(Re)Ler Luuanda em tempos de clássicos[1]

Terezinha Taborda Moreira*

 

RESUMO

O ARTIGO (RE)LÊ A OBRA LUUANDA, DE JOSÉ LUANDINO VIEIRA, DESTACANDO ALGUMAS CARACTERÍSTICAS QUE A TORNAM SINGULAR E QUE SE FAZEM PRESENTES EM TODAS AS ESTÓRIAS QUE COMPÕEM A COLETÂNEA, COMO A DICÇÃO DIALÉTICA E POLIFÔNICA DO NARRADOR E A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA COMO UM RODEIO IRÔNICO, UM ARABESCO POR CUJAS LINHAS ENCRUZILHADAS O NARRADOR LANÇA, PARA O LEITOR, UMA PISCADA DE OLHO POR MEIO DA QUAL O CONVIDA A PERCEBER AS INCONGRUÊNCIAS DA REALIDADE ANGOLANA.

PALAVRAS-CHAVE: LUUANDA. LUANDINO VIEIRA. DICÇÃO DIALÉTICA E POLIFÓNICA. IRONIA.

ABSTRACT

THIS ARTICLE (RE)READS LUUANDA, BY JOSÉ LUANDINO VIEIRA, HIGHLIGHTING SOME FEATURES THAT MAKE IT UNIQUE AND WHICH ARE PRESENT IN ALL THE STORIES THAT MAKE UP THE COLLECTION. SOME OF THESE CHARACTERISTICS ARE THE NARRATOR’S DIALECTIC AND POLYPHONIC DICTION AS WELL AS THE NARRATIVE CONSTRUCTION AS AN IRONIC ENCIRCLING, AN ARABESQUE THROUGH WHICH IN ITS INTERTWINED LINES THE NARRATOR SUBTLY INVITES THE READER TO PERCEIVE THE INCONSISTENCIES OF THE ANGOLAN REALITY.

KEYWORDS: LUUANDA. LUANDINO VIEIRA. DIALECTIC AND POLYPHONIC DICTION. IRONY.

 

Em novembro2 de 2013, a Mediateca de Luanda lançou a primeira coleção dos “11 Clássicos da Literatura Angolana”. A imprensa local festejou o lançamento da coleção informando que, além de saudar o dia 11 de Novembro, em que se comemora a Independência Nacional, ele fazia parte do programa Ler Angola, destinado ao fomento do livro e da leitura. Na ocasião, o jornalista e escritor Divaldo Martins, representante da entidade promotora do Programa de Fomento do Livro e da Leitura, informava ser o Ler Angola um projeto do Executivo que “visa valorizar a marca Angola e apoiar sectores identitários da cultura nacional como o teatro, o cinema, a pintura e naturalmente também a literatura”. Acrescentava o jornalista que o programa também incentiva o surgimento de novos valores literários, com a criação de uma bolsa de apoio à escrita. Compunham a primeira edição dos 11 Clássicos da Literatura Angolana os seguintes títulos: Espontaneidades da minha alma, de José da Silva Maia Ferreira; Nga Mutúri, de Alfredo Troni; Delírios, de Joaquim Dias Cordeiro da Mata; O segredo da morta, de António de Assis Júnior; Luuanda, de José Luandino Viera; Sagrada esperança, de Agostinho Neto; Mestre Tamoda e outros contos, de Uanhega Xitu; Mayombe, de Pepetela; Quem me dera ser onda, de Manuel Rui; Sobreviver em Tarrafal de Santiago, de António Jacinto; Trajectória obliterada, de João Maiomona.3

Não é objetivo deste artigo discutir os critérios que levaram à seleção dos títulos que compõem a coleção. Não nos resta dúvida de que eles existem e justificam a escolha de cada título. O que chama nossa atenção é a eleição da obra Luuanda, de José Luandino Vieira, como um clássico da literatura angolana no ano da comemoração de seu quinquagésimo aniversário de lançamento. Essa particularidade no lançamento da coleção nos motiva a reler Luuanda a partir de uma observação feita por Ítalo Calvino em meio às propostas de definição que apresenta para clássico. Diz o escritor, a propósito da impossibilidade de uma educação clássica na atualidade, quando os velhos títulos foram dizimados e novos títulos se multiplicam e proliferam em todas as literaturas e culturas modernas: “Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos”. (CALVINO, 1993, p. 16). É pensando em Luuanda como um clássico de nossa própria biblioteca ideal, portanto, que nos colocamos nesse momento em que a releitura da obra nos revela algo de sua escrita que nos leva pensá-la na condição de “livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. (CALVINO, 1993, p. 11).  

Luuanda compõe-se de três “estórias”: “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”, “Estória do ladrão e do papagaio” e “Estória da galinha e do ovo”. Precede-a uma epígrafe extraída de um conto popular e escrita em quimbundo: “Mu’xi ietu iá Luuanda mubita ima ikuata sonii...”. Sua tradução aparece ao pé da página: “Na nossa terra de Luanda passam-se coisas vergonhosas...”. (VIEIRA, 1982, p. 3).

Sabemos que a epígrafe inscreve, no início de um texto, um pequeno fragmento que lhe serve de tema, ou mote, podendo resumir o pensamento ou o conjunto ideológico que está posto no enunciado. Comumente ela é classificada como um tipo de intertexto. Como tal, pressupõe a existência de um diálogo entre o texto que se apresenta e aquele de onde ela é extraída. No caso em questão, a intertextualidade traz, para a escrita luandina, a textualidade oral angolana expressa em um conto popular, com o qual ela dialoga.

