literatura, algumas narrativas/imagens da Nação pós-colonial em Angola. Desse modo propõe-se uma discussão sobre como essas narrativas convocam a história, de uma determinada época, na representação de uma memória coletiva e como se faz presente a necessidade de narrar a “realidade” da Nação pós-colonial. O foco de nossa reflexão será mais precisamente sobre duas narrativas: a obra cinematográfica O herói (Angola, 2004), de Zezé Gamboa e a novela Um anel na areia (estória de amor), de Manuel Rui de 2002.

Palavras-chave: Literatura; Cinema; Angola; Imagem; Nação pós-colonial.

 

A língua, mesmo a literária – não é uma
invenção arbitrária, mas um produto histórico.
(Rubén Bareiro Saguiar)

 

Assim como a literatura conseguiu seu apogeu, obtendo maior expressão, no sentido de repercussão, nos séculos XIX e XX, o cinema, “o olho mecânico” - como nessa época foi intitulada - na contemporaneidade é o gênero que agrega maior número de interessados e desponta hoje como o mais “badalado” veículo de divulgação cultural. Nesse gênero, assim como no romance, estão contidos três elementos fundamentais: o ficcional, o narrativo e a representação. Elementos responsáveis pela impressão da realidade, provavelmente sendo esta a base em que ancora o sucesso do gênero fílmico, por passar a impressão de que a vida está sendo mostrada na tela.

A ponte entre a literatura e o cinema, portanto, está intrinsicamente ligada à experiência vivida pelo espectador, por esta ser bastante parecida a do seu cotidiano, levando em consideração que enquanto artes temporais ambas são capazes de construir outros mundos possíveis.

O sociólogo americano Howard Becker, na obra Falando da sociedade – ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social (2009), em um discurso provocativo afirma que a elaboração de representações não é uma atividade exclusiva de cientistas e que não existe uma forma mais apta para representar o real. Ele defende que as representações da esfera artística como a fotografia, filmes, romances e peças teatrais são documentos importantes e instigantes de investigação para todas as ciências, inclusive para a sociologia, pois estes apontam para eventos sociais e em vários deles descrevem a própria vida social sem uma obrigação precisa com a “verdade”. Portanto segundo sua opinião, estas obras devem ser levadas a sério porque elas pretendem “nos dizer algo que não sabíamos antes sobre algum aspecto social” (2009, p. 126).

Esse estudioso ainda chama atenção para a credibilidade dessas representações e aponta para o chamado “acordo social”, pois leva-se em consideração que uma representação é produto de ação coletiva de atores sociais interessados na sua produção e recepção, portanto o acordo permeia tanto  produtor-escritor como público, pois “se o que nos dizem se assemelha à nossa experiência, nós o aceitamos” pondera Becker (idem).

Assim, voltados para o diálogo profícuo entre essas duas esferas de representação, literatura e cinema, é que se propôs a leitura de textos fílmicos e literários. No campo literário lançamos mão da obra Um anel na areia (estória de amor), novela do escritor angolano Manuel Rui, publicado em 2002 e no campo do cinema o texto fílmico escolhido é O herói (2004), do cineasta, também angolano, Zezé Gamboa. Desse modo propõe-se uma discussão sobre como essas narrativas/imagens convocam a história, de uma determinada época, na representação de uma memória coletiva e como se faz presente a necessidade de narrar a Nação pós-colonial.

