Escrita e testemunho em O livro dos guerrilheiros, de Luandino Vieira1

 

Terezinha Taborda Moreira*

Resumo

O estudo focaliza as estratégias adotadas pelo narrador para narrar o vivido na obra O livro dos guerrilheiros – 2º volume da Trilogia De rios velhos e guerrilheiros (2009), de Luandino Vieira. Parte da hipótese de que o ato de narrar o vivido, proposto pelo narrador, pode ser pensado como um tipo de “escrita de si”, na perspectiva de Judith Butler, por meio da qual ele se institui como um sujeito reflexivo, que conta sua história e a dos guerrilheiros imbuído de um valor ético que envolve um compromisso consigo mesmo, com o outro e com a história de Angola.

Palavras-chave: Escrita de si; Testemunho; Literatura Angolana.

Abstract

This study focused on the strategies adopted by the narrator to tell the experienced in the text O livro dos guerrilheiros – 2nd edition from the De rios velhos e guerrilheiros (2009) Trilogy, written by Luandino Vieira. The hypothesis of this study is that the purpose of narrating the experienced might be thought as a type of “self-writing”, on Judith Butler’s perspective. The “self-writing” is the narrator’s choose to tell his story and the story of the guerrillas fighter imbued with an ethical value that involves a commitment to himself, to the other and to the History of Angola. 

Keywords: Self-writing; Testimony; Angolan Literature.

 

Este estudo contempla a reflexão sobre o processo de construção textual empreendido por Luandino Vieira na obra O livro dos guerrilheiros – 2º volume da Trilogia De rios velhos e guerrilheiros (2009), focalizando as estratégias adotadas pelo narrador para narrar o vivido. Tal ato assume, na obra de Luandino Vieira, a forma de testemunho.

Para Fernando Eslava e Luciara Pereira (2008), a narrativa do testemunho resultaria da apropriação, pela narrativa contemporânea, de diferentes linguagens e elementos culturais e, também, do momento histórico marcado pela multiplicidade. Os estudiosos destacam que esses fatores gerariam modelos ficcionais contaminados por recursos documentais e pela inserção de dados históricos, políticos e sociais na construção da narrativa. Como consequência, apontam o apagamento das fronteiras que limitavam os modelos literários canônicos, as linguagens e os referentes. Na esteira de autores como Blanka Vakarova, Mabel Moraña e Hugo Achugar, Eslava e Pereira mostram como o testemunho foi associado a espaços ocupados por sujeitos periféricos, para os quais a escrita testemunhal ofereceria a possibilidade de dar visibilidade à história e à vida de grupos subalternizados, disseminando a versão daqueles que não teriam voz na história oficial. Nesse sentido, o testemunho teria nascido em contextos de ações revolucionárias e de movimentos políticos e sociais, especialmente na América Latina dos anos de 1970. Segundo Eslava e Pereira (2008), na América Latina, o testemunho partiria de experiências históricas de ditadura, exploração e repressão para mostrar a contra-história dos sujeitos como representantes de um grupo social.

Por outro lado, Márcio Seligmann-Silva (2001) estabelece algumas diferenças entre as particularidades do testemunho latino-americano e do europeu. O crítico observa que o Testimonio latino-americano, devido à sua vinculação com as experiências de ditadura, exploração e repressão, acaba tornando o gênero testemunho antiestetizante, dado seu caráter excessivamente documental. Por isso, o gênero apresentaria, como principais características, a presença de um mediador letrado, de marcas da oralidade, de um caráter exemplar, não-fictício, elementos que reivindicariam a autenticidade e veracidade do discurso. Em perspectiva diferente, o estudioso observa que o sentido alemão imposto ao testemunho pelo termo Zeugnis tratará de um relato que parte da memória e, por isso, apresentará as marcas profundas deixadas pelo trauma sofrido por um sujeito que testemunha situações singulares. Seligmann-Silva aponta que o testemunho, como Zeugnis, apresentaria um discurso marcado pela literalização e pela fragmentação, já que nele o depoimento intencionaria reunir os fragmentos para dar-lhes nexo, enfatizando a subjetividade do depoente. 