Em Luuanda, a epígrafe rompe a fronteira entre o contar oral, popular, e o contar da literatura escrita. Ela sugere que a escrita, dialogicamente e polifonicamente, vai plasmar, em narrativa ficcional, a realidade angolana emanada da voz popular que incorpora e, com essa realidade, vai trazer para o papel os dois pilares da tradição oral que a fundam: a experiência e a memória.

Experiência e memória integram a escrita luandina pela dicção do narrador das estórias presentes em Luuanda. Dialética e polifônica, a dicção do narrador, mais do que contar a realidade dos musseques, traz para as estórias as antinomias, as oposições que se fazem presentes nesses espaços angolanos. Nela o colonial e o anticolonial, a modernidade da cultura ocidental e a tradição da cultura autóctone, as formas da escrita literária e as da textualidade oral são trazidas para a narrativa de maneira a realçar sua característica de resultado de um exercício estético de encenação das coisas vergonhosas que se passam em Angola.

A epígrafe de Luuanda abre os relatos das estórias contadas por meio de uma voz popular que antecipa aquilo que vamos encontrar na leitura. Essa voz popular antecipa também a voz do narrador, define sua posição de porta voz do povo e desvela a condição da narrativa ficcional de reprodução de estórias já contadas. Na voz do narrador, o relato das coisas vergonhosas que o leitor vai encontrar nas estórias será visto como recriação de enredos, tradução escrita de sentidos produzidos no âmbito de um contar que remete à voz do povo. A narrativa vai contar o contar. E o narrador assumirá a feição de contador de histórias, especialista na arte de representar, de encenar, de fingir. Em Luuanda predomina um narrador que se institui na escrita, e pela escrita, o qual admite que sua voz se cruza com outras vozes com as quais ele dialoga, formando elos de uma cadeia ininterrupta pela qual se tecem, em ficção narrativa, as coisas vergonhosas que compõem a realidade angolana dos musseques.   

As estórias descrevem, com minúcia, personagens que compõem um cenário de exclusão social. Nelas a dicção do narrador assume a condição de enunciação posicionada em um campo social conflituoso, no qual a proposição da alteridade angolana como experiência sensível esbarra nos recursos expressivos que a linguagem coloca à sua disposição para retratar as personagens dos musseques, como também a realidade vivida nesse espaço social. Resta ao narrador adotar uma estratégia narrativa que lhe permita dizer os musseques, o que ele faz por meio de um recurso que também distingue sua narrativa: privilegiar um uso poético da linguagem. No privilégio concedido ao poético, o narrador elabora a linguagem a partir de um arranjo que reúne ritmos e sons da língua portuguesa e do quimbundo, figuras de linguagem, inovações de pontuação e modulações de voz, dentre outros, e os dispõe na escrita com o objetivo de provocar, no leitor, uma experimentação estética dos musseques angolanos e das vivências de seus personagens.

É o que se pode ver, por exemplo, na abertura da estória “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”, em que deparamos a chuva que cai sobre o musseque assolado pela seca:

Tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todos os lados do musseque, os pequenos filhos do capim de novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas zunindo no meio de ruas e becos, de cubatas arrumadas à toa. Assim, quando vavó adiantou sentir esses calores muito quentes e os ventos a não querer mais soprar como antigamente, os vizinhos ouviram-lhe resmungar talvez nem dois dias iam passar sem a chuva sair. Ora a manhã desse dia nasceu com as nuvens brancas – mangonheiras no princípio; negras e malucas depois – a trepar em cima do musseque. E toda a gente deu razão em vavó Xíxi: ela tinha avisado, antes de sair embora na Baixa, a água ia vir mesmo. (VIEIRA, 1982, p. 5).

Na descrição do musseque, “os pequenos filhos do capim de novembro” aparecem “vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas” que atravessam o musseque “zunindo” pelo chão vermelho de “ruas e becos” sem calçamento. A manhã “nasceu” com nuvens brancas “mangonheiras no princípio; negras e malucas depois”. Tocadas pelo vento, essas nuvens “trepam em cima do musseque", anunciando a chuva. Essa deságua sobre o musseque em cantiga d’água que se precipita sobre as páginas do livro em gotas de poesia que se multiplicam no texto, por efeito da condensação da imagem do espaço angolano na dicção oralizada do narrador. Poeticamente, a linguagem prepara o leitor para o impacto da visão do que virá depois da chuva:

Era meio-dia já quase quando começou ficar mais manso, mesmo com o céu arreganhador e feito, todo preto de nuvens. O musseque, nessa hora, parecia era uma sanzala no meio da lagoa, as ruas de chuva, as cubatas invadidas por essa água vermelha e suja correndo caminho do alcatrão que leva na Baixa ou ficando, teimosa, em cacimbas de nascer mosquitos e barulhos de rãs. Tinha mesmo cubatas caídas e as pessoas, para escapar morrer, estavam na rua com as imbambas que salvaram. Só que os capins, aqueles que conseguiam espreitar no meio das lagoas, mostravam já as cabeças das folhas lavadas e brilhavam uma cor mais bonita para o céu ainda sem azul nem sol. (VIEIRA, 1982, p. 7).

