Escrever também ódio por amor ao amor1

Terezinha Taborda Moreira*

 

No Encontro Perfil da Literatura Negra, ocorrido em São Paulo, em 1985, o escritor Manuel Rui (1985) fez uma palestra que se tornaria paradigmática para os estudiosos de literaturas africanas, especialmente de língua portuguesa, intitulada “Eu e o outro – O invasor (ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto)”. O ensaio traz reflexões instigantes sobre a questão das identidades africanas e, mais ainda, para o caso que nos interessa aqui, sobre a maneira de representá-las. Pergunta-se, Manuel Rui, em sua reflexão sobre a resistência da fala na certeza da chegada da escrita no espaço angolano/africano:

Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já comporta? Isso não. No texto oral já disse: não toco e não o deixo minar pela escrita, arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrumento de escrita um texto escrito meu, da minha identidade. (RUI, 1985)

A proposta estética apresentada pelo prosador e poeta remete a uma reflexão anterior, apresentada por ele em 1979, na VI Conferência dos escritores Afro-Asiáticos, realizada em Luanda, conforme nos informa Laura Padilha (2002). Dessa feita, Manuel Rui afirmava o movimento do qual resultava a escrita literária angolana/africana produzida após a independência, que seria: “Da oratura à escrita. De uma língua a outra, já interferida para uma semântica nova: a da minha identidade”. (RUI apud PADILHA, 2002, p. 291).

A “semântica nova” anunciada por Manuel Rui, conforme mostrado por Padilha, “marca a produção literária africana pós-75, seja no que respeita à narrativa, seja no campo da poesia”. (PADILHA, 2002, p. 291). Essa “semântica nova” erige-se, nas palavras de Padilha, “ritualisticamente, como que fazendo parte de um rito maior, de preservação, de luta contra o outro e de exaltação do próprio”, o que “não significa elidir o outro, a partir mesmo da certeza de que tudo se diz na língua por ele legada”. (PADILHA, 2002, p. 292).

Ainda que a “semântica nova” proposta por Manuel Rui se constitua como uma valorização do próprio na afirmação de sua relação com o outro, aquilo que gostaríamos de destacar nela são os signos a partir dos quais ela demarca os termos dessa relação, a saber: “arma”, “matar o meu texto”, “arma do outro”, “minar”, “conquistar”. Ao longo da palestra proferida por Manuel Rui em 1985, são inúmeras as referências à escrita como “arma poderosa”, que, inicialmente utilizada para “bombardear o meu texto”, “destruir o meu texto ouvido e visto”, posteriormente se torna propriedade do escritor angolano/africano, “arma que eu conquistei ao outro”, por meio da qual ele “interfere”, “desescreve” para conquistar, “a partir do instrumento escrita”, um texto escrito seu, da sua identidade.

Podemos, então, pensar que a “nova semântica” proposta pelo escritor desde 1979 encontra, no trauma da violência da imposição da escrita, um ponto de ancoragem do discurso literário, do ponto de vista de sua forma ou de seu conteúdo. A escrita será, para o escritor, arena, lugar onde “o meu espaço e tempo foi agredido”, mas, justamente por isso, lugar também onde “para defender por vezes dessituo do espaço e tempo o tempo mais total”. Será, ainda, lugar propício para o escritor “interferir no mundo total”, para que “além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a desalienação do outro até que um dia e virá ‘os portos do mundo sejam portos de todo o mundo’” (RUI, 1985, grifos do autor). A proposta de Manuel Rui aglutina escrita, vida e luta: “Escrever então é viver. Escrever assim é lutar”. (RUI, 1985). Ao fazê-lo, evidencia como a escrita literária angolana/africana se apropria da violência como elemento estruturante do fazer literário.

Essa forma de apropriação, no entanto, deve ser lida, simultaneamente, como resultado e efeito da própria irrupção da escrita no cenário angolano/africano. Nesse sentido, repete-se em Angola, e nos demais países africanos de língua portuguesa, o mesmo fenômeno que Martín Lienhard identificou quando tratou da irrupção da escrita no cenário americano. Explica-nos o estudioso que:

La irrupción de los europeos en el continente que luego se iba a bautizar com el sonoro nombre de “América”, iniciada em el año de 1492, significó para las sociedades autóctonas um trauma [2.1/León Portilha 1959] profundo, difícil de imaginar desde fuera y a los siglos de distancia: um transtorno radical de su vida social, política, económica y cultural.
No fue necessariamente, en los primeiros momentos, la imposición de un nuevo poder político la que causaría la mayor extrañeza entre los indígenas: usurpando un poder estatal ya constituído (Mesoamérica, área andina), o manipulando a su favor exclusivo un sistema de parentesco tradicional (área tupí-guaraní), los españoles y los portugueses no hicieron sino repetir anteriores usurpaciones y manipulaciones, cometidas por grupos expansionistas autóctones (toltecas, astecas, incas, tupís, guaraníes...) contra outros grupos y sociedades del continente.
Ningún precedente tenía, em cambio, una inovación mayor impuesta por los europeos en la esfera de la comunicación y de la cultura: la valorización extrema, sin antecedente ni en las sociedades autóctonas mas “letradas” (Mesoamérica), de la notación o transcripción gráfica – alfabética – del discurso, especialmente del discurso del poder. (LIENHARD, 1991, p. 3-4, grifos do autor).

Para Lienhard, a operação escritural desempenhada pelos escribas na ocasião dos “descobrimentos” do território americano cumpria duas funções: “realizar” ideologicamente a tomada de posse do território em nome dos reis (católicos) e do cristianismo, e autenticar e atestar o papel decisivo que os descobridores desempenharam nela. Em termos mais abstratos, “la escritura corresponde a la vez a uma práctica político-religiosa (la toma de posesión con vistas a su evangelización) y a outra jurídica o notarial (dar fé de las responsabilidades individuales implicadas)”. (LIENHARD, 1991, p. 5). Lienhard pontua que a investidura da escrita na concepção de prática político-religiosa resultou em sua fetichização, a qual foi favorecida pelo fato de que: 

A los ojos de los conquistadores, la escritura simboliza, actualiza o evoca – em el sentido mágico primitivo – la autoridade de los reyes españoles, legitimada por los privilégios que les condedió, a raíz de la reconquista Cristiana de la península ibérica, el poder papal. A su vez, la institución romana, herdera autoproclamada del legado Cristiano, se considera depositaria de la que fue, en la Europa medieval, la Escritura por excelencia: la Biblia. El poder – o capacidade performativa – que Colón e sus compañeros ven encarnado en el texto escrito resulta, en última instancia, un poder ideológico afianzado en la concepción occidental etnocentrista del valor universal de las Sagradas Escrituras judeo-cristianas. (LIENHARD, 1991, p. 5-6).

Essa fetichização da escrita ganhou, no requerimento, a expressão de sua forma de impor-se, autoritariamente, sobre os povos autóctones, já que o documento chegava-lhes sem admitir réplica e sem abrir-se ao diálogo: “indepiendentemente del consentimiento de los autóctonos, la conquista se realiza a través del simple acto de enunciar el texto del requerimiento. [...] El texto escrito, legitimado a su vez por otras ‘escrituras’, expressa en última instancia la voluntad divina.”. (LIENHARD, 1991, p. 3-4, grifos do autor). Esse poder do requerimento resulta do fato de ele performar, em terras americanas, a função político-religiosa outorgada ao discurso escrito e traduzida, por exemplo, na seguinte fala de Antonio Nebrija por ocasião da publicação, em 1492, de sua Gramática de la lengua Castellana: “En la conquista de los ‘bárbaros’ [...] um idioma definitivamente codificado por y para la escritura permite imponer ‘las leies quel vencedor pone al vencido’”. (NEBRIJA apud LIENHARD, 1991, p. 7, grifos do autor).