A primeira obra, Um anel na areia (estória de amor), numa narração quase em espiral, traz um retrato bastante problemático da cidade de Luana ao apontar para as dificuldades materiais desse espaço, sobretudo quando conta a maneira de vida dos jovens em plena convivência com as várias consequências sociais que resultaram dos anos de exploração, violência e desigualdade, frutos da herança colonial e da Guerra civil que assolou Angola por quase 30 anos. Marina, moça jovem, bonita e sonhadora que, graças ao domínio da língua inglesa e da informática trabalha no escritório de uma petrolífera e mora com sua tia Aurora – saudosa dos tempos idos. Marina, não tendo mãe, fora morar com a tia para não deixá-la sozinha, uma vez que esta há muito não obtinha notícias de seus filhos, sua filha fora para Portugal e não mais voltou, seu filho para a guerra e provavelmente teria morrido em combate, pois já somavam mais de sete anos sem notícias dele. Ao contrário de Marina, Gui, sua amiga, que, por falta de atributos físicos e capacitação exigida no mercado de trabalho, é uma moça desempregada e seu discurso demonstra uma enorme insatisfação com tal situação e esta acaba por entrar no ramo ilegal de compras e vendas de produtos como meio de sobrevivência. Sua maior ambição (que também permeia o espírito de Marina) era poder sair da cidade e tentar a vida fora, como muitos jovens faziam. Lau, namorado de Marina, é um jovem corajoso, crítico e moderno que trabalha num despachante, graças, também, ao domínio da língua inglesa e do conhecimento de informática, mas que vive na tensão de conseguir o “papel de recenseamento militar” (p.3), que o livraria do risco de ser recrutado para a guerra.  Toda história apresenta a vida desses jovens em meio à insegurança e medo de uma cidade que ainda encontra mergulhada na violência da guerra civil que assola o país.

Por outro lado temos o filme O herói, de Zezé Gamboa – filme vencedor do Grande Prêmio de Júri na competição mundial de Sundance nos EUA. Este filmee também traz, por meio de um enredo simples, a história do sargento Vitório da Silva (encenado pelo ator senegalês Makena Diop), um ex-combatente que lutou, desde seus 15 anos, na guerra e que depois de sofrer mutilação de uma das pernas por pisar uma mina em pleno campo de batalha se vê desmobilizado do exército angolano e é obrigado a recomeçar a vida. Esta personagem perambula pelas ruas de Luana a procura, primeiro de conseguir uma prótese para sua perna e depois para uma recolocação no mercado de trabalho e na própria sociedade que não o reconhece como herói, tal como ele se sentia exibindo orgulhoso no peito sobre a farda de soldado a medalha – símbolo de “reconhecimento” ou “pagamento” de seus árduos anos de combatente, ao todo foram 20 anos. Em paralelo a esta história, o filme traz a saga do menino Manu de doze anos (Milton “Santo” Coelho) que mora com sua vó Dona Flor (encenada pela atriz brasileira Neuza Borges) e que sonha com a volta do pai que partiu para a guerra ainda bastante jovem deixando-o recém-nascido, já que sua mãe o havia abandono. O filme narra também a história da prostituta Judite (Maria Ceiça, atriz brasileira)  que anseia por reaver seu filho desaparecido que, assim como Manu, também teria nessa altura doze anos de idade. Comparecem, ainda, no enredo duas personagens que também chamam atenção, uma professora com boas intenções e um antigo namorado (sobrinho rico de um político influente) que voltou do exterior, onde foi estudar.

Vimos, portanto, que as duas obras escolhidas, a novela de Manuel Rui e o filme de Zezé Gamboa, trazem como cenário o espaço da cidade de Luanda destroçada pela guerra civil. Ambas apontam para as mazelas e fraquezas sociais desse e nesse espaço urbano. Um retrato/imagem problemático de uma Luanda, em finais da guerra civil (a novela de Manuel Rui) e pós-guerra civil (o filme de Zezé Gamboa), devastada pelas consequências de anos de lutas, uma cidade que traz um retrato desconfortante do abandono social, da falta do papel do Estado em intervir em questões como o amparo, os conflitos, o desespero, a violência, enfim aos direitos humanos.

