Luandino Vieira e a liberdade de criar1

Maria Nazareth Soares Fonseca*

Resumo

O texto retoma o episódio da censura imposta pelo governo de Antônio Salazar ao livro Luuanda, do escritor angolano Luandino Vieira, em 1965 e, a partir deste evento, reflete sobre as estratégias narrativas presentes no romance  João Véncio: os seus amores, para defender a ideia de que o romance reporta aos motivos da censura ao livro Luuanda, porque legitima inovações significativas no campo da linguagem.

Palavras-chave: José Luandino Vieira.  João Véncio: os seus amores. Transgressões; Inovações de linguagem.

Abstract

This paper revisits the episode of censorship imposed by the government of Antonio Salazar on the book Luuanda of Luandino Vieira in 1965. Therefore, taking this event as a starting point, this paper reflects on the narrative strategies present in the novel of João Véncio: os seus amores, defending the idea that this novel relates to the motives of the reproach to the book Luuanda because it legitimizes significant innovations in the language field.

Keywords: José Luandino Vieira.  João Véncio: os seus amores. Transgressions; language innovations.

Este texto2 se inicia com a resposta que o escritor angolano Luandino Vieira, de Angola, deu ao seu entrevistador Michel Laban (1940 - 2008), em encontro realizado no dia 06 de abril de 1977. A entrevista foi publicada no ano de 19803 junto com outras e com vários estudos sobre a obra do escritor angolano. Naquela entrevista, podem ser encontrados alguns dos motivos utilizados pelo governo de Antônio Salazar, em 1965, para anular o prêmio concedido ao livro Luuanda, quando Luandino Vieira já estava detido na Prisão do Tarrafal, em Cabo Verde.

À pergunta de Michel Laban: “Quais foram as influências, os contatos que teve com a literatura brasileira?”, Luandino Vieira respondeu:

De início, essa literatura [a brasileira] influenciou-me. Os escritores do nordeste, sobretudo Jorge Amado, influenciaram-me. Mas comecei pelos naturalistas portugueses (...). Eça de Queiroz  chegou a influenciar-me até aos dezoito anos. Depois os neo-realistas portugueses. (...) Mas Jorge Amado me influenciou (...), Gorki, Yurgueniev, Gogol, os russos. Mas depois, quando eu já estava na cadeia e já tinha escrito Luuanda, o Doutor Eugênio Ferreira (...) mandou para a cadeia um livro que se chamava Sagarana. (...) Era o Sagarana de João Guimarães Rosa, que eu li uns meses mais tarde. E então aquilo foi para mim uma revelação. Eu já sentia que era necessário aproveitar literariamente o instrumento falado dos personagens, que eram aqueles que eu conhecia, que refletiam – no meu ponto de vista – os verdadeiros personagens a por na literatura angolana. Eu só não tinha ainda encontrado era o caminho. Eu sabia qual não era o caminho (...), que o registro naturalista de uma linguagem era um processo, mas que não valia a pena esse processo porque, com certeza que um gravador fazia melhor que eu. Eu só não tinha percebido ainda, e foi isso que João Guimarães Rosa me ensinou, é que um escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não seja a que seus personagens utilizam: um homólogo dessas personagens, dessa linguagem deles (LABAN, 1980, p. 26, 27).

 A resposta dada a Michel Laban por Luandino Vieira elenca os diferentes escritores que o influenciaram, destacando o encantamento com a obra Sagarana, de Guimarães Rosa. É de se perguntar que relação poderia ser estabelecida entre a resposta de Luandino Vieira à pergunta feita por Michel Laban e os motivos que justificaram a censura ao seu livro Luuanda, em Portugal, no ano de 1965. O caso é que a interdição do livro transforma os escritores citados por Luandino Vieira, na entrevista,  inclusive Guimarães Rosa, em cúmplices do escritor angolano, porque o estilo dos contos do livro Luuanda e as estratégias de resistência neles construídas revelam uma característica da escrita de Luandino Vieira, acentuada na entrevista a Michel Laban: a liberdade de criar uma “sintaxe nova, inusitada, diferente”4, estratégia que se mostra na  proposta inventiva de Luuanda, no modo como as narrativas são articuladas e na maneira como as personagens assumem a linguagem dos musseques luandenses. Um modo de escrita que retoma estratégias presentes em textos dos escritores mencionados por ele em seu depoimento a Michel Laban.