A partir daí, ainda segundo Lienhard, a cultura gráfica europeia suplantou, em termos de dominação, a cultura predominantemente oral dos povos americanos autóctones, sem que esses tivessem acesso à escrita. De maneira semelhante à situação do território americano, também no território angolano/africano, observamos, ainda na esteira de Lienhard, que a reestruturação europeia da esfera da comunicação desembocou na exclusão da maioria desse sistema que se impôs como único meio de comunicação oficial. Para isso teriam contribuído, inclusive, posteriormente, os primeiros “escritores” coloniais, que acabaram atuando mais como “auxiliares del poder más que literatos autónomos, produtores de um discurso político-religioso más que creadores de discursos ficcionales”. (LIENHARD, 1991, p. 9).  

Esse modo de instalação da escrita no território angolano/africano, como também seu posterior desenvolvimento, inclusive com a participação dos escritores coloniais, justifica que, posteriormente à independência, o poeta e prosador Manuel Rui reivindique, para a literatura, uma condição transformadora, dinâmica, que permita ao escritor pós-colonial defender a sua identidade, reconhecer-se e desalienar o outro em sua insistência pela exclusão. Ainda que, para isso, a literatura se constitua como o espaço onde o escritor “escreva também ódio por amor ao amor”. (RUI, 1985).

Compreender a semântica nova proposta por Manuel Rui, a partir da qual se desenvolve a literatura angolana pós-75, nos leva a pensá-la a partir da mesma relação entre literatura, história e trauma, que Jaime Ginzburg (2000) propõe para a literatura brasileira quando destaca o trabalho de escritores que buscaram representar a condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico. Para Ginzburg, “no contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade é atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária”. (GINZBURG, 2000, p. 43).  O impacto dessa opressão abala a noção de sujeito e, também, a concepção de representação, que se fragmenta, “exigindo do leitor a perplexidade diante das dificuldades de constituição de sentido, tanto no campo da forma estética, como no campo da experiência social”. (GINZBURG, 2000, p. 43). Por isso, para o estudioso, as representações da História, em obras de escritores como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, dentre outros, “resistem à acomodação em lógicas lineares causais, ou a esquemas positivistas, incorporando contradições e indeterminações e aproximando-se do que Benjamin propunha como representação da História como sucessão de catástrofes, como ruína”. (GINZBURG, 2000, p. 43). Isso porque a escrita literária desses autores mostra como eles “estiveram atentos ao quanto há de violência, injustiça e agonia na sociedade brasileira, e trouxeram a problematização do externo para o interno, atingindo assim a forma de suas criações”. (GINZBURG, 2000, p. 43).  

Compactuando com as reflexões de Ginzburg, e guardando as devidas diferenças entre as literaturas brasileira e angolana, acreditamos que a narrativa O livro dos rios (2006), primeiro volume da Trilogia De rios velhos e guerrilheiros, de José Luandino Vieira, encena a condição humana de sujeitos cuja subjetividade é atingida pela opressão sistemática de uma estrutura social marcada pelo lastro do processo colonial na cultura e na vida em geral. Por isso a construção da narrativa se processa a partir da indissociabilidade entre os campos estético, ético e político. Ela questiona a capacidade de representar o passado pelo recurso às formas convencionais de escrita, rompe com as estruturas canônicas de representação, suspende as referências de delimitação da realidade e da ficção e, justamente por isso, reflete crítica, e melancolicamente, como se procurará mostrar.

 

Mímesis e escrita constelar

A abertura do romance O livro dos rios (2006), de Luandino Vieira – primeiro livro da trilogia De rios velhos e guerrilheiros –, nos apresenta uma epígrafe com os seguintes dizeres:

“In dubio cronichae, pro fabula...”
Dizem que disse – assim mesmo, em latim – Njinga Mbandi, rainha, a António de Oliveira de Cadornega, historiador, na comprovada presença de Frei Giovanni Antonio de Montecúccolo, o Kavazi.
Na nossa cidade de Santa Maria de Matamba, aos dezessete dias do mês de Dezembro de 1663, dia de Santa Olímpia Viúva. (VIEIRA, 2006, grifos do autor)

Nessa epígrafe somos colocados diante de uma cena peculiar. A data que aparece ao final é a do dia anterior ao da morte da lendária Njinga Mbandi, rainha dos reinos do Ndongo e da Matamba, que figura ao lado de duas outras figuras também lendárias: o padre italiano capuchinho que teria sido assistente espiritual da soberana, convertida ao catolicismo como D. Ana de Sousa, e o cronista português António de Oliveira de Cadornega, autor da vasta e preciosa obra História geral das guerras angolanas, que versa sobre a ocupação portuguesa de Angola nos séculos XVI e XVII. A cena sugere que, no momento de sua morte, a rainha apropria-se do latim, antes “a língua da escrita das leis, da escrita da história, da escrita dos temas litúrgicos e das especulações filosóficas” (FRANÇA, 2006, p. 58), para, por meio dela, afirmar aos cronistas a narrativa de ficção como alternativa para as incertezas da história: “In dubio cronichae, pro fabula...”. Observe-se que a citação da frase atribuída à rainha Njinga aparece entre aspas, e logo abaixo dela encontramos, em itálico, uma explicação imprecisa para a origem dessa fala: “dizem que...”. Ou seja, a própria construção da epígrafe se insinua como uma ruptura das fronteiras entre cronichae e fabula.

Essa organização da epígrafe nos permite algumas inferências. A primeira delas refere-se à escolha da voz enunciativa por abrir o relato a partir da inscrição da voz da soberana na narrativa. E aqui vale a pena destacar a importância da rainha Njinga no imaginário angolano, com todas as controvérsias que cercam sua memória, seja como símbolo da resistência à ocupação portuguesa, seja como déspota que escravizava os nativos em sua relação com os europeus. A segunda refere-se à característica crioulizada a partir da qual Njinga é retratada na epígrafe em decorrência da ocupação portuguesa em Angola. Crioulizada, Njinga se configura, simultaneamente, como rainha da Matamba, assimilada e católica. Nesse sentido, a soberana teria absorvido elementos da cultura europeia ao mesmo tempo em que teria defendido a soberania de seu povo. Isso lhe permitiria distinguir entre cronichae como a raiz dos relatos da história oficial e fabula como um tipo narrativo que se relacionaria com a realidade de modo menos referencial e mais mimético, típico das narrativas orais. Por isso, ao recomendar aos historiadores buscarem a fabula nos casos de dúvidas frente à cronichae, Nginga estaria propondo uma relação horizontal entre as duas formas de contar, admitindo que tanto a história quanto a ficção podem se constituir como espaços que propiciam o encontro com a alteridade. Em função disso, a terceira inferência diz respeito a uma opção que, aparentemente, a voz narrativa faz, de construir o relato a partir da heterogeneidade do discurso, constituindo-a como espaço para a emergência de várias vozes dissonantes e imiscíveis que, referenciando-se na cronichae e na fabula, empreendem uma forma constelar de organização do dizer. 