Se na abertura da estória o musseque se apresenta assolado pela seca, agora são as águas selvagens da chuva que decompõem a paisagem numa lama que se alastra “teimosa” e se propaga “correndo caminho do alcatrão que leva na Baixa”. Musseque e personagens emergem da enxurrada escapando da morte para encontrar, novamente, a força ativa da natureza restabelecendo a ordem das coisas: “Só que os capins, aqueles que conseguiam espreitar no meio das lagoas, mostravam já as cabeças das folhas lavadas e brilhavam uma cor mais bonita para o céu ainda sem azul nem sol.”

Desolação, ruína, destruição, fome, muita fome. É este o cenário no qual vamos encontrar, pela primeira vez, vavó Xíxi Hengele, ocupada em varrer para o quintal a água que queria “fazer lama” na cubata. Cansada de empurrar a água, a velha Xíxi “viu bem o melhor era ficar quieta, sentou no caixote e, devagar, empurrou as massuícas no sítio mais seco para fazer o fogo, adiantar cozinhar almoço”. (VIEIRA, 1982, p. 7). Recolhida no canto, a velha sopra o fogo em uma lata de água que ferve cozinhando uma fome já antiga, dela e do neto Zeca Santos, que ela tempera com o sorriso de amizade e tristeza que a esperteza e a técnica dos anos que tinha vivido lhe deram, tornando-a uma “velha sempre satisfeita, a vida nunca lhe atrapalhava, descobria piada todo o dia, todos os casos e confusões”.  (VIEIRA, 1982, p. 11).

Sentando-se no chão molhado da porta da cubata Vavó Xíxi devaneia, num entressonho que alimenta seu presente com seu passado de Dona Cecília de Bastos Ferreira, casada com Bastos Ferreira, mulato de antiga família de condenados, mãe de João Ferreira e moradora “nos Coqueiros em casa de pequeno sobrado, com discípulas de costura e comidas, com negócio de quitanda de panos” (VIEIRA, 1982, p. 14). No passado e no presente de vavó Xíxi a época colonial se cruza com a luta pela independência angolana. Por isso, a lembrança dos tempos do antigamente traz-lhe uma época em que, como esposa de assimilado, “nada que faltava lá em casa, comida era montes, roupa era montes, dinheiro nem se fala...” (VIEIRA, 1982, p. 16). O tempo de agora a encontra viúva e mãe de terrorista, envolvida com a educação do neto Zeca Santos, em cuja cara de criança a fome já colocara “riscos teimosos”. (VIEIRA, 1982, p. 38). O corpo, velho e curvado, “chupado da vida e dos cacimbos”, remexe com as mãos secas e cheias de nós “os caixotes de lixo dos bairros da Baixa” (VIEIRA, 1982, p. 13), enquanto brincam na cabeça os “farrapos das coisas antigas”. (VIEIRA, 1982, p. 16). Talvez por isso a velha vavó Xíxi Hengele possa ainda sorrir, em meio a uma piada e outra, com um humor que lhe permite falar “de maneira que uns riem, outros não estão perceber – resmunga num estreito raio de sol fugido das nuvens para lhe bater na cara velha e magra”. (VIEIRA, 1982, p. 16). Humor por meio do qual ela reencontra sua coragem antiga, sua alegria de sempre, mesmo com o bicho da fome a roer-lhe a barriga.

O humor da personagem vavó Xíxi permite-nos entrever como, muitas vezes, na escrita luandina, o uso poético da linguagem vai resvalar no riso. Nesse caso, o riso se regerá pela poesia e a dicção do narrador vai registrar, pelo risível, sua percepção da incongruência que reside nas coisas vergonhosas que se passam nos musseques angolanos. Afinal, como nos ensina Lélia Parreira Duarte, “explica-se o riso pela sensação de superioridade do que ri, diante do risível, mas também pelo fato de que, não sendo imortal, o homem sabe que não o é.” (DUARTE, 2006, p. 9). Por isso, completa Duarte, “em geral visto como sinal de alegria, o riso pode revelar o sofrimento em toda a sua crueza”. (DUARTE, 2006, p. 51).   

Defesa do homem consciente das limitações da vida e da fragilidade do corpo, a explosão do riso suscita, na perspectiva de Bataille, que colho pelos estudos de Lélia Parreira Duarte, a experiência do nada, do impossível, da morte, indispensável para que o pensamento se sobreponha a si mesmo e o homem possa aceitar o desconhecido. O riso traz, assim, a possibilidade de ultrapassar o mundo e as limitações do ser, precário, marcado pela falta e pela impossibilidade de atingir o total conhecimento. Duarte esclarece que “pelo riso o ser pode sair da verdade da finitude, pois o nada a que ele dá acesso liberta de racionalismos e condicionamentos ratificados pela organização social”. (DUARTE, 2006, p. 53).

É o que se observa, por exemplo, na “Estória do ladrão e do papagaio”. O caso envolvendo o ladrão e o papagaio liga três amigos, presos em uma delegacia de polícia pelo roubo de sete patos, e o musseque Sambizanga, ou melhor, o “sítio da confusão do Sambizanga com o Lixeira. As pessoas que estão morar lá dizem é o Sambizanga; a polícia que anda patrulhar lá, quer já é Lixeira mesmo”. (VIEIRA, 1982, p. 39). 