Como relato que parte da memória, que enfatiza a subjetividade do expoente, o testemunho pode ser pensado como um tipo de “escrita de si” (BUTLER, 2015). Judith Butler associa as escritas de si a formas pelas quais o sujeito é interpelado. Na esteira das ideias de Mikhail Bakhtin (1993) e de Émile Benveniste (2005; 2006) sobre a constituição do sujeito, Butler defende que a interpelação inaugura o sujeito como ser reflexivo, já que é a partir do momento em que alguém o convoca que ele começa a contar uma história sobre si mesmo. Por isso Butler vê, na cena da interpelação, um duplo valor ético: por um lado, ela permite ao sujeito falar sobre si mesmo e se reconstruir nesse processo; por outro, faculta-lhe estabelecer uma relação com seu interlocutor. Juntamente com Bakhtin e Benveniste, Butler entende que as condições sociais determinam o surgimento do “eu”, e sua história será sempre permeada por um conjunto de normas que estabelecem quais formações de sujeito serão consideradas reconhecíveis. Alinhando seu pensamento ao de Michel Foucault (2008), Butler defende uma postura autocrítica na criação de si, a qual exponha os limites dessa criação e as formas que os sujeitos podem assumir, embora esteja atenta ao fato de que essa postura pode comprometer o reconhecimento do si pelos outros. 

É essa perspectiva do testemunho que encontramos em O livro dos guerrilheiros (2009). Na obra, o narrador se constrói como o ex-guerrilheiro Dimantino Kinhoka – também Kene Vua –, escrivão do grupo de guerrilheiros comandado por Ndiki Ndia, ou Andiki, na missão ao Kalongololo, em 1971, conforme ela mesma anuncia na abertura do romance, intitulada “Eu, os guerrilheiros”:

Pauta de alguns guerrilheiros que teve no grupo do comandante Ndiki Ndia, ou Andiki; e que vieram na missão que fomos no Kalongololo, naquele ano de 1971. Conforme notícias, mujimbos e mucandas e ainda as lembranças de quem lhes escreveu. Alguns sucedos de suas valerosas vidas ou de suas exemplares mortes, para alegria dos menores e tristura dos mais velhos. (VIEIRA, 2009, p. 9)

A partir de mucandas, mujimbos, anotações diversas, papéis de um jornalista contendo um poema e um projeto de roteiro de documentário onde se tem a transcrição de uma entrevista, o narrador tece a trama de sua estadia nessa missão, enredando nela cinco outras narrativas, cada uma trazendo a história de um ex-guerrilheiro.

Ao iniciar as narrativas de vida que nos apresenta, o narrador faz um pacto de busca pela verdade: “Entanto que ex-guerrilheiro, eu, Diamantino Kinhoka, ainda com a autorização que sempre a amizade e camaradagem aceitam, sendo quissoco nosso o da luta pela libertação, não reivindico licença de mentir.” (VIEIRA, 2009, p. 11). Preso a uma necessidade – “tendo que contar essas algumas coisas nossas” (VIEIRA, 2009, p. 11) –, o narrador adverte, no entanto, sobre a dificuldade de alcançar, pela escrita, as vidas sobre as quais se propõe contar, já que “a verdade de suas vidas sempre não é possível de escrever, ainda que desejada” (VIEIRA, 2009, p. 12). A estratégia que ele adota para narrar, então, é eximir-se do ofício de escritor. Ao fazê-lo, aponta para a existência de uma diferença entre o contar da escrita, dos registros dos cartórios, dos arquivos, da história, e o seu contar de ouvido, de vivido, de experimentado, testemunhado:  

Se os verdadeiros escritores da nossa terra exigirem a certidão da história na pauta destas mortes, sempre lhes dou aviso que a verdade não dá se encontro em balcão de cartório ou decreto de governo, cada vez apenas nas estórias que contamos uns nos outros, enquanto esperamos nossa vez na fila de dar baixa de nossas pequeninas vidas. (VIEIRA, 2009, p. 12).    