Então nos instiga indagar: O que estas representações que abordam não somente a cidade de Luanda, mas também seus eventos querem nos dizer? Que tipo de imagem mostrada nesta cidade de Luanda, que metonimicamente aponta para a nação Angola, querem representar? E mais: qual é o interesse da obra artística em resgatar fatos ainda desacomodados do passado, bem como denunciar eventos ainda perenes e urgentes da realidade social dessa cidade? E para pegarmos carona no dizer de Edward Said (2005), quando este traz algumas reflexões sobre a atitude dos intelectuais, perguntamos: O que nos dizem “certas verdades” que foram varridas para debaixo do tapete transpostas artisticamente nos enredos ficcionais, trazidos nas duas obras desses autores angolanos? Que Luanda é essa retratada pela escrita?

A cidade fotografada

Ao discorrer sobre a cidade da escrita em A presença de Luanda na literatura contemporânea em português, Tania Macêdo (2002) afirma que:

A sociedade industrial é urbana e a cidade é, pois, o seu cenário por excelência (...) e por seu papel de destaque no mundo de que hoje somos parte, a cidade se impôs como componente ativo da maneira de ser de nosso tempo: somos urbanos e nossa história passa necessariamente pela história das cidades do mundo ocidental (p. 67).

Ao ressaltar que as cidades fundadas e conquistadas pelo império colonial português não mantêm um perfil exclusivo, a autora traça “uma tipologia de alteração de status dessas cidades de acordo com o poder imperial e as relações de auto-consciência da colônia” (p.69-70). Desse modo, num primeiro momento a urbe, representando “o sonho de uma ordem”, adquire a feição de cidade portuguesa no além mar. Num segundo momento tem-se a chamada cidade colonizada – a partir dos fins do séc. XVIII, e num terceiro momento a cidade re-criada - que ao voltar-se para sua própria face e não mais a européia deixa emergir uma literatura nacional, a qual se fortalece na denúncia ao colonialismo, a partir do que Fanon denomina como a “cidade do colonizado” quando este observa a tensão que caracteriza a exclusão recíproca entre o espaço habitado pelos colonizados e pelos colonos (idem).

Francisco Mourão (1978), ao debruçar-se sobre a obra de Castro Soromenho, analisa as fases da Literatura Angolana relacionadas ao processo de colonização voltando a atenção à cidade de Luanda. Mourão pondera que em todas as fases dessa produção (período que vai das décadas de 30, 40 e 50 do século XX) a literatura tem “por meio ambiental a cidade de São Paulo de Luanda, mais comumente conhecida apenas por Luanda” (p.14). 

Nos fins dos anos 50 e inícios dos 60, Luanda continua a ocupar os espaço das páginas literárias na Literatura Angolana, sobretudo, como forma de engajamento ao projeto nacionalista ao mesmo tempo em que denuncia o colonialismo (MACÊDO: 2002, op. cit, p. 71). Luanda surge, então, em vários textos literários, dividida em bairros e consequentemente em classes sociais.

Tania Macêdo (2004), em outra obra intitulada por Uma cidade e sua escrita: a representação literária de Luanda, lança um olhar crítico e descortina uma outra face de Luanda:

Mas há uma outra realidade de Luanda: a que se revela a partir dos mercados livres que levam o nome de programas da televisão brasileira como Roque Santeiro e Os Trapalhões, ou ainda em suas ruas congestionadas e com pavimentação quase inexistente, com um número assustador de crianças de rua, ao lado de uma grande frota de automóveis de luxo, de casas gradeadas e guardadas por cães e empresas privadas de segurança, de bairros clandestinos que crescem assustadoramente do dia para a noite, da ruína dos edifícios históricos ou da destruição do patrimônio urbano. Luanda em que as falhas de energia elétrica e de água são constantes e na qual as doenças diarréicas, a malária e a AIDS são os males que dizimam a população mais pobre. (p. 9)

Assim, em muitas produções literárias após os anos de 1950 e que segue até a época contemporânea, Luanda ocupa o cenário privilegiado na ficção, alargando também para outros campos de representação artística como é o caso do cinema. Tania Macêdo (2012) observa também que a literatura angolana, desde a sua formação, aponta para “o papel de intervenção social (...) na medida em a cidade torna-se símbolo da nação” (p.202).