Para se entender melhor a interdição do livro Luuanda, de Luandino Vieira, que fora preso “por atitudes consideradas contrárias aos interesses da metrópole” (Chaves, 2006)5, considere-se a repercussão da condenação do livro, a partir de notícia de jornal, publicada em Portugal, no dia 21 de maio de 1965:

Fatos da maior gravidade estão a ensombrar uma vez mais os horizontes, já de si sombrios, da cultura portuguesa. Na sequência da atribuição do Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores ao Livro LUUANDA, da autoria de Luandino Vieira, atualmente encarcerado no campo de concentração do Tarrafal, o ministro Galvão Teles decretou a extinção da mesma sociedade. À hora em que essa arbitrária decisão ministerial foi ditada ao público através da rádio e televisão, a Sociedade Portuguesa de Escritores foi assaltada por 50 “desconhecidos” que destruíram todo o seu conteúdo.

No dia seguinte, 22 de maio de 1965, quatro membros do júri, os escritores Manuel da Fonseca, Augusto Abelaira, João Gaspar Simões e Fernanda Botelho, foram chamados à sede da PIDE onde foram interrogados durante todo o sábado, tendo ficado presos para averiguação Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira, sem qualquer culpa formada. (Diário da Liberdade, 21/05/1965).

A atitude do governo Salazar, que culminou com a extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores e com a prisão de vários de seus membros, decorreu da ousadia de Luandino Vieira de expor, nos contos de  Luuanda, escritos no pavilhão prisional da PIDE em São Paulo, Luanda, durante o ano de 1963, um estilo profundamente criativo. Vazados em linguagem que “torce e retorce a língua portuguesa”6, os contos assumem  o dia-a-dia de habitantes dos musseques, as agruras de indivíduos que faziam funcionar a  Máquina Colonial, sem perderem a capacidade de sonhar. A sagacidade do escritor angolano semeia, nessas histórias de indivíduos “apanhados na dura experiência da fome e da necessidade de organizar modos de sobrevivência” (CHAVES, 2006), atitudes que desconcertam a previsibilidade do funcionamento do sistema colonial, atordoado pela luta dos angolanos pela liberdade desde 1961. 

Embora essas estratégias de subversão tenham certamente motivado a interdição do livro Luuanda, Luandino Vieira continuou a utilizá-las em outros livros nos quais é visível a intenção de compor entrelaçamentos entre escrita e oralidade. Tal processo de escrita radicaliza-se em vários outros livros, como nas estórias de No antigamente da vida, publicado apenas em 1974, e, particularmente, no romance João Vêncio: os seus amores, publicado em 1979, depois da independência de Angola.

Observemos algumas das peculiaridades do trabalho de escrita do romance, João Vêncio: os seus amores, que se mostram, particularmente, na sagacidade de um narrador que se empenha em responder/explicar os motivos do crime que o levaram à prisão. Acusado de homicídio, de homicídio frustrado, é bem verdade, pois a vítima continuou a encantar os leitores nas cenas em que ressurge, o narrador-protagonista é, sem dúvida, uma criação bem interessante. A motivação do crime praticado pela personagem incentiva o diálogo entre ela e o seu interlocutor, nomeado apenas como “muadié” e construído imagética e textualmente pelas respostas que lhe dá o narrador em várias passagens do romance. As respostas do protagonista ao muadié permitem ao leitor ir delineando um perfil desse interlocutor que, nem sempre, assegura uma dedução convincente, seguindo a estratégia de um romance que lida sempre com ambiguidades e sentidos deslocados O discurso de João Vêncio entretece-se com modulações da oralidade e com a incorporação de outros discursos, estratégia com que o autor procura dar conta da “fragmentação do homem do mundo colonial” (VIEIRA, 1987, p. 54). Surpreendido num emaranhado de discursos, o leitor se vê obrigado a vagar em direções várias, seguindo as muitas pistas que o texto aponta.