Admitindo, então, que sua escrita “nunca ia bastar para ordenar a verdade”, o narrador se dispõe a escrever pedindo licença ao leitor para colocá-lo em contato não com suas palavras, mas com a “formosura destas vidas” (VIEIRA, 2009, p. 12). Para ele, a vida de cada guerrilheiro é o espaço onde a verdade sobre a guerra pela libertação de Angola ultrapassa os documentos, dos quais sempre “podemos duvidar (se era para filme, tem truque de cinema)” (VIEIRA, 2009, p. 13); onde a vida vivida deve ser contemplada se se quiser alcançar a realidade da guerra se mostrando como ela é; onde se podem contemplar as “valerosas vidas” ou as “exemplares mortes” de cada combatente para apreender uma nova forma de conhecer o “quissoco nosso o da luta de libertação”, que está além do visível e cuja compreensão, ao mesmo tempo, ofusca e ilumina; que é, ele mesmo, lugar da poesia, “fidedigno, sagrado: uma poesia, letra de absoluta verdade”, já que as vidas dos guerrilheiros são “águas profundas”, palavras de poetas, “e mesmo se dão de transbordar, é para fazer capopas onde que pode se beber a sabedoria.” (VIEIRA, 2009, p. 13). Afinal, cada vida colocará o leitor em contato com um tempo marcado pela resistência às violências de ordem racial e social, decorrentes do processo colonial e da guerra pela independência. Por isso, o conhecimento da autoria do poema em que o narrador se baseia para contar a história dos guerrilheiros não é um fato relevante, já que, para ele, o conteúdo da poesia expressa, antes de mais nada, a dor de um eu que luta e sofre pela independência, e que poderia ser de “Qualquer um quanzista, camarada saudoso de seu rio, agarrado no frio de sua AK-47, nas noites planaltenhas plenas de pirilampos que o sono faz no negrume da noite alta?” (VIEIRA, 2009, p. 15).

Assim, o narrador recolhe os restos, os cacos, os detritos da história, movido, para além da pobreza, sua e dos guerrilheiros, pelo desejo de não deixar nada se perder. Esse desejo faz com que, além dos textos já mencionados acima, o narrador reúna uma profusão de referências intertextuais que evocam tanto a tradição oral da cultura angolana quanto uma tradição ocidental de escrita à qual a própria produção literária angolana já se mostra integrada e que reverbera no texto através das notas explicativas das narrativas de Kene Vua, de diálogos com a obra do próprio Luandino Vieira e também com a de outros escritores angolanos. Essa atitude marca a condição de testemunha assumida pelo narrador, que, por meio da escrita, transmite ao leitor sua própria história, as histórias das vidas de seus colegas guerrilheiros e a da guerra pela libertação de Angola, cumprindo a missão que se impõe de retornar ao passado de forma reflexiva. Não por acaso, as descrições da guerra serão feitas a partir da evidência dos destroços que ela deixa, como se pode verificar abaixo:

– Atacávamos os tugas, os tugas nos atacavam. É só miséria, a guerra. Primeiro incendiaram as sanzalas, de avião. Depois a fome, tivemos de abandonar lavras e sanzalas. Até mesmo jingamba e isadi e jingondo comemos. Palmito, semente de café, papaia verde. Então a orientação foi de fazer as lavas na própria mata, jinguba, batata-doce, milho. E os tugas vieram com seus milongos, de avião, tudo secava. Muita fome. (VIEIRA, 2009, p. 21)

Ao recolher fragmentos de textos para compor o relato de sua vida e da vida dos ex-guerrilheiros, o narrador se coloca como o narrador sucateiro de Benjamin, que apanha “aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer”. (GAGNEBIN, 2006, p. 54). Os elementos que ele recolhe são o sofrimento da guerra colonial experimentado por “aqueles que não têm nome”, os representantes da massa anônima do povo angolano que restou no front “tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste – aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus nomes” (GAGNEBIN, 2006, p. 54). Como testemunha, a fidelidade do narrador será aos mortos, conforme ele mesmo afirma:

Quando, às vezes, ponho diante de meus olhos aos grandes errores e tribulações, aos muitos sofrimentos que por nós passaram e vejo a figura de tantas vidas, e não menos mortes, no livro da nossa luta, pergunto saber: vivem, nossos mortos, se vivos os vejo em meus sonhos? (VIEIRA, 2009, p. 97)    

Por isso, para narrar, ele vai privilegiar a rememoração, atividade que lhe permitirá não repetir aquilo de que se lembra, mas abrir-se “aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras” (GAGNEBIN, 2006, p. 55). Sua focalização será o presente, tempo sobre o qual ele elege agir promovendo a insurgência do passado no agora por meio de um convite que dirige ao leitor para se tornar, também ele, uma testemunha que leia a narração do insuportável do outro e a leve adiante, já que “somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente”. (GAGNEBIN, 2006, p. 57).

Por meio da rememoração, o narrador busca retomar o fio da “formosura destas vidas”, reencontrar uma maneira de tecê-lo, mas sem aventurar-se a uma tentativa de encontro bem-aventurado e utópico com o passado da guerrilha. Antes, como testemunha que assume a fidelidade com os mortos, o narrador, ao contar, proporá uma nova relação com a morte e com o morrer. Nessa relação ele marcará, a todo o tempo, seu espaço de fala, a saber, o espaço solapado das identidades em migalhas de cada ex-guerrilheiro, espaço que é, também, o da sua própria identidade em migalhas no momento em que rememora:

E se duvido mais, sendo eu mesmo ex-guerrilheiro Kene Vua, é porque essa nossa luta de libertação estava assim como um sonho – sonho onde que nos sonharam todos no sonho de cada qual. Sonho nosso era de uma onça ferida, perseguindo teimosamente seu trilho de muitos séculos, por matas e morros demarcados a sangue e luta. Uma onça orgulhosa de seu território, suas jinbumbas de caça; e nós, barrigas nuas e vazias, simples pintas de sua pele mosqueada. (VIEIRA, 2009, p. 97)

A imagem da onça seguindo seus trilhos de caça com as sete pintas principais de sua pele, que aparece abrindo a narrativa da vida de Kene Vua, mais do que sugerir o retorno a uma identidade angolana miticamente projetada como unificada, que pudesse funcionar como marca de afirmação identitária, inscreve no texto a fragmentação das identidades dos guerrilheiros, e do narrador. Isso porque as sete pintas principais de sua pele ilustram a condição dos guerrilheiros do grupo de Ndiki Ndia em sua peregrinação por “rios e vaus”, assim como a condição da própria nação, que também anda em círculos num percurso que não tem começo nem fim. Ao final do relato, essa travessia somente trará à voz narrativa a constatação de sua miséria:

Agora sim, posso apagar meu desenho, final. E, por isso mesmo, fechar meus olhos, dormir, esquecer – quem sabe? – morrer.
Assim foi que fomos homens: guerrilheiros; assim foi que ficámos – ossos dispersos. (VIEIRA, 2009, p. 106)  

Dessa condição em que ser homem é ser guerrilheiro, ossos dispersos, negação, que anuncia a impossibilidade de narrar, o narrador emergirá comunicando ao leitor sua desorientação para trazer, distorcidas, invertidas, as qualidades do narrador tradicional: não interferência na narrativa, não pretensão de originalidade, neutralidade, tentativa de se fazer esquecer (GAGNEBIN, 2011, p. 66). Sem pretender superar esta condição, antes, ao contrário, persistindo “no avesso desse nada” (GAGNEBIN, 2011, p. 68), o narrador vai redimir os anônimos, os mortos, numa espécie de “domesticação dolorosa do nada” (GAGNEBIN, 2011, p. 68) que levará o leitor a conviver com o esquecimento e os esquecidos que são cada um dos cinco guerrilheiros, por meio da narrativa de suas histórias: Celestino Sebastião (Kakinda), Eme Makongo, Kibiaka, Zapata e Kadisu, Kizuua-Kiezabu.