Nesse sentido nos parece pertinente trazer aqui o que Stuart Hall (2001) pondera quando ele afirma que a ideia de nação e de cultura é discurso:

Uma cultura nacional é um discurso (...). As culturas nacionais ao produzir sentidos sobre a “nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL,2001,51)

E é neste percurso reflexivo que estamos apontando para o discurso exposto nas duas obras de ficção, a novela de Manuel Rui e o filme de Zezé Gamboa, quando estas obras apontam para imagens que discutem a nação ao tomar metonimicamente a cidade de Luanda.

Narrativas/imagens necessárias da Nação pós-colonial

Em Um anel na areia atravessam imagens que esteticamente são recriadas à luz da degradação deixada por anos de exploração e da guerra em meio à exigência de um mundo global em que a modernização ou a falta desta atropela o humano e a história. Nessa ficção comparecem vários espaços e eventos que são focos de um olhar crítico e ácido sob a pena de Manuel Rui, como o espaço da escola, o espaço de moradia ou a falta dela, o desemprego, a desigualdade social, a degradação da rua em que, mesmo rapidamente, são mostradas crianças mutiladas a pedir esmolas, dentre outros apontamentos que essa cidade/escrita de Luanda nos permite revisitar.

O enredo começa exatamente por uma lembrança do início do namoro de Lau e Marina no espaço escolar. Essa lembrança traz à tona uma escola que sofria as sérias consequências da falta de infraestrutura e respeito, mas que ainda era um espaço onde a esperança visitava, pois foi neste mesmo espaço que o encontro dos dois jovens, símbolo do novo e da ousadia, começa a pintar com outras cores o aspecto sombrio do medo. A escola – lugar de violência, injustiça e corrupção – desenhada pelo olhar da personagem Gui acaba por funcionar quase como um correlato ou mesmo como uma extensão dessa “outra realidade de Luanda”, de que nos falou Tania Macêdo, em momento atrás:

Sabes que tem escolas que quando falta a luz vem logo a gatunagem. Ladrões? Sim, costumam assaltar as salas e rapar o material todo e fogem e ainda outro dia quando a luz acendeu um bandido ainda não se tinha despachado de pôr numa miúda parece que até desconseguiu na maneira que ela se apertou nas pernas mesmo com a boca tapada pelo grego depois a fugir com o biquíni na mão todo rasgado (...) outro para lhe safar na corrida fez um tiraço para a lâmpada tudo escuro outra vez (...) o pessoal todo a fugir a professora com a cabeça escondida debaixo da secretária (p.2-3)

A escola ao invés de representar um estabelecimento de convivência e harmonia entre pessoas de todos os credos e raças, um “sistema ou doutrina de pessoa notável em qualquer área do saber” (HOLANDA: 1993, p. 219), aqui representa um espaço antes de carência do que de suplência. A escola, como símbolo civilizatório, é subvertida, e pela crueldade do sistema colonial desampara suas metas humanizantes já que o saqueamento do espaço escolar, como lemos no trecho citado, numa outra perspectiva que vai além da violência, simboliza o saqueamento de um conteúdo cultural, de uma civilização – africana, angolana – e o despojamento de seus bens mais preciosos.

A escola é um espaço que se ‘democratizou’ com o desenvolvimento do capitalismo, da sociedade industrial e que passou a requerer trabalhadores com melhores qualificações. Esse acento urbano da escola a coloca com uma das principais instituições na construção de uma ideia de nação, pois é, sobretudo, por meio da instituição escolar que os valores e ideologias são inculcados nos jovens.