É importante apresentar as várias faces de João Vêncio, aliás, Juvêncio Plínio do Amaral, João Capitão, Francisco do Espírito Santo, ou ainda, "Aliás", na expressão de um juiz, atordoado pelos múltiplos disfarces de que se vale o protagonista.  João Vêncio, como um astuto jogador, gosta de mudar de nome, de derrubar fronteiras e expurgar hierarquias:

Eu gosto muito de mudar de nome. Eu penso que gosto é de mudar de vida. Eu não posso viver muito tempo na mesma casa, na mesma rua, no mesmo sitio. Sempre mudo o meu quarto de dormir - cacimbo e chuvas. Sempre mudo as mobílias da casa. Uso e desuso bigode” (...) E mudo a cor do cabelo. (VIEIRA,1987, p. 39).

Acusado de crime premeditado, a personagem João Vêncio, ao falar ao muadiê, tenta retomar as histórias dos seus muitos amores, transitando pelos sonoros caminhos do “quimbundo de bailundo” (VIEIRA,1987, p. 16) e pela multiplicidade dos discursos que tecem a narrativa com recursos muito  criativos. Traços dessa criatividade são acentuados pelo uso da ironia que pontua situações inusitadas como a da dificuldade de se rotular o crime cometido pelo prisioneiro: “tentativa premeditada de homicídio frustrado (...), tentativa de homicídio frustrado, isto é, premeditada tentativa de homicídio” (VIEIRA,1987, p. 14). O habilidoso João Vêncio apresenta-se ao leitor em  encruzilhadas de signos, em ponto de convergência dos muitos discursos que podem ser percebidos, por exemplo, quando o protagonista, tentando explicar ao muadiê quem é ele, o faz explicitando as muitas vozes que se anunciam em sua fala:

Banza-o o léxico, o patuá? Eu já lhe dei o mote: meus tribunais, a Bíblia, mas o etcétera é que explica a regra: padre sô Viêra, do Seminário. Ele mesmo me abriu as orelhas. Ele assoprou-me o vento dos latins. (...)  Eu, depois, só queria o rosa-rosis, o galo-bélico. (...) E depois meu musseque, as mil cores de gentes, mil vozes - eu gramo dos putos  ‘verdianos, palavrinha tchêu! (VIEIRA,1987, p. 40-41- Grifos acrescentados.)

O dito criminoso João Vêncio utiliza uma linguagem sinuosa, ambígua, hermética, por vezes. Sua fala concretiza a transgressão operada pelo estilo do escritor, Luandino Veira, quando retoma, no romance, estórias contadas por um marinheiro, em prisão de Luanda. Mais tarde, já na prisão do Tarrafal, em Cabo Verde, cria o romance motivado pelas  conversas ouvidas anos e anos antes, procurando preservar o “extraordinário tom poético” que ele, Luandino Vieira, percebia nelas, como afirma a Michel Laban, na entrevista datada de abril de 1977. Nesse sentido, o romance João Véncio: os seus amores pode ser lido como um reservatório de memórias, de histórias ouvidas e guardadas e como  registro das marcas da angolanização da língua portuguesa pela “adoção de gírias, neologizações, tipicismos e outros recursos orais e tradicionais africanos” (LARANJEIRA, 1995, p. 121).