Enquanto manifestações do esquecimento, cada guerrilheiro é também testemunha de um mundo de violências de várias ordens, embora todas atravessadas pelo preconceito racial e social decorrente do processo colonial. Mundo que o presente angolano não consegue integrar e que surge como uma ameaça, já que teve que ser esquecido, recalcado. Ao mesmo tempo, a história de cada guerrilheiro é a possibilidade única de fazer o caminho inverso, de acessar esse mundo. Por isso, ao colocar o leitor em contato com as vidas desses guerrilheiros, o narrador redime o passado e inclui, no presente, o recalcado e o esquecido.

A explicação para a necessidade de voltar ao passado, de redimir o esquecido, também é encenada pelo narrador por meio da história de Kizuua-Kiezabu, o general Kimbalanganza, único ex-guerrilheiro do grupo que ainda está vivo. Pode-se, então, perguntar se estando ele ainda vivo, como a narrativa integraria essa fidelidade aos mortos assumida pelo narrador quando testemunha as histórias dos ex-guerrilheiros.

Uma resposta possível pode ser encontrada na retomada que o narrador faz, na história do general Kimbalanganza, de outra narrativa angolana, conforme nos informa Luiz Maria Veiga (2009): o romance Rioseco, de Manuel Rui, publicado em 1997. Essa retomada acontece em uma referência explícita ao escritor Manuel Rui, feita pelo narrador quando assim se manifesta: “Na praia, onde que abiquei, o tal escritor meu amigo, o Manuel Rui, estava em calma muzonga com Ti Emílio, nosso cabo-do-mar mas general de seus amigos.” (VIEIRA, 2009, p. 93). A referência ao escritor Manuel Rui dentro da história do general Kimbalanganza não é gratuita. Ela decorre da maneira como o narrador encaminha a construção da história do general, que vale a pena retomar aqui.

O título do capítulo é “Kizuua-Kiezabu, nosso general Kimbalanganza”. Nele já se anuncia o desdobramento da identidade da personagem, numa noção de percurso definida por sua história de vida e de envolvimento com a guerrilha. O narrador nos informa que a personagem nasce Job João Gaspar, filho mais novo da família de Marcos Gaspar, assimilado, “um homem tímido mas muito trabalhador, temeroso de Deus e das autoridades portuguesas” (VIEIRA, 2009, p. 81). Durante as investidas coloniais contra o movimento guerrilheiro, entre os anos de 1959 e 1961, muitos angolanos foram mortos ou acusados de traição por envolvimento com a luta pela libertação, como é o caso de Marcos Gaspar. Numa das investidas coloniais, ocorrida no mês de março de 1961, as milícias desarmadas, simulando uma atitude pacífica, convocam os assimilados, “todos os que sabiam ler e escrever, católicos e protestantes, para uma reunião de esclarecimento e recrutamento na igreja de São Roque, numa sanzala da roda da Companhia, Ndala-Ngênji.” (VIEIRA, 2008, p. 84). Marcos Gaspar dirige-se à igreja com a certeza de que poderia declarar-se inocente. Porém, o que se passa na igreja marcará para sempre a vida de Job João, como se vê na seguinte passagem:

Era a igreja de Ndala-Ngênji uma cubata humílima, de taipa-da-terra e capim por cobertura, afagado o barro à mão húmida, e caiada. Dedicada a São Roque mas sem imagem. E quanto todos lá dentro, as portas foram pregadas e das matas saíram os outros milícias com suas carabinas e caçadeiras. Ardeu a igreja entre tiros e gritos, os ecos para sempre no coração do povo em fuga. Veio um catrapila, depois; mobilizou a terra com riper e balde, a lâmina empurrou para o esquecimento o quanto era cinzas e ossos. Raziaram o terreno; a sanzala; tudo. Ninguém nunca mais mora lá, ainda. (VIEIRA, 2009, p. 86)