Essa opção se concretiza ao longo da narrativa quando, procedendo à leitura, vemos que os capítulos Rios I, Rios II e Rios III se estruturam como uma tradução, para a língua portuguesa, do conhecido poema “The negro speaks of rivers”, do poeta norte-americano, novelista, dramaturgo, ativista social, colunista e um dos líderes do movimento Harlem Renaissence, James Mercer Langston Hughes (1902-1967), o qual apresentamos a seguir: 

The negro speaks of rivers 

I’ve known rivers:
I’ve known rivers ancient as the world and older than the flow of human blood in human veins.
My soul has grown deep like the rivers.
I bathed in the Euphrates when dawns were young.
I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.
I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln went down to New Orleans, and I’ve seen its muddy bosom turn all golden in the sunset.
I’ve known rivers:
Ancient, dusky rivers.
My soul has grown deep like the rivers.
(HUGHES, 2018).

O belo poema de Langston Hughes é composto em um discurso inglês normativo e apresenta ressonâncias idílicas que evocam, de maneira romântica, a imagem de um tempo e de um espaço primordiais, cujo ponto de origem é a África e o ponto de chegada a América. Nesse tempo e espaço, os grandes rios Eufrates, Congo, Nilo e Mississipi comungam as mesmas águas. A alma do eu lírico assoma progressivamente desse tempo e desse espaço como um rio que flui das águas primevas, tal como o sangue que corre nas veias dos africanos se encontra nas veias dos americanos, no corpo vivo de uma nação que o eu lírico propõe como única. De acordo com António Cristiano Borges, o poema foi escrito numa primeira fase da produção poética de Langston Hughes, quando o poeta contava dezenove anos de idade, e antecede uma experiência posterior na qual, como camareiro de um navio que fazia escalas comerciais ao longo da costa ocidental africana, o poeta “pôde constatar a crueza de vida que os negros ali levavam e rectificar [sic] as concepções românticas que inicialmente aceitara e glosara”. (BORGES, 2007, p. 113). A partir desse momento, ainda segundo Borges, Hughes decidiu “resgatar a dignidade do povo negro”, por meio daquilo que “era mais distinto e habitualmente mais depreciado pela classe média (branca e negra), o discurso oral do negro comum expresso em formas dialectais, a música negra, com o sentimento veemente do blues e o ritmo exuberante do jazz”. (BORGES, 2007, p. 113). Para Borges a música negra assentava na interação dialógica entre chamada e resposta na roda em que todos participavam. Ela criava uma comunhão identitária em que “o blues era o lamento individualizado, a catarse comungada que em todos se repercutia, o jazz era a conversa generalizada em que todos espontaneamente participavam”. (BORGES, 2007, p. 115, grifos do autor).

Na tradução proposta pela voz narrativa de O livro dos rios, o tempo e o espaço africanos perdem suas características míticas para encenar o tempo e o espaço da guerra colonial angolana. Disseminados ao longo dos capítulos citados encontramos os versos traduzidos do poema de Langston Hughes entremeados com a narrativa da vida de um ex-guerrilheiro às voltas com suas memórias de guerra. Através do encadeamento dessas formas ficcionais, a visão romântica da África ganhará, na hidrografia de Angola redesenhada pelas memórias do guerrilheiro, novos matizes que vão oferecer uma outra percepção para o continente, diferente da concepção primitiva a partir da qual África é imaginada e glosada no poema de Langston Hughes, conforme exemplificam os fragmentos abaixo:

Conheci rios.

Primevos, primitivos rios, entes passados do mundo, lodosas torrentes de

                                                           desumano sangue

                                                           nas veias dos homens.

Minha alma escorre funda como a água desses rios. (VIEIRA, 2006, p. 15 – Rios I).

Conheci rios.

De todos direi – dos velhos rios de arrugadas margens, uma teia de muíjes e jindombes; dos que eram macotas nos sobados de tantas nascentes; e rios desalforriados agora, avassalados que estão que estão em livros de atlas; os antepassados rios de sangue, enxurrados na memória dos homens; dos futuros rios falaria, nascidos que vão ser de uma água gorda, lama saindo nos fundos dos mares, esgotos peregrinos. (VIEIRA, 2006, p. 67 – Rios II)

Conheci rios.

E sonhei um sonho.

Peregrinando os rios deste mundo, fui dar a um sítio onde que tinha uma caverna; e me deitei junto com ela para descansar; e, logo-logo, adormeci. E no sono onde eu fui, adiantei sonhar nosso rio Kwaza desenhado como era uma jiboia e três caudas. (VIEIRA, 2006, p. 127 – Rios III).

Na tradução apresentada em O livro dos rios ganhará relevo a abertura da narrativa para a roda de conversa generalizada, o conjunto jazzístico de sons e de vozes que fará repercutir, no relato, a cronichae e a fabula da nação angolana cartografadas através de um discurso constelar. Não por acaso, a sequência da narrativa vai colocar o leitor em contato com uma intenção dialética que organiza o dizer: “Só que, na guerra civil da minha vida, eu, negro, dei de pensar: são rios demais – vi uns, ouvi outros, em todas mesmas águas me banhei é duas vezes”. (VIEIRA, 2006, p. 15). Ela permitirá à voz narrativa dialogar com o poema do norte-americano não apenas para contrapor-se a uma visão romantizada que não inclui a África, como o próprio Langston Hughes acabou percebendo, mas também para responder à pergunta sutilmente inscrita no poema a respeito de uma identidade negra miticamente unificada na diáspora africana. Em perspectiva dialética, a voz narrativa proporá um novo discurso sobre Angola – e, por extensão, sobre a África –, o qual se erige a partir da afirmação de sua condição outra, de sua não-identidade com a nação negra imaginada no poema de Langston Hughes: “Digo mais: também eu, sou um rio”. (VIEIRA, 2006, p. 21).

Mas como se constrói a perspectiva dialética adotada pela voz narrativa? Como essa perspectiva lhe permite afirmar sua alteridade, sua não-identidade? Como a opção pela dialética lhe permite organizar o dizer negando discursos hegemônicos sobre Angola?

Vemos que a narrativa propõe uma relação horizontal entre cronichae e fabula. Para fazê-lo, constrói-se como uma justaposição de elementos e de vozes. Encontramos no texto a narrativa das memórias de guerra do narrador Kene Vua/Kapapa; a tradução do poema de Langston Hughes; referências a documentos do código da guerrilha da guerra colonial; fragmentos de uma espécie de diário da guerrilha; fragmentos de textos históricos oficiais; fragmentos de textos bíblicos; provérbios, contos orais; mussendos, ou crônicas genealógicas e históricas da tradição oral angolana; orações católicas proferidas em língua local; notas explicativas inseridas em pés de páginas com uma espécie de assinatura grafada em itálico que diz N. do A.; traduções de textos escritos em quimbundo; inscrições de lápides escritas em latim; desenhos de tatuagens e de uma cartografia dos rios de angola em forma de serpente; e, até mesmo, apontamentos de uma fábula intitulada “A guerra dos fazedores de chuva com os caçadores de nuvens” (VIEIRA, 2006, p. 91-96). Essa construção resulta do contato estabelecido pelo autor, encenada na voz narrativa, com textos legados pela tradição, tanto a ocidental europeia quanto a tradicional angolana/africana, não somente para reler suas operações argumentativas, mas também para recuperar a dimensão histórica e estilística de sua configuração, decifrando os sentidos que eles portam.