Na enunciação literária do romance, a escrita, astutamente, tenta fugir das grades da kionga, da prisão da língua herdada da colonização, seguindo o desejo de se espraiar pelo gozo de uma língua outra que se estrutura com a força da oralidade e de indagações sobre a vida: “Muadié, sente: eu estou outra vez lá no canto, o meu coração pula. A vida não é assim: o que foi torna a ser?” (VIEIRA,1987, p. 23). No desenrolar de muitas estórias contadas ao muadié, e talvez para ele mesmo, João Vêncio utiliza várias feições da língua para acentuar a resistência produzida por uma literatura que busca, na oralidade e nas andanças pelos espaços dos musseques, apaziguar sua sede de belezices:

Muadié: eu vejo o que o senhor está a ver – os claros verdes das folhas xaxualhantes das figueiras-da-índia. Os periquitos de cem cores, do Roçadas vieram, são dos guardas, a beleza deles ali ciscando, descuidadosos. (VIEIRA,1987, p. 88)

O romance de Luandino, calcado em estórias arrebanhadas por ele na prisão e em sua vivência nos musseques de Luanda, pode ser entendido como uma estratégia de solapagem e de desarticulação que fortalece os encontros da língua portuguesa com o kimbundo, mas também com o inglês, espanhol, latim, línguas que  povoam a memória da personagem João Vêncio, acionando as heranças várias que corporificam uma linguagem mesclada e que alude ao homem do mundo colonial, dividido entre dois mundos.

Por essa estratégia criativa, o romance se faz como um "colar de cores amigadas" (VIEIRA,1987, p. 13), como um projeto interlocutório que estrutura sua a intenção dialógica e dialogal. As respostas e explicações de João Vêncio ao seu suposto interlocutor, o Muadié, costuram lembranças e fragmentos de memória dos vários amores que marcaram a vida desse falante contumaz. Ao insistir em se revelar ao seu interlocutor, João Vêncio acentua a intenção de desconstruir as imagens com que os “doutoros delegados e a curibeca toda” (VIEIRA,1987, p. 74) o etiquetaram.

É sintomático, por isso, que o narrador, mesmo estando na prisão, na kionga, construa um relato marcado por visualidades, por histórias de “amor, namoro, amoro, namor, cupidos de flechas” (VIEIRA,1987, p. 76) iluminadas por imagens de sua terra, pelas sonoridades que identificam o universo da fala e também do canto. É também sintomático que o protagonista do romance procure estabelecer com o seu interlocutor um tipo de contrato que marca a relação desejada entre ele e o muadié, esse outro sempre referido, sempre desejado: “tem a quinda, tem a missanga. (...). Por isso, aceito a sua ajuda. Acamaradamos. Dou o fio, o camarada companheiro dá a missanga”. (VIEIRA,1987, p. 13). Com essa intenção,  Luandino Vieira nos oferece um texto crispado, tecido com linhas de fuga, giros e interrogações: “Agora o mudié, me diga ainda: ser e não ser, ao mesmo tempo, pode-se?  Gostar e não gostar, dor e alegria, água e fogo?” (VIEIRA,1987, p. 31).

A tentativa de compreender leis e normas que o condenam, lidar com artigos, alíneas, seções, proibições passa, na fala de João Vêncio, pelos afetos, pelos muitos amores que transitam pelas modulações de sua voz, escorando-se provisoriamente na decisão de se fazer entendido:  “O muadié é minha memória - nas surpresas dá no vinte”( VIEIRA,1987, p. 26). Ao mesmo tempo em que se lança no passado, nele se perde, pois o lugar que ocupa na kionga o faz distanciar-se de si mesmo, porque o passado se torna uma falsa ancoragem, um porto deveras enganoso. Querendo-se inteiro, João Vêncio se anuncia os outros de si mesmo. Ora se vê “de nascimento branco, cruzado” (VIEIRA,1987, p. 17), ora “de nascimento, negro, cruzado” (VIEIRA,1987, p. 23), misturado, mestiço, sempre buscando rasurar as imagens de si construídas pelos outros, o mudié, os homens da lei, “os putos do tribunal” (VIEIRA,1987, p. 28) que o acusam.