Já na abertura da estória encontramos a marca da ironia pela qual a dicção do narrador tece toda a trama narrativa: a ambiguidade. Discutindo o conceito de ironia, Duarte esclarece-nos sobre sua definição mais comum de figura de retórica em que se diz o contrário do que se diz, o que, para a estudiosa, implica o reconhecimento da potencialidade de mentira implícita na linguagem. Duarte chama a atenção para o fato de a ironia apresentar formas e funções diversificadas. Por isso, destaca pelo menos dois graus de evidência de ironia: um primeiro, em que o dito irônico quer ser percebido como tal, e um segundo, caso da ironia humoresque, “em que o objetivo é manter a ambiguidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo”. (DUARTE, 2006, p. 18).

De fato, é de maneira ambígua que o narrador apresenta o espaço onde se passa a estória quando se refere a ele como o “sítio da confusão do Sambizanga com o Lixeira”. A duplicidade de sentidos inscrita na dicção do narrador não é gratuita. Ela marca duas diferentes percepções sobre o espaço: a das pessoas que residem no musseque e a da polícia que ronda o local. Para “as pessoas que estão morar lá” o musseque é o Sambizanga, mas para a polícia que “anda patrulhar lá”, o musseque é o Lixeira. Entre a visão dos moradores sobre o espaço e a percepção que dele tem a polícia, o narrador demonstra, em sua dicção mesma, a impossibilidade de estabelecer um sentido claro e definitivo para o musseque.

Essa ambiguidade também caracteriza as coisas vergonhosas que se passam na realidade angolana, das quais a estória do ladrão e do papagaio vai tratar, da mesma maneira que a de “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”. E de maneira crítica e reflexiva, já que, conforme Duarte, por ser uma estrutura comunicativa, a ironia somente existe se for proposta e vista como tal, o que significa dizer que

não há ironia sem ironista, e este será alguém que percebe dualidades ou múltiplas possibilidades de sentido e as explora em enunciados irônicos, cujo propósito somente se completa no efeito correspondente, isto é, numa recepção que perceba a duplicidade de sentido e a inversão ou a diferença existente entre a mensagem enviada e a pretendida. (DUARTE, 2006, p. 19).

Pelo exposto, deduzimos ser o narrador da “Estória do ladrão e do papagaio” – e de Luuanda – um sujeito ficcional irônico, que, com sua dicção dialética e polifônica, busca um leitor que não seja passivo, mas atento e participante, capaz de perceber que a linguagem não tem significados fixos e que o texto pode apresentar armadilhas e jogos de sentidos dos quais ele deverá participar.

Observamos isso na utilização dos vocábulos Sambizanga e Lixeira, que instala na narrativa uma ambiguidade que ultrapassa a visão que dois segmentos culturais distintos, marcadamente colonizadores e colonizados, portugueses e angolanos, têm um do outro. Ao destacar a relação entre as palavras Sambizanga e Lixeira como uma confusão na nomeação do musseque, o narrador, ironicamente, traz para a narrativa uma reflexão sobre a relação entre escrita e poder. Essa relação é reiterada numa outra confusão apresentada pelo narrador, relativa à personagem Zuzé, o cipaio auxiliar de polícia que cuida dos presos e associa o aprendizado da língua portuguesa com o exercício do poder, conforme podemos observar na descrição que dele apresenta outra personagem, Xico Futa, o qual, por sua sagacidade, se mostra especialista em driblar o desejo de mando do assimilado:

Era assim o auxiliar Zuzé, como lhe foi cantando mano Futa, explicando todas as fraquezas, ensinando, para Dosreis saber, como é podia lhe cassumbular um pão mais, na hora do mata-bicho, só precisava falar bem mesmo, conversa se pessoa igual, quando Zuzé entrava, de manhã, para cumprimentar com a voz grossa dele:
- Bom-dia, meus senhores!
Nem uazekele kié-uazeka kiambote, nem nada, era só assim a outra maneira civilizada como ele dizia, mas também depois ficava na boa conversa de patrícios e, então, aí o quimbundo já podia se assentar no meio de todas as palavras, ele até queria, porque para falar bem-bem português não podia, o exame da terceira é que estava lhe tirar agora e por isso não aceitava falar um português de toda a gente, só queria falar o mais superior. (VIEIRA, 1982, p. 44).

A apresentação do cipaio Zuzé ilustra a relação entre a língua portuguesa e o quimbundo no espaço social angolano da época colonial. A primazia da língua portuguesa, canônica, sobre a oralidade do quimbundo é assinalada na maneira como o cipaio cumprimenta os presos pela manhã: “Bom-dia, meus senhores!”. A função pública e institucional do cipaio assimilado ganha concretude no uso canônico da língua portuguesa. Falar bem, de “maneira civilizada como ele dizia”, é, para Zuzé, uma maneira de comunicar aos presos a posição que ele ocupa, ou acha que ocupa, na sociedade angolana. O uso canônico da língua portuguesa concentra e mobiliza, simultaneamente, a autoridade acumulada pelo cipaio em seu exercício de poder.