A sequência de eventos traz, para a vida de Job João, a morte por fome da mãe, Dona Isabel Gaspar, e da cunhada, Rute; a morte da irmã Judite por afogamento em uma tentativa de fuga; e a separação da irmã mais nova, Kilulu, levada, aos gritos, pelos tugas, que lhe incendeiam o quimbo.  Sua alegria nesses tempos acontece apenas com a notícia da morte heroica de seu irmão Jacob Gaspar, lutando num combate pela recuperação de armamentos, pelos guerrilheiros. Essa sequência de mortes define sua entrada para a guerra pela libertação de Angola do colonialismo como o guerrilheiro Kizuua Kiezabu. No entanto, no presente da narrativa, ou seja, vinte anos depois da missão no Kalongololo, o narrador anuncia seu reencontro com o companheiro de luta em circunstâncias bem diferentes, já que, agora, ele assumiu uma nova identidade: é o general Kimbalanganza, conforme nos informa o narrador:

Era outra vez, era outro homem. O nome dele era Job João Gaspar, o ex-guerrilheiro Kizuua Kiezabu. Já tinha sido comandante, muito antes de lhe enviarem no estrangeiro. Voltou nosso general, o nome era Kimbalanganza. Era rico e vivia em muitas casas: na cidade, nos subúrbios; nas ilhas; só não aceitava de formar quimbo, com família. (VIEIRA, 2009, p. 89)

O encontro acontece “era na ilha do Mussulo”, numa “casa branca e tão grande que tinha quintal de mar.” (VIEIRA, 2009, p. 89). O iate do general, grande e branco como a casa, perseguia e aprisionava qualquer “chata, dongo, canoa, tudo que flutuava com gente” (VIEIRA, 2009, p. 89) que passasse nas águas de “sua” praia. Além disso, aceitou uma família de refugiados do Sul “para guardar na casa dele, quintal de mar e horta de coqueiros. E mandou pôr avisos pregados nos troncos dos paus, caveira-vermelha de terreno minado.” (VIEIRA, 2009, p. 89).

No encontro, é o ex-guerrilheiro Kene Vua quem mira de frente, enquanto ximbica sua chata pelo “quintal do mar alheio” (VIEIRA, 2009, p. 90), o ex-guerrilheiro Kizuua Kiezabu, agora general Kimbalanganza, a bordo de seu iate. Esse encontro é marcado pelo diálogo que se lê abaixo:

– Não tens vergonha de andar numa chata?!...
– Tenho! – disse eu. – Mas é pró camarada general andar de iate. Senão, não dava!... O mar não cabia para os dois...
E então, o general Kimbalanganza, quando ouviu estas palavras, pôs uma sua má caradura mas entristeceu. Falou, quase calado, e eu senti que também ele não gostava ser nosso general, naquela hora:
– Kene Vua, meu kamba! Podes me tratar por tu... tuala kumoxi!... [Estamos juntos!...]
Mas não misturados...” – pensei eu de atrever-lhe umas respostas dum camarada, um mulato sangazulo, escritor e meu amigo. (VIEIRA, 2009, p. 92)    

Como nos mostra Luiz Maria Veiga (2009), o diálogo remete a uma reflexão da personagem Noíto, do romance Rioseco, de Manuel Rui, que também se passa no Mussulo. Em sua reflexão, Noíto fala sobre a condição em que se encontra um antigo comandante guerrilheiro, dizendo que “Deve estar muito rico. Afinal, lutámos para ele ficar rico. Se calhar não podiam ficar todos. É por isso. Uns ficaram ricos, outros ficaram pobres e sem pernas.” (RUI, 1997, p. 335).

A fim de compreender a relação proposta pelo narrador entre a história do general Kimbalanganza e a da personagem Noíto, vale a pena visitarmos a obra Rioseco (1997), de Manuel Rui, com atenção para o contexto ao qual ela se refere. O enredo do romance conta a estória de um casal de velhos fugitivos da guerra civil angolana, Noíto e Zacaria. Noíto pertence à etnia Umbundo, natural do Huambo, “uma terra muito rica onde não faltava nada, antes da guerra. Milho, carne, tudo.” (RUI, 1997, p. 73). Zacaria pertence ao povo Tchokwué, natural do Kubango. Ambos se conhecem no Sul de Angola. Ao longo da narrativa acompanhamos sua fuga da guerra fratricida que assola o território angolano para uma nova terra, cercada pela água salgada. Noíto e Zacaria são encaminhados pela personagem Mateus, para a ilha do Mussulo, onde este vivia. A família de Mateus auxilia os refugiados na nova vida de ilhéus que eles pretendem abraçar enquanto vivem entre o continente, seu espaço de origem, e a ilha, seu destino como refugiados de guerra.