Na construção de sua narrativa, exibem-se cacos que não podem ser inteiramente colados e sua fala remete a incompletudes e a dilacerações, sempre em descompasso com o discurso da ordem vigente. Vêncio conta suas histórias, assumindo timbres do canto, o calor das conversas, valendo-se de um registro que estranha o gesto autoritário da lei. Por isso, ainda que assuma como verdadeira a  intenção de “matar a (...) barona a sangue-frio” (VIEIRA,1987, p. 15), e a de ter parido suas vinganças num “fogozinho muito doce” (VIEIRA,1987, p. 17),  não consegue evitar o sofrimento que as lembranças lhe trazem, o fel que se mistura ao doce do amor com que desenha o mapa ondulante do musseque, os  lugares e as paisagens, em toda a sua desigualdade (BERGER, apud Soya, 1993, p.31). Nesse mapa, o crime frustrado faz-se metáfora do assassinato coletivo de gente igual a ele, habitantes de casas de pau-a-pique, nos musseques do antigamente, em Luanda.

De certa forma, é possível afirmar que a reelaboração de memórias que delineiam a identidade angolana está também em outros textos de Luandino Vieira, sempre de forma inusitada, pois foge da fixação narcísica no passado ancestral e abre-se ao outro, como em João Vêncio, tentando ressaltar os traços culturais do país e, ao mesmo tempo, ratifica a impossibilidade de certezas ainda que provisórias: “A vida é muito incompleta. Eu, se pudesse, era minha cruzada: cada dia, cada via; cada vida, cada lida. Gostava era inda de ser outro novo cada vez” (VIEIRA,1987, p. 40).

Um ritual de desindividuação do sujeito e do lugar da enunciação de seu discurso está, portanto, em João Vêncio, apontando para o desmanche dos sentidos alocados, para a pulverização do significante, característica de  uma língua misturada, aparentemente caótica, babélica, mas adequada às sonoridades da fala dos musseques: “ língua deles é de açúcar”, muito diversa do “puto escalavrado, helénico bacoco” (VIEIRA,1987, p. 74), usado pelos “muadiés da justiça, doutoros delegados e a curibeca toda deles”(VIEIRA,1987, p. 74), os quais etiquetaram João Véncio em determinada alínea que o condena.  

A narrativa de feição individualista, pensada como relato de um eu centrado em si mesmo, é problematizada em João Vêncio, porque esse recurso tem, no texto, mil disfarces. Por isso, como já acentuado em outro momento, não basta deslocar o "eu" ou substituí-lo pelo coletivo. O movimento que orquestra este tipo de texto e caracteriza sua feição literária não se restringe à simples permuta da voz enunciadora. O contar dos seus muitos amores que se utiliza de disfarces, de mascaramentos e simulações, parece recompor-se, para, novamente, soltar-se, valendo-se de sucessivos torneios. O desconcerto, nessa narrativa, está em desmanchar uma perspectiva individualista, mas também em impossibilitar classificações apressadas, porque os lugares de fala, no texto, marcam-se pela inquietação, pela retomada de significantes que aludem a zonas de instabilidade e que também desestabilizam o discurso de nação homogênea, harmônica, controlada (FONSECA, 1999).   

Vários recursos dessa aparente desarmonia textual caracterizam uma feição importante da literatura de Luandino Vieira, que se marca pela inscrição de sotaques africanos na língua portuguesa, pela reinvenção de língua levada à África pela colonização e lá desarrumada. As estratégias de solapagem do idioma luso ajudam a construir uma “contra-poética” que se vale da junção de elementos culturais diversificados.