No entanto, longe de anunciar uma assimetria que aceita uma posição valorativa para a língua portuguesa, a apresentação de Zuzé feita por Xico Futa expressa a tensão que caracteriza a relação entre o sistema linguístico português e o sistema oral quimbundo, ao mesmo tempo em que expressa, também, a tensão que existe entre o auxiliar de delegacia e os presos. No tensionamento que marca essas relações, os lugares de poder da língua portuguesa e do cipaio vão ser relativizados. Os presos vão lidar com o desejo de mandar do auxiliar Zuzé aprendendo que podem manipular a língua portuguesa para “falar bem mesmo, conversa de pessoa igual” e responder “sim, sô Zuzé”, ou “sim, sôr auxiliar” às expressões desse desejo. Manipular a língua portuguesa implicará, para os presos, forjar, engendrar um determinado modo de funcionamento dessa língua no qual o quimbundo possa “se assentar no meio de todas as palavras”.

Não por acaso, caberá a Xico Futa ensinar aos presos como fazê-lo. Isso devido ao fato de essa personagem possuir uma voz que “era assim como o corpo dele, quieta e grande e com força para calar os outros” (VIEIRA, 1982, p. 41), e ainda, de ser capaz de usá-la para proferir palavras de amizade que “também aqueciam, ajudavam a tapar os buracos do casaco roto”. (IDEM, p. 45).

Entre o uso canônico da palavra para expressão de poder, proposto pelo auxiliar Zuzé, e sua utilização como espaço onde o quimbundo pode se assentar, conforme o faz Xico Futa, desdobra-se a narrativa como jogo de sentidos, linguagem que se tece como arte, por meio da qual o narrador, de maneira sagaz, distancia-se do relato, coloca questões, enfim, introduz em sua própria escrita o relevo e o escalonamento da perspectiva.

Duarte esclarece-nos que a intenção da ironia humoresque não é dizer o oposto ou simplesmente dizer algo sem realmente dizê-lo. É, ao contrário, “manter a ambiguidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo, pois o texto construído com essa ironia se configura como um código evanescente e lugar de passagem”. (DUARTE, 2006, p. 31-32). Citando Vladimir Jankélévitch, a estudiosa nos informa que a ironia humoresque previne contra o desencanto com a arte de examinar superficialmente, sem se envolver com o fanatismo exclusivista. Pela recusa do envolvimento e do encantamento, continua a estudiosa, “a ironia humoresque será uma gaieté um pouco melancólica, inspirada na descoberta da pluralidade: nossos sentimentos e ideias devem renunciar à solidão senhorial e coabitar no tempo e no espaço com a multidão, preferindo a justiça à intimidade.” (DUARTE, 2006, p. 33). Essa atitude irônica é questionadora e pessimista, pois porta uma interrogação que arruína toda definição e reaviva incansavelmente toda problemática. No entanto, ela afirma que a essência do ser é o devir, explorando com virtuosidade “a dissociação entre ser e parecer, o equívoco entre o parecer e o aparecer, o desacordo do pensamento com a linguagem, do pensamento com a ação, do pensamento consigo mesmo”. (DUARTE, 2006, p. 34). 

Resultado da dicção dialética e polifônica do narrador, a ironia humoresque caracteriza todas as personagens de Luuanda. Em todas elas encontramos uma percepção de que o ser humano tem motivações internas que justificam as suas reações diante da multifacetada realidade. Em seu drama para educar o neto Zeca Santos e livrar-se da fome encontramos a malícia e a complacência com que Vavó Xíxi Hengele aceita os desvios do neto, e da própria vida, rindo-se levemente de ambos, de maneira distanciada e cheia de humor. O caso do roubo dos patos e do papagaio Jacó, que envolve os ladrões Dosreis, Garrido Kam’tuta e Xico Futa e o auxiliar Zuzé, desvela-nos os artifícios do ser humano para se fazer valer, exibindo máscaras e fingimentos que, ao mesmo tempo em que revelam a fragilidade do ser humano, também expõem sua condição risível. E a contenda entre Nga Zefa, Bina, Vavó Bebeca, os meninos Xico e Beto e a galinha Cabíri mostra que uma mesma realidade pode ser interpretada de diversas maneiras, e sempre a partir de um componente subjetivo que orienta a interpretação dos fatos, o que, muitas vezes, provoca incongruências e paradoxos, gerando situações que fazem rir.  

No jogo de máscaras e fingimentos que caracteriza as personagens da “Estória do ladrão e do papagaio”, a manipulação lúdica dos significantes reduplica o fingimento projetando-o para a própria escrita. A estória conta sobre dois roubos, o de sete patos gordos e o do papagaio Jacó. A trama dos roubos estrutura as histórias de Dosreis e Garrido Kam’tuta com a de Xico Futa, que já está preso na delegacia quando os dois são levados para lá, a do auxiliar Zuzé, e ainda a de Inácia e de outras personagens que vão desenhando a vida no musseque Sambizanga. Essas histórias se cruzam e interligam, formando uma rede. Como rede que articula vários acontecimentos, mas, simultaneamente, armação, cilada, armadilha, a narrativa multiplica as máscaras e os fingimentos de uma linguagem que, antes de mais nada, exibe os artifícios com que se constrói. É o que podemos observar nos devaneios de Xico Futa, que, em sua cela, divaga, perdido em cogitações, enquanto tenta deslindar os fios que compõem a teia narrativa em que ele próprio se encontra:

Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou, aonde começou, por quê, pra quê, quem? Saber mesmo o que estava se passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo que passa na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo princípio era também o fim doutro princípio e então, se a gente segue assim, para trás ou para a frente, vê que não pode se partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde, aparece... E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdades e uma quinda de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário mesmo. (VIEIRA, 1982, p. 52).