Esse modo de organização do dizer encontra expressão na imagem da constelação proposta por Walter Benjamin, para quem a constelação metaforiza um texto, por ser construído como um mosaico no qual os elementos que o constituem se conectam por meio de uma rede intra ou intertextual, exige do leitor uma atenção redobrada para que as ligações verticais propostas para esses elementos não sejam perdidas. Lacunar, a escrita constelar demandará do leitor uma certa distância para sua contemplação, conforme esclarece o próprio Benjamin:

O pensamento volta continuamente ao princípio, regressa com minúcia à própria coisa. Este infatigável movimento de respiração é o modo de ser específico da contemplação. De facto, seguindo, na observação de um único objeto, os seus vários níveis de sentido, ela recebe daí, quer o impulso para um arranque constantemente renovado, quer a justificação para a intermitência do seu ritmo. E não receia perder o ímpeto, tal como um mosaico não perde a sua majestade pelo facto de ser caprichosamente fragmentado. Ambos se compõem de elementos singulares e diferentes; nada poderia transmitir com mais veemência o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro. (BENJAMIN, 2004, p. 14-15).

Segundo Georg Otte e Miriam Lídia Volpe (2000), a leitura do texto constelar se caracterizaria pela liberdade de estabelecer ligações entre partes dispersas, pois, contrariamente à lógica cumulativa da progressão do texto linear, “o texto constelar se distingue por ‘interrupções’ e pelo ‘recomeço perpétuo’. A repetição das mesmas coisas em contextos diferentes, na verdade, não é repetição, pois trata-se de considerar os ‘vários estratos de sua significação’”. (OTTE; VOLPE, 2000, p. 39, grifos dos autores). Para os estudiosos, ao procedimento horizontal do texto linear, baseado em uma lógica causal que amarraria os fragmentos a uma ordem fixa, teleológica, responsável pelas catástrofes, Benjamin proporia a verticalização de determinados tópicos. Com isso, valorizaria o presente por ser ele o momento da imobilização da história, “do ‘choque’ que interrompe seu fluxo contínuo, possibilitando que os elementos que, devido à ótica linear do tempo, foram afastados uns dos outros, se aproximem novamente numa imagem” (OTTE; VOLPE, 2000, p. 41, grifos dos autores) na qual, à maneira de um relâmpago, o acontecido se uniria ao agora numa constelação. Esses elementos configurariam os restos, os vestígios, as ruínas que, por um lado, evidenciariam a deterioração na passagem do passado para o presente, mas, por outro lado, permitiriam o caminho inverso, já que constituir-se-iam como testemunhos que facultariam o acesso ao passado. Na perspectiva de Benjamim, a escrita constelar possibilitaria recuperar o passado detectando afinidades entre ele e o presente: “Trata-se de mostrar que o passado não passou, ou melhor, não se perdeu e que ele está à espera de sua ‘redenção’” (OTTE; VOLPE, 2000, p. 42), conforme proposto nas “Teses sobre o conceito de história” (BENJAMIN, 1985).  Assim, o presente apareceria como o momento único que encararia a história como “objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio”, mas um tempo saturado de “agoras” (BENJAMIN, 1985, p. 229), ou seja, de momentos que citariam o passado e, ao fazê-lo, renovariam a visão da história como prática salvadora, transformadora, redentora e revolucionária.

A narrativa seria o lugar onde essa citação do passado seria possível. Ou seja, para Benjamin, a verdade assumiria o estatuto de categoria estética, resultando de uma determinada composição e percepção. Por isso, para Otte e Volpe o filósofo lançaria mão do conceito de narrativa para aproximar os conceitos de história e de histórias (história e ficção/história e literatura), propondo que o papel do intelectual seria o do narrador-historiador e lamentando que a narração tivesse entrado em declínio com a evolução das forças produtivas da modernidade. Para Susana Kampff Lages, a nostalgia que lemos no texto “O narrador” (BENJAMIN, 1985) seria, também, “a nostalgia de uma verdade entendida não como valor absoluto, mas como algo relativo, contingente e que se constrói a partir de uma relação do presente com o passado”. (LAGES, 2007, p. 51). Na perspectiva de Otte e Volpe, o filósofo sugeriria que o narrador-historiador atuaria como um cronista “que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos”, pois consideraria que “nada que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN, 1985, p. 223). Como um colecionador, colhendo fragmentos do passado, esse narrador-historiador teria, por tarefa, “mapear, com contornos e fronteiras móveis e imaginárias, os acontecimentos que relampejam do passado para o presente, apropriando-se de uma reminiscência no momento em que um perigo ameaça tanto a tradição quanto os que a recebem” (OTTE; VOLPE, 2000, p. 46). Essa apropriação seria possível porque, ao contar uma história, o narrador recupera uma dimensão do passado e a atualiza, fazendo com que ela passe a fazer parte da experiência atual, sua e dos ouvintes. Ao fazê-lo, opera uma alteração fundamental no presente.

Aproximando-se da proposta filosófica de Walter Benjamin, Theodor Adorno (2009) postula que a constelação seja pensada como uma inscrição histórica do passado que é recuperado como objeto, em sua alteridade, no tempo presente. Na perspectiva de Adorno, cada objeto traz em si, como uma mônada, sua história sedimentada. Por isso, em Adorno a imagem da constelação remeterá a uma forma de construção do texto na qual os conceitos são dispostos com o intuito de iluminar a especificidade do objeto, e não de apagar sua singularidade por meio da imposição de significados pré-existentes. Na relação entre sujeito e objeto encenada na escrita constelar encontramos a concepção de dialética negativa de Adorno (2009).   

Escrita constelar, O livro dos rios pode ser considerado um exemplo dessa relação dialética adorniana. Ela já está anunciada desde o início do relato, quando a voz narrativa convoca o filósofo pré-socrático Heráclito para afirmar: “na guerra civil da minha vida, eu, negro, dei de pensar: são rios demais – vi uns, ouvi outros, em todas mesmas águas me banhei é duas vezes”. (VIEIRA, 2006, p. 15). Heráclito é o primeiro filósofo a conceber a realidade como uma síntese de contrários. Ele pensa o conhecimento a partir da unidade dos opostos. Para ele a apreensão da realidade absoluta seria um processo mediado pelo logos/razão objetiva e sem pressupostos particulares. O logos daria a medida comum da realidade. Conhecer seria negar o imediato e buscar o absoluto por meio de uma mediação reflexiva que permitiria alcançar a unidade na multiplicidade, a identidade na contradição. Assim, Heráclito concebe o logos como processo, ou seja, como dialética. Daí seu postulado de que ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio, uma vez que, como as águas correm em um fluxo contínuo e o ser humano muda todos os dias, nenhum dos dois permanece o mesmo. Percebe-se, no postulado, seu intensão de exaltar o movimento especulativo que leva da identidade à contradição. No entanto, ao afirmar que “em todas mesmas águas me banhei é duas vezes”, a voz narrativa do livro de Luandino Vieira contraria o pressuposto heraclitiano. Ao fazê-lo, nega o movimento entre identidade e contradição que conduz incessantemente à síntese e estabelece a contradição, a tensão entre o pensamento, que é abstrato, universal e a realidade, que é contraditória, antagônica, como ponto de ancoragem do relato, confrontando-os entre si para refletir sobre o que lhe escapa. É nesse sentido que O livro dos rios se conforma como um exemplo da dialética negativa. 