Ao longo de toda a narrativa, os ilhéus assistem, da ilha, aos impactos da guerra civil sobre o continente. Impossibilitados de escapar totalmente desses impactos, eles convivem com vários contrastes: se, por um lado, conseguem estabelecer uma relação harmônica entre o ser humano e a natureza, por outro nada podem fazer em relação às apropriações indevidas de partes da ilha realizadas pelos políticos e ao desequilíbrio ambiental que elas promovem; se preservam, entre si, práticas culturais tradicionais, convivem, a todo o tempo, com a tentativa de descaracterização de sua cultura, promovida pelas autoridades políticas do continente, envolvidas com um discurso modernizador, mas não inclusivo; se conseguem estabelecer uma ética de convivência que lhes permita viver com as diferentes etnias que aportam na ilha fugidas da guerra, não escapam à corrupção que domina o continente, e que pesa sobre eles nas situações mais corriqueiras, como a da comercialização de alimentos. Todas as situações de desrespeito, desequilíbrio e corrupção vivenciadas pelos ilhéus resultam de seu contato com o governo angolano. A elas, Noíto responde, sempre, com uma gargalhada.

É o que vemos, por exemplo, no episódio em que Noíto vai com Mateus ao continente comprar alimentos pela primeira vez. Ao chegar à Loja do Povo, Noíto não consegue comprar seus alimentos porque não tem cartão de despesa. Enquanto Mateus é atendido na Loja, Noíto pergunta ao atendente se ele poderia vender-lhe um cartão de despesa. O atendente, um negro, tratando-a de maneira ríspida por identificar nela a condição de refugiada, informa-lhe que a Loja do Povo era um estabelecimento comercial criado pelo estado para subsidiar alimentos apenas para os pescadores locais. Sugere-lhe que, caso ela desejasse adquirir alimentos, deveria dirigir-se à comuna para conseguir um cartão de pescador. Noíto responde-lhe que seu marido não era pescador, mas carpinteiro, motivo pelo qual ela não poderia adquirir o cartão, pois não podia mentir sobre a profissão de Zacaria. O atendente, então, insultando-a, afirma que a estava ensinando a falsificar uma situação, ensinamento que ela recusa com veemência e a faz dirigir-se à Loja do Sr. Pinto, com quem tem o seguinte diálogo:

O meu marido é trabalhador. Concerta (sic) tudo de carpintaria e faz mesmo novo. Nós somos do mato, como falam aqui, mas também comemos. E gostamos muito de trabalhar. Então, meu filho, tens de aviar despesa.
Mas, porque é que não vão na comuna, com um esquema, para vos passarem um cartão de pescador?
Porque isso é mentira. O meu marido não é pescador. É carpinteiro. (…) Se andam a mentir nesses cartões do estado não é bom. Nem eu e o meu marido íamos engolir comida vendia com mentira. (…)

Só pela tua honestidade e sinceridade, vou-te fornecer abastecimento. (…). (RUI, 1997, p. 128-129)   

No diálogo entre Noíto e o Sr. Pinto vemos a postura crítica da personagem em relação à corrupção, às diferenças étnicas e à falta de acolhimento, pelo governo, dos deslocados de guerra. Sua reação final à situação, no entanto, surpreende pela firmeza que demonstra no enfrentamento das diferenças com que se depara:

Travava as lágrimas que se desprendiam em fio. Ria alto. “Sou mesmo burra. Não sou eu, é o meu coração. Há bocado estava-me a chorar de raiva e, agora que estou contente, está-me chorar também! Devia oferecer cerveja naquele do estado que ele mesmo nem deve conhecer na mãe que lhe deu. Pai nem digo. (…)” (RUI, 1997, p. 129).    