Nos devaneios da personagem lemos uma perquirição irônica da linguagem, de sua significância, sua potencialidade, seu caráter de fingimento, de representação. Desejoso de saber, com certeza, como o caso das prisões dos amigos começa, se pelo roubo dos patos ou do papagaio Jacó, mas consciente da impossibilidade de encontrar o princípio do “tudo que se passa na vida”, Xico Futa conclui que “é preciso dizer um princípio que se escolhe”. (VIEIRA, 1982, p. 54). A personagem perscruta a linguagem, esquadrinha a significância, investiga não apenas o dito, mas também o dizer, a elaboração do dizer. E esbarra na fronteira que, simultaneamente, une e separa aquilo que ele nos conta das makas[4] que envolveram os amigos: “costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas”. (VIEIRA, 1982, p. 54).

Em sua indagação sobre a raiz das coisas, dos casos, das conversas, interessa-lhe não apenas a mensagem transparente, mas também o material opaco da linguagem, que lhe permite registrar as contradições que observa no espaço mesmo que ocupa, onde ouve as macas dos companheiros de cela. As dúvidas expressas por Xico Futa são dirigidas não apenas à linguagem, mas também à possibilidade de encontrar sentido para as estórias que ouve. Nas dúvidas da personagem, encontramos o questionamento sobre a impossibilidade do relato completo da realidade, assim como a consciência de que o sentido não é uno, mas múltiplo, não é estável ou fixo, mas escorregadio e deslizante.

Esse questionamento sobre a impossibilidade do relato completo da realidade é expandida na “Estória da galinha e o ovo”. A maka envolve a disputa entre nga Zefa e Bina pelo ovo da Cabíri, uma “gorda galinha de pequenas penas brancas e pretas”. (VIEIRA, 1982, p. 100). A galinha pertence a nga Zefa. Porém, grávida e com desejos de comer um ovo da galinha, nga Bina alimenta a ave até que ela o ponha em seu quintal. Inconformada, nga Zefa vai reclamar a posse do ovo em meio a “luta de arranhar, segurar cabelos, insultos de ladrona, cabra, feiticeira”. (VIEIRA, 1982, p. 101). A desordem se instala no musseque Sambizanga diante da impossibilidade das mulheres de definirem a quem pertence o ovo. Até que a velha Bebeca entra em cena, restabelecendo a ordem entre as mulheres:

– Calma então! A cabeça fala, o coração ouve! Pra quê então, se insultar assim? Todas que estão falar no mesmo tempo, ninguém que percebe mesmo. Fala cada qual, a gente vê quem tem a razão dela. Somos pessoas, sukua’, não somos bichos! (VIEIRA, 1982, p. 102-103).

Uma particularidade da maka da galinha e do ovo é tratar-se de uma estória que se desenvolve num espaço aberto, “na hora das quatro horas”. (VIEIRA, 1982, p. 99). É fim de tarde, os homens ainda não voltaram do trabalho, as mulheres estão envolvidas com os afazeres domésticos, e as crianças ainda brincam na rua. No momento da contenda, os moradores saem de suas casas e se reúnem nesse espaço aberto à circulação de produtos, ideias e pessoas. Ou seja, a maka tem lugar em um espaço em que, a princípio, seria possível às pessoas se relacionarem, discutirem suas questões, deliberarem sobre seus assuntos. Um espaço de encontro com o “outro”. Como numa ágora. Nesse espaço a princípio democrático – apenas a princípio, como se verá –, caberá a uma mulher, a velha Bebeca, por sua sabedoria de mais velha, investigar as perspectivas contraditórias que se apresentam em relação à posse do ovo. O que ela fará recorrendo a um processo antigo de buscar a verdade pelo diálogo e pela discussão: a dialética.

Por meio dessa lógica antiga de interpretar os processos como oposição de forças, a velha Bebeca convoca, para a maka da galinha e do ovo, não apenas as mulheres envolvidas na contenda, mas também todo o conjunto de saberes institucionais e ideológicos que conformam o processo sócio-histórico do musseque Sambizanga. Esses saberes entram na narrativa pelas vozes de seus representantes ilustres: Sô Zé, o branco dono da quitanda, inscreve na narrativa a posição do comércio local; Azulinho, ou João Pedro Capita, representa a voz do clero no musseque; Sô Vitalino, proprietário de cubatas, projeta na reunião o ramo de atividade econômica que envolve os imóveis do musseque; Velho Lemos, cuja linguagem característica dos cartórios e dos documentos notariais, tangencia no musseque o discurso jurídico; e o Sargento insere na estória o regime militar estabelecido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado – PIDE –, a polícia política implantada por Portugal nas então colônias para cuidar dos interesses da Metrópole e reprimir as iniciativas independentistas e libertárias.

Contrariando as premissas desses saberes institucionais, a velha Bebeca instala a assembleia para decidir sobre a posse do ovo a partir da citação de um provérbio:  

– Minhas amigas, a cobra enrolou no moringue! Se pego o moringue, cobra morde; se mato a cobra, o moringue parte!... Você, Zefa, tem razão: galinha é sua, ovo da barriga dela é seu! Mas Bina também tem razão dela: ovo foi posto no quintal dela, galinha comia milho dela... (VIEIRA, 1982, p. 105).