A dialética negativa de Adorno é constituída a partir do diálogo que o filósofo propõe com Hegel e, ao mesmo tempo, em contraposição a sua dialética idealista hegeliana. Herdeiro de Heráclito, Hegel postula que o sujeito conhece o ser/objeto através do conceito/pensamento/logos. Assim, aceita a negação/antítese como um momento necessário do conhecimento, mas postula que ela deve ser superada num movimento dialético que reconcilie ser e pensar, objeto e conceito, particular e universal em uma síntese. Já para Adorno, conforme nos explica Bruno Pucci, “o conceito não capta o objeto em sua plenitude”, pois “é universal, abstrato, formal”, enquanto o objeto “é particular, concreto, histórico” (PUCCI, 2012, p. 5). Adorno vai dizer que “a dialética é a consciência consequente da não-identidade” (ADORNO, 2009, p. 13) entre conceito e objeto, universal e particular. Por isso, a dialética, em seu momento negativo, romperia com a hegemonia do conceito em seu poder de abarcar o objeto. Valendo-me, aqui, de algumas das reflexões que Bruno Pucci desenvolve em seu ensaio “A dialética negativa enquanto metodologia de pesquisa em educação” (2012), diríamos que, no processo de conhecimento, ao mesmo tempo em que atesta a fragilidade do conceito, a dialética estimularia o sujeito a ir além dele para dar evidência àquilo que, “foi reprimido, desprezado, ignorado”. (PUCCI, 2012, p. 5). 

Em O livro dos rios, a voz narrativa constrói-se expondo sua fragmentação identitária entre Kene Vua e Kapapa para contar-nos sobre seu passado a partir de seu presente como ex-guerrilheiro na guerra pela independência de Angola da dominação portuguesa. Em seu relato a voz narrativa coloca o leitor em contato com reflexões sobre sua história de vida e, também, sobre a história de seu país. A fragmentação de sua identidade em Kene Vua e Kapapa espelha a fragmentação da própria nação angolana. Essa construção enunciativa, que entrecruza o trauma pessoal do narrador-personagem e o trauma coletivo do país, se projeta sobre a forma como a obra se estrutura nos cinco capítulos em que se divide: Rios, I; Eu, o Kene Vua; Rios, II; Eu, o Kapapa; e Rios, III. Nos capítulos “Eu, o Kene Vua” e “Eu, o Kapapa” a voz narrativa banha-se duas vezes nas mesmas águas dos rios de sua vida para tentar elaborar os traumas de sua história pessoal. Enquanto elabora seu trauma pessoal, a voz narrativa vai, nos capítulos “Rios I”, “Rios II” e “Rios III”, conformando seu relato também como um testemunho de guerra que permite ao leitor associar sua experiência ao trauma coletivo da subalternização colonial que marca a história de Angola. História pessoal e história coletiva, trauma pessoal e trauma coletivo são tensionados na reflexão profunda que a voz narrativa realiza em sua negação a reduzir um ao outro. Ao mesmo tempo, essa negação estimula a voz narrativa a ir além desses traumas e dessas histórias para, por meio de um exercício que é de memória e de crítica, ir do presente ao passado para tentar conferir-lhe o sentido de um rio, de um caminho, “o caminho do homem na morte” (VIEIRA, 2006, p. 23), o qual outra coisa não é senão o caminho da busca pelo sentido da vida. 

No capítulo “Eu, o Kene Vua” a voz narrativa está elaborando seus traumas: a separação de Lopo Gavinho e o julgamento e a execução, por enforcamento, do sapador Batuloza. A infância a localiza como Kapapa ao lado do pai, o piloto negro Kimôngua Paka, e de Lopo Gavinho, capitão branco português do Ndalagando, espaço intermediário onde as culturas angolana e portuguesa, a tradição oral e a cultura escrita, se encontram e se confrontam na mundividência do garoto durante as subidas e descidas pelo rio Kwanza. As duas figuras são determinantes para a formação identitária de Kapapa, juntamente com as recordações de seu avô, também negro, Kinhoka Nzaji. A morte do pai e o início da luta pela independência levam Kapapa a abandonar Lopo Gavinho para juntar-se aos guerrilheiros angolanos. A separação do português, com quem mantinha uma ligação paternal, se configura como um trauma para Kapapa, pelo fato de resultar de uma imposição do partido decorrente da rivalidade instaurada pela guerra, mas, também, da violência racial do processo colonial. No percurso que realiza pela mata em direção ao acampamento dos guerrilheiros, Kapapa é perseguido pelos portugueses – os tugas – e consegue sair ileso. A experiência fará com que os guerrilheiros mudem seu nome para Kene Vua, o “sem azar”. No destacamento de Ndiki Ndia, Kene Vua assume a função de redator de atas, devido a seu perfil solitário e analítico, que o faz questionar sempre os rumos da luta. Por esse motivo, o sapador Batuloza o considera como intelectual – “... o Batuloza me xingou de intelectual. Que eu pensava muito demais; sempre com mania de olhar o céu e o ar e as coisas à toa, comia à parte; ficava calado...” (VIEIRA, 2006, p. 44). Após anos convivendo com os guerrilheiros no destacamento, vê o sapador Batuloza ser acusado de traição por ter roubado alimentos, julgado e receber sentença de morte por enforcamento. Kene Vua é incumbido da execução do sapador, o que se configura, para ele, como um novo trauma, já que se tratava de um companheiro de luta.  

O capítulo se inicia com a voz narrativa dialogando com o texto bíblico “Provérbios”, 30:18-19, aprendido com o português Lopo Gavinho de Caminha: “Estas três coisas me maravilham, e quatro há que não conheço. O caminho da águia no ar; o caminho da cobra na penha; o caminho do navio no meio do mar; e o caminho do homem com uma virgem”. (BÍBLIA, 2017). O diálogo estabelecido com o texto bíblico recebe a seguinte atualização na narrativa: “Três coisas maravilham na minha vida, a quarta não lhe conheço: voo da jamanta-negra no ar de chuva; rasto da jiboia no sussurro da pedra; sombra das águas em fundo do mar – o caminho do homem na morte ...” (VIEIRA, 2006, p. 23). Nessa recuperação do texto bíblico em diferença, a voz narrativa faz corresponder o “voo da jamanta-negra no ar de chuva” à imagem da águia no ar; o “rasto da jiboia no sussurro da pedra” à da cobra na penha; a “sombra das águas em fundo de mar” ao caminho do navio no meio do mar; e o “caminho do homem com uma virgem” ao “caminho do homem na morte”. Reiterado ao longo do romance, esse diálogo se projeta na narrativa como metáfora do embate entre as presenças do pai negro Kimôngua Paka e do português Lopo Gavinho como as matrizes da constituição identitária de Kapapa. A enunciação contraditória e ambivalente da voz narrativa aponta para o fato de que sua constituição discursiva a identifica como um “terceiro espaço” (BHABHA, 1998, p. 67-68), no qual as reivindicações hierárquicas e polarizadas entre culturas se tornam insustentável. Essa condição de construção discursiva, em que os significados culturais não têm unidade ou fixidez, fará com que a voz narrativa se enuncie sem estabelecer juízo de valor entre as culturas, mostrando sua impossibilidade de compactuar com a ideia de dominação total de uma cultura sobre a outra. Assim, as memórias de Kene Vua explicitam a constituição híbrida de sua identidade, a qual reclama tanto as influências do pai e do avô angolanos quanto as do português na composição de sua ancestralidade. Por isso a separação do português, após a morte do pai, e em decorrência do fato de ele ter que assumir um lado na guerra pela independência de Angola, se constitui como uma perda emocional traumática para o narrador personagem, conforme podemos ver na seguinte passagem:

“Fica, ‘paz!...” (...)
Não fiquei, saí do vapor, eu tinha de dar encontro em vida minha as maravilhas que meu avô falava, o caminho que esse branco sempre queria lhe pôr em boa lei, ordem e explicação. Fica, rapaz... Vem comigo!... – ainda oiço e me dói aquela palavra, rapaz, de ele lhe dizer assim, sem sentir o que ela falava por dentro e eu ouvia. E que era a distância da terra lá dele no norte da terra dele do rio dele até naquela beira-rio meu onde que rapaz, em meus ouvidos, sempre traduzo por filho, quem sabe tímida referência desse tuga meu amigo. A música que tinha por dentro dessa palavra era de outra canção: filho, eu ouvia, desafinado. Mas filho era coisa, palavra, eco, pensamento proibido em boca de branco, babando seu fio de triste solidão: Fica, rapaz! (VIEIRA, 2006, pp. 33-34, grifos do autor).

Observa-se, no fragmento, a súplica do português traduzida pela repetição dos sintagmas “Fica rapaz”, “rapaz” e “filho” ecoando, na memória e na organização discursiva da voz narrativa, o trauma de uma perda dolorosa. As narrativas que se elaboram sob o impacto do trauma apresentam, com frequência, a repetição e a metaforização como componentes estruturais. Isso acontece porque a metaforização da experiência traumática confere ao sujeito uma possibilidade para elaborar ou para ressignificar o trauma vivido. Atribuir um significante a uma vivência traumática constitui uma parte importante no processo empreendido pelo sujeito para elaborar e reconstruir sua história de vida após ela ter sido cindida, fragmentada pela experiência traumática. Pela metaforização o sujeito mimetiza os efeitos do trauma, permitindo-lhe retornar à cena traumática, aspecto que Sigmund Freud denomina como “compulsão à repetição” (FREUD, 2017, p. 13). Ao lidar com os acontecimentos traumáticos de sua vida através da construção de metáforas que são reiteradas ao longo do relato, a voz narrativa ilustra a maneira como elege lidar com eventos que perpassam o limite tolerável de representação.[2] Além do trauma da separação do português Lopo Gavinho, essa situação se repetirá em relação ao segundo trauma que marca a vida de Kene Vua, referente ao enforcamento do sapador Batuloza.

Conforme já anunciamos, o enforcamento de Batuloza resulta do roubo de suprimentos do destacamento que ele cometera e pelo qual fora jugado como traidor. Sua execução decorrerá de uma determinação do código de guerrilha, uma lei que impõe o dever da execução. Ela cabe a Kene Vua, que, após concretizá-la, se tornará um sujeito eternamente assombrado por seu passado, impossibilitado de compreender a necessidade da morte do antigo companheiro. A imagem do corpo enforcado do sapador irromperá repetidas vezes ao longo do relato, cruzando, sem explicações, as cenas nas quais a voz narrativa reconstrói a hidrografia angolana tentando cartografar sua identidade em meio às ruínas que a guerra vai acumulando. A cisão que a experiência de enforcar Batuloza provoca em Kene Vua é assumida na própria organização discursiva quando, a partir do relato do julgamento do sapador, as vozes dos “guerrilheiros e partisanos, povo em geral, membros do comando da zona, responsáveis e comités” (VIEIRA, 2006, p. 30) vão aparecendo destacadas, entre parênteses, na sequência das ações descritas, presentificadas na narrativa pela voz do narrador-personagem que assim as anuncia: “E vejo bem e já estão aqui comigo...” (VIEIRA, 2006, p. 39). Essa organização discursiva alterna a voz narrativa e as vozes dos guerrilheiros, presentificando no relato os escombros do julgamento e da decisão coletiva de “enforcar o ladrão do povo” (VIEIRA, 2006, p. 39):

Só que no Batuloza medo dele virava: gemia, primeiros olhos fechados, algum canzumbi lhe cobrava; para se rosnar todo ele, no depois de olhos abertos, fixos, diambados. Se ladrava para dentro daquela sua almazita j´asem espíritos lhe protegendo, fora do sítio onde que fora nascido, por perto só o girassonde onde que seu corpo gira, de lento, ainda hoje em vida minha. (...)
(Que morte por chicotes não, nunca! – ele já tinha sido nosso esperto sapador, sabotador de caminhos e picadas, desde muito tempo útil: se já tinha sido livre na luta de nosso povo não podia mais receber morte de escravo. ...) (VIEIRA, 2006, p. 42-43).      

A presentificação dessas vozes em ruínas, no entanto, não amenizará o impacto do enforcamento do sapador na memória do narrador Kene Vua. Isso pode ser comprovado pelo fato de que, concluído o julgamento, o relato sobre o enforcamento aparecerá de maneira sucinta, em linhas cuja objetividade contrasta com a profunda subjetividade que marca o tom da enunciação: “Fui lhe enforcar naquela manhã e a mata do Kialelu estava cheia de pássaros e flores, o mês já não lembro mais, não chovia porém, não tremi.” (VIEIRA, 2006, p. 47). A crueza do relato do enforcamento talvez decorra de uma constatação anterior a ele, feita pela voz narrativa, da consciência que adquire de sua proximidade do sapador, frutos que são do mesmo barro que os torna irmãos de história e de luta:

Hoje, aqui, ainda é tempo de calar e ser calado – ainda não ganhei minha voz de falar, gritar, procurar saber se quanto daquele barro que lhe fizeram com ele no Amba-Tuloza não saiu na cacimba de todos em nossa vida das matas, nosso caminho, nossos pambos desencruzilhados no tempo: o njila ia diiala um’alunga... (VIEIRA, 2006, p. 46, grifos do autor).   

Daí o trauma do enforcamento do sapador, que faz com que, no presente em que rememora, elaborando sua experiência, a voz narrativa possa dizer: “Se fosse hoje ia lhe chamar de mukueto, meu irmão. E não ia lhe matar calado, ele não tinha nada que ter medo de morrer”. (VIEIRA, 2006, p. 64). Por isso, no capítulo “Eu, o Kapapa”, a voz narrativa anuncia estar pronta para “nascer de novo, sem mistura de ontem, a cada tiro da vida” (VIEIRA, 2006, p. 25). E pede ao comandante Ndiki Ndia para trocar seu nome de guerrilheiro e voltar a ser novamente Kapapa:

Agora, diante de mim, Kapapa eu sou: esfrego meus olhos ensonarados – minhas vidas não dão me berrida, não me enxotam. Nesta, d’agora, só os fuzileiros contam os grãos de areia da pegada que a maré não quis arredondar, meu passado sempre stá no altar da frente da casa do meu corpo, meu dilombe, onde que brilham de meu avô suas catanadas, de meu pai um cigarro apagado no escorregar do quimbundo em peleja de jacob com o anjo português, rio abaixo, mar acima. Que o futuro é o que vem atrás, me persegue sempre: nossa luta – um dia, sei, vai me agarrar: morrerei. (VIEIRA, 2006, p. 124).