A cidade de Luanda retratada pela escrita de Manuel Rui, onde magistralmente sua pena vai desenhando ruas, becos, cenários  e pessoas, também traz a denúncia da situação vivida por esses habitantes e o cenário de degradação não só espacial, sobretudo humana da vida social:

Marina no sábado Lau a deixar-lhe conduzir a motorizada e quando paravam, os miúdos zungueiros e mutilados de esmola eram logo-logo de oferta para guardarem na moto (p. 17)

Há uma mutilação não somente no corpo da cidade fraturada e no corpo das vitimas das minas, como lemos no trecho acima, mas há uma amputação mais profunda no corpo social, uma fratura na crença que permeia os jovens Lau, Marina e Gui, perpassada pelo sentimento do medo e da incerteza:

Lau, já pensei que podíamos ir para a África do Sul ou mesmo para Namíbia, começo a ter medo. E eu tenho medo é de sair daqui. Porquê? Não sei, parece que às vezes sinto as pernas cortadas e quando penso uma coisa dá-me a impressão que toda a gente está a ouvir e a ralhar comigo (p.7)

Essa fratura não permeia somente os “caluandas” (pessoas nascidas em Luanda) de que trata a narrativa de Manuel Rui, mas de outros que chegam a procura de um espaço nessa cidade, na busca de uma inserção social e de um emprego:

(...) uns que vieram da tropa só na diamba e sem emprego ou sem perna, outros que vieram de Cuba com a mania que são socialistas e doutores que não têm emprego (p. 15)

Também a questão da falta ou da qualidade de moradia não atinge somente esses “outros” que nessa cidade chegam:

(...) sabes que agora ninguém pode ter um apartamento novo porque não se fazem e as únicas casas novas que se fazem são essas tipo muceque, estás a ver na Praia do Bispo? É tudo assim até na ilha está tudo atafulhado de casas só de cimento e zinco, buracos que são janelas e portas vê só aqueles fornos e ainda casa de banho nada, não há casas (...) Marina quer dizer há casas na Luanda Sul e isso que chamam condomínios mas é tudo para eles (p.15)

Em relação a descrição de moradia que este trecho nos oferece poderíamos nos reportar à classificação de Fanon sobre a zona habitada da “cidade do colonizado”:

(...) a cidade do colono, uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada. (...) a cidade do colonizado (...), um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados (...) Um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado, uma cidade faminta (...) uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada (Cf. MACÊDO, 2002, op. cit., p. 70)

A colonização, sem dúvida, é o motivo principal dessa condição, mas com certeza ela está no seio de um projeto maior de expansão capitalista e de centralização do poder, sobretudo a que assistimos após a segunda guerra mundial. As conseqüências disso, de modo geral, continuam hoje a acontecer não somente em Angola, mas em São Paulo, Rio de Janeiro, no Quênia, para citarmos apenas alguns lugares vitimados por tal projeto. Ou seja, o que esses sistemas autoritários são capazes de gerar é, sobretudo, pobreza, e uma sociedade empobrecida não é aquela que foi despojada somente de seus bens materiais, mas também de suas tradições e de suas possibilidades de escolhas.

A cesura feita no corpo social dos países colonizados em África é provocada por uma tensão, uma vez que essa cultura sufocada e/ou amputada, mas não totalmente dominada pelo sistema imperialista, não apaga o passado e nem consegue restaurá-lo. Dessa cisão Manuel Rui trata com muita clareza em seu ensaio “Eu e o outro - o Invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto”, onde aborda a complexa relação entre esses dois tempos e entre esses dois universos ao discutir a questão da oralidade e da escrita (uma das questões flagrantes abordadas pelos escritores angolanos). Desse modo, Rita Chaves (2005) ao comentar a questão abordada nesse texto de Manuel Rui, afirma que:

a consciência da ruptura aberta pelo colonialismo é clara e ilumina a inevitabilidade da situação que mesmo a independência não pôde solucionar. Diante do panorama que se abre, não há regresso, e a sugestão do poeta é só uma: dinamizar o legado, apropriar-se daquilo que outrora foi instrumento de dominação e foi, seguramente, fonte de angústia. A recuperação integral do passado é inevitável. Seu esquecimento total se coloca como uma mutilação a deformar a identidade que se pretende como forma de defesa e de integração no mundo. A harmonia – tal como era, ou deveria ser – foi atingida e não podendo ser recuperada, há de ser reinventada com aquilo que o presente oferece. (...) Destituído de tanta coisa, o africano recupera-se na desalienação, ponto de partida para afirmação num mundo que já é outro, no qual ele precisa conquistar um lugar. (p. 51)