A citação do provérbio resulta de sua característica de elemento de ligação que reúne texto e contexto, na via aberta por Paul Zumthor (1979). Pela voz da personagem velha Bebeca, o provérbio mantém com a “Estória da galinha e do ovo” uma relação de confirmação: ele confirma o sentido do texto. Pela citação do provérbio a velha Bebeca confirma, no texto, a situação em que se encontram as mulheres no musseque Sambizanga: a de fome e carestia, que as leva a brigar entre si pela posse do ovo. O provérbio remeteria, nesse caso, à falta de alternativa para a fome.

Portanto, ao instalar a assembleia a partir da citação do provérbio, a velha Bebeca, dizendo com Walter Benjamin (1985), vai escovar a contrapelo os saberes institucionais que circulam no ambiente do musseque Sambizanga. Em relação a eles, a velha Bebeca vai assumir uma postura dialética de buscar a verdade por meio da análise das partes envolvidas em conflito, mas colocando-se diante dos interlocutores naquela atitude irônica de quem nada sabe, de quem tem tudo para aprender, enquanto desvela o fato de que esses saberes nada têm a dizer em relação ao musseque Sambizanga. Na performance dialética que a velha Bebeca elege para tratar a falta de alternativa para a fome reencontramos a mesma atitude crítica que entrevemos na dicção do narrador de Luuanda para encenar as coisas vergonhosas que se passam em Angola.

É o que acontece, por exemplo, quando a personagem envolve na maka o quitandeiro sô Zé dizendo para as mulheres: “O melhor perguntamos ainda no sô Zé... Ele é branco!...” (VIEIRA, 1982, p. 105). O quitandeiro reage à indagação da velha Bebeca mirando a situação com os mesmos olhos com que mirava “os pratos da balança quando pesava, as medidas quando media, para pesar menos, para medir menos” (IDEM, p. 106). Por isso, com seu saber de branco, reivindica também ele a posse do ovo como quem reclama os dividendos de um empréstimo, alegando que o milho com que Bina alimentara a galinha Cabíri fora comprado em sua quitanda e ainda não fora pago.

Mais curioso é o envolvimento do sacristão Azulinho na assembleia. João Pedro Capita é convocado para a reunião porque “na hora de falar sério, tanto faz é latim, tanto faz é matemática, tanto faz é religião, ninguém que duvidava: Azulinho sabia.” (IDEM, p. 109). Com seu saber de seminarista, Azulinho decide que a verdade sobre a posse do ovo deve ser proclamada por padre Júlio, alegando: “Não posso dar a César o que é de César, nem a Deus o que é de Deus.” (VIEIRA, 1982, p. 110). Em sua resposta ao problema posto pela maka, Azulinho cita a resposta de Jesus Cristo aos fariseus quando arguido sobre a cobrança de tributos exigida pelos romanos, em que Ele dizia: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Mateus, XXII: 15-22; Marcos, XII: 13-17 – BÍBLIA ON, 2015). A questão proposta a Jesus pelos fariseus era motivada pela circunstância de os judeus terem transformado o pagamento do tributo exigido pelos romanos em problema religioso. O pagamento do imposto era rejeitado. Ao perguntarem a Jesus Cristo se seria lícito dar tributo a César, os fariseus pretendiam comprometê-lo, pois sua resposta poderia excitar contra ele as autoridades romanas ou os judeus dissidentes. Reconhecendo a intenção dos fariseus, Jesus escapa à dificuldade oferecendo-lhes uma lição de justiça ao dizer que deve ser dado a cada um aquilo que lhe é devido. Ou seja, a fala de Jesus Cristo contém uma lição de justiça, baseada em um princípio que sugere que devemos agir com os outros como queremos que os outros ajam conosco, uma moral contra o prejuízo causado ao outro e, ainda, uma prescrição sobre o respeito aos direitos de cada um. Ao inverter a reposta de Jesus Cristo aos fariseus, citando-a no texto pela negação, Azulinho subverte a lição que nela está contida, ao mesmo tempo em que justifica, pela citação mesma, a injustiça que cometerá ao propor que o ovo deve ser levado a padre Júlio.

Em relação a Sô Vitalino, sua participação na maka resulta também na reivindicação do ovo, que, segundo justifica sua sabedoria, se fora botado no quintal de nga Bina estava circunscrito a sua propriedade privada, ainda que a garantia dessa propriedade deva resultar do recurso à força policial: “Vocês têm cada uma!... Não interessa, o ovo é meu! Foi posto na cubata que é minha! Melhor ou chamar o meu amigo da polícia...” (VIEIRA, 1982, p. 113).

O antigo ajudante de notário Velho Lemos, experiente em resolver makas, ao ser envolvido na assembleia lembra às mulheres o poder dos requerimentos quando lhes informa sobre a necessidade de ajuizarem uma ação para resolver a questão: “Sem processo para julgar não pode-se saber a justiça, senhora! Fazemos os requerimentos...” (VIEIRA, 1982, p. 117). Pautando sua fala em seu conhecimento sobre a burocracia da justiça sô Lemos vislumbra, como sentença sobre o destino do ovo, o seu encaminhamento para o Juiz, seu amigo. 