Reassumir a identidade de Kapapa é uma forma lidar com as perdas que a guerra trouxe para sua vida: a de Lopo Gavinho e a de Batuloza. A lógica binária da guerra, que apenas admite a oposição entre aliados e inimigos, somente concede a Kene Vua/Kapapa o direito à ausência, à melancolia que o impulsiona a narrar sua história e, ao fazê-lo, a elaborar sua experiência traumática.

Nos capítulos “Rios I”, “Rios II” e “Rios III” a voz narrativa cartografa a identidade angolana a partir de seus rios. Nessa cartografia ela evidencia a não-identidade da nação angolana em relação à proposição de uma identidade negra miticamente unificada na diáspora africana sugerida pelo poema de Langston Hughes, com o qual ela parece não concordar. Pelas águas dos rios de Angola a voz narrativa espraia suas memórias mesclando-as com as memórias do país, auscultando a história para recuperar, em meio às ruínas do passado, vestígios que lhe permitam recompor um sentido de lugar que ela resiste a perder. Essa busca pelos restos, pelas ruínas, pode ser vista em passagens como a que se segue, em que a voz narrativa tensiona a relação entre a cultura portuguesa e a cultura angolana tradicional para desvelar a violência do processo de dominação pela linguagem:

Isto é: conheço rios. De uns dou relação; de outros memória. Rios raivosos, rebeldes, rebelados; rios d’água suja, cega de sangue; raros rios calados de medo debaixo do voo dos helicópteros, rios de pele d’água arripiada; rios de escorregar rude, pedreguentos, retintos de lamas e choro, espuma rouca – o Mukozo, o das água de verde chá-de-caxinde, muxito de bananal ensombreando suas galerias, museu de todas as musas, sujas de nome de dicionário tuga; banana-ouro, banana-prata, banana-cobre que a gente chamamos é banana-roxa. Tudo assim, musa paradisíaca crismada pedra, vil, metálica – para ambiciosos; cobiçosos; astuciosos exploradores, gente e nomes de alma nua, sem espírito da terra. Mas, por suas terceiras margens, alvorada, sempre ainda crescia a que é nossa, a nossíssima: a bananeira-cambuta, anã, de pé ventricoso, as rijíssimas folhas curtas que não são bandeira de vento, não camacozam, firmes em nervura e talo vermelho. Outras, quimbundas, que eram em nome da terra a humilde sakala, pão; pangu, presente; monangamba, para tudo serve; até a kamburi, de pastor e gado. À rebeldia do mundo, à revelia de conquistadores e degredados, brancos-de-quibuzo que nunca rasparam a língua, nas suas águas claras por esse riozinho acima prosperavam clandestinas. (VIEIRA, 2006, p. 17).

No fragmento acima, o rio Mukozo se distingue pelo bananal que compõe a paisagem de suas margens. A este bananal a voz narrativa nomeia de “museu de todas as musas” para destacar o fato de as bananas, que chama de “musas”, estarem, segundo ela, “sujas de nome de dicionário tuga”. Contrapondo os nomes das bananeiras em língua portuguesa (banana-ouro, banana-prata, banana-cobre) e em quimbundo (bananeira-cambuta), a voz narrativa desvela não apenas a dominação cultural portuguesa operada pela linguagem, mas também a exploração da terra angolana, já que o plantio de bananas tinha objetivos comerciais: “Tudo assim, musa paradisíaca crismada pedra, vil, metálica – para ambiciosos; cobiçosos; astuciosos exploradores, gente e nomes de alma nua, sem espírito da terra”. Mas a ênfase na dominação pela linguagem não se restringe à nomeação das frutas nativas, estendendo-se para outros domínios da vida: “Outras, quimbundas, que eram em nome da terra a humilde sakala, pão; pangu, presente; monangamba, para tudo serve; até a kamburi, de pastor e gado”. No processo de busca por palavras quimbundas que foram substituídas por palavras portuguesas, tornada a língua oficial de Angola e, portanto, a língua de comércio e de escrita, a voz narrativa encena a tensão resultante da tentativa de apagamento identitário historicamente projetada pelo processo de colonização.

Entre outros domínios da vida angolana que chegam à narrativa como sinais luminosos a partir dos quais a voz narrativa recorda expressões culturais do passado se destaca a história da morte do rio Kipakasa, “o pequeno rio que morreu na guerra” (VIEIRA, 2006, p. 88). A voz narrava introduz essa história por meio de um musendo, crônica genealógica e histórica que anuncia a vinda dos portugueses para o território angolano:

Recitarei um mussendo: Kisongo kia’xi gerou a Mukambi a Kisongo, Kisonde kia Kisongo, Kalemba ka Kisongo – os que subiram as falésias; Kisonde kia Kisongo foi parar no Mbumba Iobe e gerou a Kisongo kia Mbumba e Kisongo kia Kibaia e Kisongo kia Lembe e Kisongo Kianvula – quilombearam no Alto do Kisonde; Kisongo kia Mbumba nasceu a Mbumba ia Kibaia e Mbumba Iobe – e foi Mbumba ia Kibaia que tabucou no Kabidikisu, selou a sangue o vau, subiu para Mbila Ngolo – por séculos, ali esperou os portugueses.
Que vieram. (VIEIRA, 2006, p. 82)     

A partir dessa introdução, a voz narrativa conta alguns casos que registram os impactos da presença portuguesa no território, flagrando especialmente o período de repressão da PIDE que antecedeu a guerra colonial, caracterizado pelo cerceamento da liberdade dos angolanos mas, também, pela ação de personagens que se destacaram como símbolo de resistência. Na sequência desses casos, ela conta a história da morte do rio Kipakasa: 

Nasceu como assim fino arame d’água dentro das pedras de um morro, secreta nascente de cabaça ir encher lá; (...). Cresceu essa água assim em seu segredo para acordar um dia a tiro de pedreira e pólvora – escorria mais ribeiro agora, e pelo trilho de suas águas xapinharam sujas botas farejando as minas da prata. Acenderam as fogueiras com sangue, acabaram derretendo suas águas. E desse fogo nem cinza sobrou – só pedra sobre pedra. Uma nova rocha, minério de fuba, terra batida sem grumo pelo estreito leito do rio, lençol de sangue seco, descascando. A cor tão escura era, que seu vermelho anoitecia. (...) Era uma pedra temperada, enrijecida por luas e cacimbos, nunca a chuva não lhe derretia. Naquela pedra água não escorria, não renascia; infiltrar nunca infiltrou, não torrentava: caía a chuva, evaporava. O Kipakasa empedregou, matarizado de sangue. Por vales e muitos, nas matas das encostas, para lá das águas do Luandu, no Kutatu, no Kunhinga, ninguém mais que sabe como voou uma fama: aquela cama de rio morto virara pedra de ferreiros. Mas mais tarde, só se deixava arrancar por mussuris – sábios guardadores de espíritos de fole e forja. O mistério, porém, crescia: para ferro de enxada, seja de cabo seja de gentio; para lâmina de javite; ainda catanas de capinar e lenhar ou mesmo arma de acaçar comida – aquela pedra era mansa, obediente, avermelhava com qualquera lenha, ria sem zucutamento. E por entre as coxas da fornalha, no sundo secreto escorria, já bem temperado, o ferro vermelho, puro, sem macalongondos. Mas para qualquer mínimo uso de guerra (pensamento do dono bastava só), essa pedra não forjava; batida, enfubava; esticada, seu metal esfarelava; tudo se esmigalhava.  Se com ela feria-se na pessoa viva, virava água morta, saía um cheiro de sangue podre... (VIEIRA, 2006, p. 88-89).