E essa desalienação passa pela escrita dos autores que apontam as desigualdades e injustiças vividas na cidade e por seus moradores. Na ânsia da conquista do lugar outro é que surge a necessidade de escrever a nação. Mas qual nação? Aquela nação desenhada ou recuperada do passado num processo de reescrita no presente, uma vez que um país deve “criar a própria imagem coletiva, num processo de existir ao outro”, segundo opinião do cineasta Ruy Guerra.

E é nessa esteira, de criação da própria imagem coletiva” da nação que “lemos” o enredo do filme O herói, de Zezé Gamboa, que por meio de uma câmera cinematográfica focaliza Luanda pós-guerra (mesmo que muito recente), uma cidade “acocorada”, uma cidade “ajoelhada, uma cidade “acuada”, para reportamos novamente a Fanon.

O filme, como já apontamos, traz a história de um ex-sargento militar mutilado na guerra que luta no espaço da cidade para se inserir novamente ao meio social. O começo do filme é bastante emblemático, pois a cena inicial parte de uma câmera com o foco bem aberto e mostra um panorama amplo da cidade de Luanda a começar pelas casinhas de telhados de zinco até chegar nas grandes avenidas com prédios  e movimentos, para em seguida fechar o foco e localizar um pequeno grupo de crianças jogando basquete para, novamente essa lente acompanhar a saída de uma das personagens central (Manu) e mostrar um outro panorama amplo da cidade de Luanda onde focaliza do alto fábricas e prédios pomposos e, no momento seguinte fecha-se novamente na localização da entrada do ex-sargento Vitório em um hospital à procura, por repetidas vezes, da prometida prótese para sua perna. Esse movimento de abrir e fechar, ampliar e afunilar a imagem (do geral para o particular) nos parece ter um propósito de apontar o foco da lente para uma pequena, mas central, parcela do espaço filmado, sugerindo uma discussão maior, o todo. Em outras palavras, o filme traz a imagem da cidade de Luanda para discutir a própria nação angolana.

Livia Apa (2012), em um texto bastante orientador, pondera que, assim como aconteceu com o romance quando este ocupou o papel de testemunha das injustiças do sistema colonial, o cinema africano se posiciona hoje na contra-narrativa de um sistema global ao ser capaz de voltar seu olhar sobre a realidade, “cuja narração coincide exatamente na multiplicidade das linguagens de que a própria narrativa se compõe” (p.268). Assim é que na atualidade “o poder que o cinema tem na reflexão sobre as dinâmicas que atravessam o continente, prende-se com uma crescente necessidade de auto-representação dos seus processos de mudanças”, segundo opinião de Ana Mafalda Leite (2012, p. 108).

Uma das questões, portanto, que nos chama atenção é exatamente a escolha da focalização de uma pequena parte para anunciar o todo. Isso não acontece somente com os espaços, mas também com as pessoas ali retratadas e o que elas simbolizam, na representação de três gerações, sobretudo: a geração mais velha retratada pela avó do menino, a geração do ainda jovem ex-sargento (e aqui também entram a prostituta, a professora e seu antigo namorado), cuja adolescência e parte de sua juventude atravessam todo o período da guerra civil e paralela a essas duas gerações vem a terceira, a das crianças, representada por Manu – o menino órfão – cuja geração é fruto das consequências trazidas pelos eventos em que enfrentaram e viveram as duas gerações anteriores, portanto, a que viveu ainda na época da ocupação – a da avó - e a geração que carregou consigo o sonho da utopia de construção de um espaço melhor, a do Vitório, que lutou na guerra. Há, portanto, uma revisitação de um passado sombrio que acaba por ser “reconfigurada, a partir do presente”, para emprestarmos as observações de Ana Mafalda Leite (2012, p.109) em um texto em que ela aborda a História como estratégia na ficção para repensar a nação.