Mas se “nem sô Lemos sabia resolver os casos” (VIEIRA, 1982, p. 118), muito menos o saberia o Sargento, cuja expertise para cuidar da ordem pública não ajudará a definir o destino do ovo. Impondo sua presença na maka e desejoso de comer churrasco de galinha, o Sargento apenas declara para as mulheres: “Vocês estavam a alterar a ordem pública, neste quintal, desordeiras! Estavam reunidas mais de duas pessoas, isso é proibido! E, além do mais, com essa mania de julgarem os vossos casos, tentaram subtrair a justiça aos tribunais competentes! A galinha vai comigo, apreendida, e vocês toca a dispersar!” (VIEIRA, 1982, p. 120-121).

Ao final da assembleia, será novamente o saber local que se imporá na resolução do caso. Para livrar a galinha das mãos do Sargente, Beto e Xico vão utilizar a sua técnica de conversar com os animais e imitar um galo “a cantar alegre e satisfeito, a sua cantiga de cambular galinhas”. (VIEIRA, 1982, p. 122). Ouvindo “o cantar conhecido que lhe chamava, que lhe dizia o companheiro tinha encontrado bicho de comer ou sítio bom de tomar banho de areia” (IDEM, p. 122), Cabíri espeta as unhas no braço do Sargento, arranha fundo e força as asas, voando “por cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda pássaro de voar todas as horas”. (IDEM, 1982, p. 122). De posse do ovo, a velha Bebeca poderá entrega-lo a Bina, com a permissão de nga Zefa, pois, na sabedoria do musseque, a falta de alternativa para a fome não é uma ameaça para a sobrevivência do grupo, antes, é aquilo que o identifica.

A essa altura podemos pensar que a fome seja o leit motiv da obra Luuanda. Ela se repete em todas as estórias contadas, como argumento central da vida de todas as personagens e como elemento articulador de todas as histórias que se cruzam em Luuanda. Falar da fome, na obra, será falar da falta de alternativa para ela, das diferenças que a sustentam, de seu impacto sobre a vida dos moradores dos musseques. Por isso o narrador vai adotar uma dicção dialética e polifônica. Esta lhe permitirá construir um rodeio irônico, um arabesco por cujas linhas encruzilhadas o narrador vai lançar, para o leitor, uma piscada de olho por meio da qual o convidará a perceber as incongruências da realidade angolana.

Voltando a Ítalo Calvino, podemos afirmar que nossa (re)leitura de Luuanda nos permite perceber a oportunidade da escolha da obra para figurar entre os clássicos da literatura angolana na ocasião da comemoração de seu cinquentenário. Um efeito que Calvino identifica como resultado da leitura do clássico é o de permitir captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos seu discurso, que soa articulado no interior da casa. Em função disso, Calvino vai dizer que “é clássico aquilo que persiste como rumor, mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”. (CALVINO, 1993, p. 15). (Re)Ler Luuanda é ouvir este rumor. E mais, é percebermos a piscada de olho que o narrador nos lança e aceitarmos seu convite para rir com ele.

Referências

ADMINISTRADOR. Lançamento dos 11 Clássicos da Literatura Angolana. 26.11.2013. Disponível em: http://mediatecas.ao/lancamento-dos-11-classicos-da-literatura-angolana/#more-4293. Acesso em 12 de jun. de 2015. 

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In.: Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sério Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BIBLIA ON. Bíblia Sagrada on line. Disponível em http://www.bibliaon.com/mateus/. Acesso em 14 de out. de 2015.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; São Paulo: Alameda, 2006.

GOMES, Miguel. Grecima lança mais onze clássicos da literatura nacional. 07.11.2014. Disponível em: http://www.redeangola.info/grecima-lanca-mais-onze-classicos-da-literatura-nacional/. Acesso em 12 de jun. de 2015).

PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. 2ª ed. Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007.

VIEIRA, Luandino. Luuanda. São Paulo: Editora Ática, 1982.  

ZUMTHOR, Paul. A encruzilhada dos rhétoriqueurs: intertextualidade e retórica. Tradução de Clara Crabbé Rocha. In.: Poétique: Revue de Théorie et d’Analyse Littéraires. Coimbra, n. 27, p. 109-146, 1979.

Notas

[1] Moreira, T. T. (2015). (Re)Ler Luuanda em tempos de clássicos. Via Atlântica, (27), 265-282. https://doi.org/10.11606/va.v0i27.100695

[3] Em 7 de novembro de 2014 foi lançada a segunda edição da coleção, com os seguintes títulos: Uanga, de Óscar Ribas; Poemas, de Viriato da Cruz; Colonizados e colonizadores, de Raul David; Estórias do musseque, de Jofre Rocha; Gentes do meu bairro, de Jorge Macedo; A Konkhava de Feti, de Henrique Abranches; Poemas completos, de Alda Lara; Meu amor da Rua 11, de Aires de Almeida Santos; A morte do velho Kipacaça, de Boaventura Cardoso; Obra poética, de Mário António; e A casa velha das margens, de Arnaldo Santos.

[4] Do kimbundu, significa um problema delicado, complexo ou grave; comumente se refere à luta anticorrupção em Angola.

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* Terezinha Taborda Moreira é Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. Pesquisadora CNPq-Nível 2. Este trabalho é parte das reflexões desenvolvidas no âmbito do Projeto de Pesquisa “Linguagem e trauma na escrita literária angolana”, com o apoio do CNPq. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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