Percebemos que a morte do rio decorre da exploração de minério em seu leito, pela administração colonial. No entanto, a morte do rio não apaga sua memória, que sobrevive nos mitos que a cultura oral gera sobre ele, transformado que é em marca de resistência à exploração colonial e à própria guerra, uma vez que o minério que se extrai de seu antigo leito não serve para “qualquer mínimo uso de guerra”. Mitificado, o rio ganha, também, o esboço de uma narrativa ficcional intitulada “A guerra dos fazedores de chuva com os caçadores de nuvens” (VIEIRA, 2006, p. 91-96), cuja inserção no relato sugere a contraposição de duas formas de contar a história do rio Kipakasa: uma oral e outra escrita. Se a versão oral se reveste de um aspecto maravilhoso para contar a morte física do rio e seu renascimento como mito, típica da fabulação da cultura oral, a versão ficcional reveste esse mito de convenções e elementos retóricos e estilísticos necessários a seu registro numa escrita literária – criação personagens, tempos, espaços e um enredo linearmente estruturado. Aquilo que a voz narrativa oferece com a proposta de ficcionalizar, em forma de escrita literária, a história da morte do rio Kipakasa, é justamente uma encenação de como uma imagem do passado pode cintilar num texto, transformando-o num espaço que une vários níveis temporais para dar visibilidade à cultura local.

Essa encenação encontra sua justificativa quando, ao final da narrativa “A guerra dos fazedores de chuva com os caçadores de nuvens”, encontramos a seguinte explicação para a morte do rio Kipakasa: “Morreu um rio – simples risco de lápis azul no mapa da nossa terra, afogado em sangue, empedregou. Na carta geográfica de 1939 já não está lá. Disseram os portugueses que a culpa é da escala: um milímetro do mapa deles chega para dois milhões da terra nossa...” (VIEIRA, 2006, p. 96). A exposição da voz narrativa sobre a exclusão do rio na hidrografia angolana explicita a violência com que a escrita pode se impor sobre a realidade devido a sua capacidade de redução do sentido da própria vida. Ao mesmo tempo, mostra como a literatura pode ser o espaço para o debate sobre essa violência, na medida em que se constitui como espaço privilegiado para reelaborar a tradição à luz do tempo presente.

Nos fragmentos pontuados, o presente se torna um momento chave que rompe com a linearidade do fluxo da história e redime o passado, lançando luzes sobre a dimensão política que a narrativa O livro dos rios assume quando faz “explodir do continuum da história” (BENJAMIN, 1985, p. 230). Por meio dessa dimensão política, a voz narrativa afirma a impossibilidade de dizer Angola a partir de uma linguagem/conceito/modelo de escrita literária que não ilumine sua singularidade. Sendo imprescindível para a construção do relato, a língua portuguesa/a escrita literária, vai compor a narrativa evidenciando sua insuficiência para iluminar a terra angolana/a realidade angolana em sua singularidade. Por isso, as bananas/palavras quimbundas vão continuar margeando o rio/a escrita: “à rebeldia do mundo, à revelia de conquistadores e degredados, brancos-de-quibuzo que nunca rasparam a língua, nas suas águas claras por esse riozinho acima prosperavam clandestinas”. (VIEIRA, 2006, p. 17).

As afirmações que estamos fazendo não significam que a obra recuse a língua portuguesa, nem a escrita literária. Ao contrário, construindo-se em perspectiva dialética, a obra busca um modo de encenar a realidade angolana ali onde o pensamento crítico seculariza o modelo da escrita literária, ou seja, na forma romanesca. Adorno defende que “a necessidade de dar voz ao sofrimento é a condição de toda verdade. Pois sofrimento é objetividade que pesa sobre o sujeito, aquilo que ele experimenta como seu elemento mais subjetivo...”. (ADORNO, 2009, p. 24). Por isso o sujeito precisa falar da dor. Para o filósofo, a relação entre o sujeito e o objeto se concretiza numa experiência própria da dialética negativa porque a verdade e a objetividade da experiência de sofrimento não se ordenam segundo uma totalidade que lhe confira sentido, mas respeitam a lógica própria de composição da singularidade dessa experiência. Na perspectiva de Adorno, a não-reconciliação entre objeto e conceito, indivíduo e totalidade, a irredutibilidade entre a singularidade da experiência e a universalidade da arte, podem ser consideradas como exercícios de negação e resistência que se se articulam em processos de composição de experiências humanas individuais. Isso porque o percurso de uma experiência individualizada, quando efetivamente realizado, se constitui como um exercício singular de leitura da tradição.    

É nesse sentido que acreditamos que a obra O livro dos rios pode ser pensada como um modelo de experiência próprio da dialética negativa. A reconstituição da vida de Kene Vua/Kapapa pela atividade rememorativa se constitui como expressão subjetiva de uma vivência de mundo, ao mesmo tempo em que ultrapassa esse modo de constituição. O trabalho de recordação realizado pela voz narrativa somente é levado a termo pela mediação da escrita, o que implica que o passado individual do guerrilheiro se objetiva por meio da apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente determinadas. Porém, quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita para compor a experiência literária, o tempo vivido pelo guerrilheiro ultrapassa o domínio exclusivo de sua vivência e se abre a outras interpretações. O resultado é a encenação não da vida de Kene Vua tal como uma vez foi vivida, mas de um passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo, de rememorá-lo aproximando-se dele. Isso implica ao narrador lidar com seu trauma, individual e coletivo, por meio de “uma dimensão essencial do pensar” que busca aproximar-se dele de maneira mimética, ou seja, sem suprimi-lo, e que, por isso, “consiga dizê-lo sem desfigurá-lo”, já que essa aproximação pode garantir que “o espaço da diferença e da distância seja respeitado sem angústia” e o conhecimento, “sem violência nem dominação”.  (GAGNEBIN, 1997, p. 101). No entrelaçamento de rememoração e escrita, a experiência individual do narrador-guerrilheiro se transforma em exercício de pensamento reflexivo e intelectual que nega falsos universais e conquista a atualidade objetiva que a constitui como um diagnóstico crítico de uma época.  

Referências

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Notas

[1] MOREIRA, Terezinha Taborda. Escrever também ódio por amor ao amor. In: MOREIRA, Terezinha Taborda; WALTY, Ivete. Violência e escrita literária [recurso eletrônico]. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2020. pp. 189-229. E-book (290 p.: il.) ISBN: 978-65-88547-11-3. Disponível em: https://issuu.com/cespuc-centrodeestudosluso-afro-bra/docs/violencia_20e_20escrita_20literaria.

[2] Para uma maior compreensão do processo de escrita da obra O livro dos rios, de Luandino Vieira, como uma narrativa de trauma, recomenda-se os estudos de Elisa Maria Taborda da Silva, intitulados “Estética do trauma e poética da relação: uma aproximação possível” (2015) e O livro dos rios: trauma e representação da voz subalterna na escrita literária de Luandino Vieira (2016).

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* Terezinha Taborda Moreira é Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. Pesquisadora CNPq-Nível 2. Este trabalho é parte das reflexões desenvolvidas no âmbito do Projeto de Pesquisa “Linguagem e trauma na escrita literária angolana”, com o apoio do CNPq. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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