Enquanto representações institucionais aparecem três importantes na constituição do social e do direito humano: a escola que, assim como vimos na novela de Manuel Rui, esta também se apresenta “mutilada” e deixada pelo poder público. Aqui, no filme, a escola mostrada não mais comparece depredada na sua estrutura física como vimos em Um anel na areia, mas comparece esfacelada pelo descaso e abandono social, inclusive em suspensão de suas atividades educacionais pela greve dos professores. Essa situação, a do descaso público, inclusive traz um significativo representante da esfera pública, a do ministro, um político hipócrita e omisso que acaba por tirar proveito da situação do abandono social. Espaço não muito diverso da escola é o do hospital, este também sem recurso material para dar o amparo necessário aos que precisam, apesar de comparecer também a vontade de dois profissionais, nesses espaços aludidos, a professora Joana e o médico, que atendeu Vitório, desconfortados com a situação. Uma outra e significativa instituição retratada pela lente do filme, e o que não poderia faltar nesse cenário, é a família - esfacelada pelo desencontro e consequências materiais e sociais causadas por anos de guerra e de transformação social.

Todos os grupos familiares, no filme, encontram-se em estado de falimento: ironicamente o “herói” mora na rua, sem um lar, sem trabalho e sem família; o menino mora com a avó que trabalha dia e noite para o sustento da casa e sonha com a volta do pai que não conheceu; a prostituta mora em um barraco sem ninguém e é explorada pelo cafetão. No entanto, o filme mostra o contraste da moradia desses grupos familiares quando traz à cena a casa da professora, deixada pelo pai que está em Portugal, uma casa grande, com água encanada com vista para o mar e o menino Manu observa essa diferença.

Em meio aos cenários de abandono e carência que a obra de Zezé Gamboa mostra, há um elemento bastante interessante que acaba por cruzar o espaço ficcional, mesmo que bastante realista da cidade de Luanda, pois na ânsia desta obra mostrar imagens de uma cidade saqueada, acaba também por extrapolar o fictício quando traz o cruzamento dessa ficção com a realidade, ao “pegar carona” no programa de televisão chamado Ponto de Reencontro, existente em Luanda naquele momento, cujo objetivo do programa era contribuir na busca dos desaparecidos e oportunizar o (re)encontro destes com a família, quando as pessoas anunciavam com fotos, nomes de seus desaparecidos e davam depoimentos sobre o acontecido. Um elemento bastante positivo utilizado no campo ficcional que não “se trata de abordar o documental como ficção, mas da necessidade de estratégias no campo da literatura para reinventar o passado”, segundo Ana Mafalda Leite (2012, p.109), pois “a literatura pode ser campo para a invenção de diversas formas de narratividade” (Idem), como bem reconheceu o sociólogo americano Howard Becker, citado em momento anterior. Assim, o grande cineasta italiano Pasolini já afirmava que “o cinema exprime a realidade através da própria realidade” e isso nos parece bem explícito nesse filme, não somente por este episódio, mas também pelo constante apelo ao passado, pela reconstrução, por meio da memória, de eventos históricos passados, mas ainda recentes na vida das personagens.

Há um balanço bastante negativo desses eventos pretéritos que ainda gritam no presente, como bem mostra o discurso do ex-sargento Vitório ao contar sua história na emissora de rádio:

(...) rouba-se tudo em Luanda (...) a guerra não resolve nada, destruiu nosso país e os sonhos da minha geração (...), pisei uma mina mesmo no final da guerra, mas posso garantir-vos que há milhares de minas ainda por explodir. Por isso caminhem de olhos bem abertos.