Em Noíto, o riso e as lágrimas afloram juntos. Noíto ri da incapacidade do atendente da Loja do Povo de perceber que os deslocados também fazem parte do povo angolano, independentemente de sua origem e de sua etnia; da situação política do país, que força a que os próprios angolanos incorporem a prática da corrupção como natural e, até mesmo, necessária para sua sobrevivência; mas também do fato de que sua percepção crítica sobre essa situação não lhe dá condições de modificá-la, ainda que ela opte por um comportamento diferente daquele estimulado pelos nativos. Por isso, em relação ao atendente da Loja do Povo, ela pensa que poderia “oferecer cerveja naquele do estado que ele mesmo nem deve conhecer na mãe que lhe deu”. 

Vemos que a personagem de Manuel Rui instala na narrativa Rioseco, vivendo as agruras da guerra civil angolana, faz uma dura crítica à reorganização política do país empreendida pelos antigos combatentes da guerra colonial. É em razão dessa crítica que o narrador, em O livro dos guerrilheiros, retoma a reflexão de Noíto na história da vida do general Kimbalaganza. A resposta de Kene Vua à afirmação “tuala kumoxi!.. [Estamos juntos!...]”, proferida pelo general, é: “Mas não misturados...”. Essa resposta revela a consciência do narrador sobre a divisão de classe que se instala no país depois da guerra civil. Revela, ainda, sua consciência crítica em face das divisões que justificaram as duas guerras que devastaram o espaço angolano. Ao retomar a reflexão crítica da personagem Noíto no presente do romance O livro dos guerrilheiros, o narrador redime do esquecimento não apenas as ruínas e os destroços da guerra colonial, mas também os da guerra civil.

Nesse sentido, sua opção por contar a história do general Kimbalanganza, que ainda está vivo, junto com a história dos outros ex-guerrilheiros mortos, pode ser pensada como efeito de sua intenção ética de fazer uma advertência ao presente: como guerrilheiro, Kizuua Kiezabu teria realmente morrido, juntamente com seu ideal de luta pela liberdade do povo angolano; em seu lugar, o general Kimbalanganza espelha, no presente, uma Angola que precisa mergulhar em si mesma para buscar uma maneira de lidar com as alternâncias que sua própria história lhe impõe.

Contar a história do general significa refletir sobre o passado, o presente e o futuro, dar um testemunho que precisa ser passado: “É que as lições da vida têm de ser sempre passadas a limpo, só nossa morte é quem pode ficar em rascunho.” (VIEIRA, 2009, p. 94). Assim, a narrativa de Kene Vua-Kapapa, dizendo com Shoshana Felman, nos instrui “sobre as formas pelas quais o testemunho se tornou uma modalidade crucial de nossa relação com os acontecimentos de nosso tempo.” (FELMAN apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 87). Como testemunho, essa escrita incorpora o passado dentro de uma memória voltada para o futuro, a qual possibilita uma narração que põe em perspectiva a história, a fim de permitir o encontro do sujeito consigo e com o outro.

Elaborando seu testemunho como uma escrita de si, o narrador se institui como um sujeito reflexivo, que conta sua história e a dos guerrilheiros imbuído de um valor ético que envolve um compromisso consigo mesmo, com o outro e com a história. Esse compromisso o leva a falar sobre si reconstruindo-se nesse processo; estabelecer uma relação com seu interlocutor, buscando agir sobre ele; e refletir sobre a história das guerras angolanas, a fim de evitar que elas se repitam.   

Referências

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_________. O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernadini. São Paulo: Hucitec, 1993, p. 71-163.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sério Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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Notas

[1] Moreira, T. T. (2019). Escrita e testemunho em ’O livro dos guerrilheiros’, de Luandino Vieira. Abril – NEPA / UFF11(22), 27-38. https://doi.org/10.22409/abriluff.v11i22.29980.

* Terezinha Taborda Moreira é Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. Pesquisadora CNPq-Nível 2. Este trabalho é parte das reflexões desenvolvidas no âmbito do Projeto de Pesquisa “Linguagem e trauma na escrita literária angolana”, com o apoio do CNPq. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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