A escrita ficcional de Luandino Vieira, condenada com a interdição de Luuanda em 1965, valida a estratégia de João Vêncio de expurgar hierarquias e transpor fronteiras. Como mestre de uma estratégia que “banza o léxico, o patuá”, (p. 40), e assume a mistura de “fogo e a água no seu foro”, o romance João Véncio: os seus amores permite que a gente simples, como em Luuanda, assuma a fala do “musseque, as mil cores de gentes, mil vozes” (VIEIRA,1987, p. 41).

Não é então por acaso que a astúcia do narrador procure fazer do relato de uma tentativa de crime frustrado a fruição do gozo que advém de uma língua transformada e transtornada. A fala do narrador resgata os tons da terra angolana, os muitos sons dos musseques, a gostosura do “riso d´oiro branco cangundo, mulato ribengo, negro, carvão, sem discriminâncias prosápias” (VIEIRA,1987, p. 59). O exotismo cede lugar à busca de uma escrita que se tece com múltiplos fios, com as multicoloridas contas de um colar, com a quebra da imobilidade.

Reescrevem-se nas páginas do romance João Véncio: os seus amores as muitas transgressões propostas pelo escritor desde Luuanda e em outros romances que seguem a mesma demanda do escritor: “dar-lhes [às grandes massas populares] rapidamente os instrumentos que lhes permitam usufruir todo o capital estético, literário que a humanidade já criou”. (VIEIRA, 1987, p. 36).

Notas

[1] FONSECA, Maria Nazareth Soares. Luandino Vieira e a liberdade de criar. Revista Arte 21, São Paulo, v. 3, n. 3, jul-dez, 2014.

[2] Este texto foi apresentado, em primeira versão, como palestra no Colóquio Internacional Crimes, delitos e transgressões, Faculdade de Letras da UFMG, de 3-5 de outubro de 2012. Em 2014, foi publicado na revista Arte 21, conforme indicação Nota 1.  

[3] Ver Luandino - José Luandino Vieira e a sua obra (1980). 

[4].O trecho foi retirado de texto de Rita Chaves. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12425, Acesso em 08 de 2012 e 12 de 2013.

[5].  Extraído do texto da Profa. Rita Chaves, em Carta Maior, 12/12 /2006,

[6]  -Ver nota 3.

Referências

BERGER, John. And our faces, my heart, brief as photos.  Nova York: Pantheon Books, 1984.

CHAVES, Rita. Luuanda e Luandino: personagens de muitas estórias na História de Angola. In: Carta Maior, 05/10/2006.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Imagens de nação em afrodições literárias. In: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte, v. 19, n. 24, p.155-168, Jan. - jul. 1999.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Escritores africanos nas veredas rosianas. IN: PARREIRA et al. Veredas de Rosa. Belo Horizonte: Editora da PUC-Minas, 2000. P. 482 –488.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Despossessão da língua do outro: Guimarães Rosa e seus comparsas africanos. In: DUARTE, Lélia Parreira. Veredas do Rosa. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2003, p. 499 - 505.

LABAN, Michel. Encontro com Luandino Vieira. IN: Angola - Encontro com escritores, v. 1. Maia (Portugal): Fundação Engenheiro António de Almeida. 1991, p. 407 - 435. 

LABAN, Michel et all. Luandino: José Luandino Vieira e sua obra (estudos, testemunhos, entrevistas). Lisboa: Edições 70, 1980.

LARANJEIRA, Pires. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p.121.

MORITZ-SCHWARCZ. Lilia. Ser peça, ser coisa: definições e especificidades da escravidão no Brasil. In:  MORITZ-SCHWARCZ. Lilia; REIS, Letícia Vidor de Sousa. São Paulo: Edusp, 1996, p. 11 - 29.

SOJA, Edward W. Geografias pós-modernas - a reafirmação do espaço na teoria social critica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Zahar Ed. 1993.

VIEIRA, Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa: Edições 70, 1987.

Site consultado

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12425.

http://avenidadaliberdade.org/index.php?content=226&co_template=10

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada UFMG. Profa. Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995-2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas desde 2010. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

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