Ácida e negativa soam essas previsões de Vitório ao lançar o olhar para um futuro próximo, mas também coloca uma nota bastante irônica quando narra o momento em que pisa na mina, ao afirmar ter acontecido “mesmo no final da guerra”. Há um desabafo crítico na voz da personagem que aponta “o fracasso dos ideais revolucionários, em que a vida quotidiana do corpo nacional parece naufragar”, segundo opinião de Livia Apa (Idem, p.269).

O contraste irônico entre uma Luanda calma, ampla e progressista mostrada na imagem panorâmica que inicia o filme, igualmente se dá na focalização das construções de prédios em relação as casas míseras em que as personagens vivem, também na estrutura pomposa dos escritórios e carros luxuosos dos políticos em relação as vidas mostradas mais de perto pela lente cinematográfica nesse cenário. Irônico (macunaimicamente falando) também é o título do filme “O Herói”, bem como o nome do protagonista “Vitório”. Herói de que guerra? De qual luta? Vitória de quem? Ironias que o presente reclama uma revisitação do passado a fim de processar uma reconstrução e ou a reelaboração desse passado desacomodado no presente para, talvez, dar uma ancoragem no futuro e na própria reconstrução da imagem de nação.  

Assim, o filme O Herói, de Zezé Gamboa bem como a novela Um anel na areia, de Manuel Rui mostram uma necessidade gritante de narrar a realidade de Luanda pós-guerra, trazendo imagens realistas e incômodas da nação pós-colonial. Ambas as narrativas se ancoram em uma memória fraturada ainda recente de um passado que teve seus eventos ancorados numa empreita de ocupação colonial e em seguida de uma longa guerra contribuidora da incerteza de futuros, apesar desta ter servido também como ato fulcral da fundação da nação angolana (APA, idem, p.270).

Nessas duas narrativas que lemos, a memória ocupa um papel bastante ambíguo e deslizante, no sentido de tecer e destecer o “vivido” num constante revisitar de “passados presentes”, afim de que com esse gesto, o sujeito possa dar significados outros das experiências pretéritas. Uma memória, muitas vezes, em constante desconstrução de dizeres acostumados, para reportarmos-nos ao incômodo do poeta Manoel de Barros: Uma memória construtiva de novos dizeres, de novos olhares revisitativos e questionadores de um passado que ainda pulsa efeitos no presente da composição ficcional.

Características comum nas narrativas não só pós-coloniais dos países africanos, mas de um modo geral comparece a partir da década de 80 do século XX um grande interesse por vários estudiosos e escritores da literatura pelos dias passados que segundo Andreas Huyssen (2000), “seria a transição dos “futuros presentes” em direção a certos “passados presentes” (pag.54), ato que “expressa a necessidade de uma ancoragem espacial e temporal em um mundo moldado por redes cada vez mais densas de espaço e tempos comprimidos” (idem). Assim o olhar para o passado viria para “compensar a perda da estabilidade que o indivíduo tem com seu presente”(Idem), ou como pensa Michel Pollak (1992, p. 210 e 211) para dar “palavra àqueles que jamais a tiveram”, uma vez que é a palavra que ajudará na reconstrução do corpo fraturado da nação”, segundo  opinião de Inocência Mata (2006, p.138).

Referências

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Notas

[1] Este artigo, fruto de uma apresentação oral em 2015, no Congresso da Associação dos Lusitanistas, na cidade de Aachen/Alemanha, foi publicado no livro Literaturas e Outras Artes: Construção da Memória em Angola e Moçambique, pela Editora Peter Lang (na cidade de Frankfurt), 2017, págs: 87-100, sob coordenação de Ineke PhafRheinberger; Ana Sobral; Tania Macêdo; Selma Pantoja.

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* Marinei Almeida é Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa; Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT); e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem – Área Literatura,  da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

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