Cenas da poesia angolana: João Maimona1

          Maria Nazareth Soares Fonseca*

Em 1988, a União de Escritores Angolanos lançou a antologia No caminho doloroso das coisas,2 considerando que o volume se constituía como uma “antologia panorâmica de jovens poetas angolanos”. No prefácio, o organizador da antologia, o poeta Lopito Feijóo, ressaltou que a coletânea mostrava ao público os caminhos trilhados pela então nova poesia e dos novos “cultores da palavra poética” (FEIJÓO, 1988, p. 11). Eram dezenove poetas, sendo alguns, na época, ainda desconhecidos de grande parte do público estrangeiro. O prefácio ressaltava os novos rumos da poesia angolana publicada no pós-independência, mais particularmente a partir dos anos 1980, e o modo como essa poesia assumia propostas de renovação temática e um aprimorado trabalho com a escrita literária.3

Os novos caminhos trilhados pela poesia de Angola eram indicados, no pequeno volume, por tendências poéticas que por vezes insistiam na retomada de preocupações e ansiedades próprias de um espaço sociocultural em tensa (re)construção ou se voltavam mais concretamente ao trabalho com a linguagem e mesmo ao experimentalismo. A produção poética apresentada pela antologia acentuava a busca de novas elaborações da inventividade poética e uma relação dinâmica com a realidade, deixando evidente, em muitos poemas, que a realidade do poema é criada por estratégias próprias do trabalho poético que se faz “com o coração na língua que lhes cabe ampliar e enriquecer” (FEIJÓO, 1988, p.12).

Experimentação e inventividade, tomadas como estratégias de construção do texto poético estão presentes em vários poemas selecionados pela antologia No caminho doloroso das coisas e muitas das características apontadas por Feijóo, no prefácio, se exibem, por exemplo, nos poemas de João Maimona, como, por exemplo, em “A Nelson Mandela” (p. 27), em que a motivação política não chega a encobrir os efeitos imagéticos que recompõem o modo afetivo de registrar, por recursos figurativos de grande efeito. Os sentidos produzidos pelo poema que ocupa a página sem se preocupar com marcações tradicionais do gênero poema, aludem a diferentes ordens discursivas para registro de uma intenção poética que não se fixa nos limites indicados pelo título nem na descrição da figura venerada.

Em outros poemas de João Maimona, selecionados para a mesma antologia, “Poema para Carlos Drummond de Andrade” e “Memória”, a oscilação entre simbolismo e circunstancialidade reforça a proposta literária desse poeta que labora as potencialidades da língua porque sabe que “escrever é um jogo” (FEIJOÓ, 1988, p. 12). Jogo com as palavras, jogo com as possibilidades de produzir sentidos, jogo com as estratégias que inscrevem no poema a “tensão dissonante” de que nos fala Friedrich (1978, p. 15), para assegurar que o poema seja o lugar da obscuridade, porque nele instalam-se estranhamentos e deformações agenciados por uma subjetividade poética.

Na amostragem propiciada pela antologia, alguns marcadores da poética de João Maimona colocam em evidência o experimentalismo, o processo de figuração construído a partir de elementos da realidade e a transfiguração de gestos e de paisagens. Tais mecanismos aproximam-se, em certo sentido, dos propósitos surrealistas que os livros do poeta publicados posteriormente viriam acentuar, indicando a inserção em vertentes poéticas conclamadas pelo poeta para construir a sua obra.

Inocência Mata (2001, p. 265) chama a atenção, com propriedade, para o fato de, na poesia de João Maimona, o trabalho com a palavra se fixar, muitas vezes, em campo semântico consolidado por “explorações de sentidos mais evocativos do que nominativos”. Esse processo faz com que o poema funcione como um impulso a operações inusitadas da escrita literária para colocar em evidência uma experiência de mundo. Essa estratégia está presente nos poemas de João Maimona selecionados pela antologia organizada por Lopito Feijóo, mas também em outros em que fatos e lembranças são conclamados para serem apresentados de forma singular.

Considere-se, nesse sentido, a epígrafe aposta ao poema “Na viagem dos cantos azulados”, do livro As abelhas do dia (AD), publicado em 1991. No poema, a memória do “pai segundo sentado no chão do dia cinzento” (p. 33) é rememorada a partir de termos alusivos ao campo semântico de morte, ainda que essa referência não se dê de forma explícita no poema. No texto, as palavras “lágrimas” e “chuva” evocam sentidos que se cristalizam em “viagem”, metáfora que, referindo-se à morte, suaviza os seus sentidos. O verbo “jazer” (“e jazem na viagem”...) ratifica a alusão ao sofrimento de que a repetição da palavra “lágrimas” em diferentes versos do poema pode ser um sintoma da tristeza que silencia o “canto”:

Não vi lágrimas maduras cobrirem o canto
Da chuva repartida no olho do dia
...................................................................
as lágrimas aqui nascem na crosta da palavra
ensinam as cores cansadas do dia cansado
e jazem na viagem dos cantos já azulados.

Em As abelhas do dia (1991), a abundância de recursos poéticos revela-se no uso de metáforas, alusões, comparações e outros recursos próprios à construção imagética de paisagens e cenários sombrios e de ações desempenhadas pelo sujeito poético. Nos versos do poema “E basta” (p. 26), a alusão a dores e sofrimentos se organiza a partir da reiteração estratégica da expressão “dias sem pássaros”, ao longo do poema, e de termos como “abismo”, “cicatrizes”, “fracturas” que funcionam como sintoma de um cenário desabitado de esperança, de ideal. 

E os dias sem pássaros
são outros dias.
suprimem a rua do ideal
nas ruas
da véspera do abismo.
 

e os dias sem pássaros
são outros dias.
 

apagam as cicatrizes
do comboio azul
oculto em fracturas
dos dias sem pássaros.
 

e os dias sem pássaros
são outros dias.
 

e basta.

A afirmação de Friedrich (1978, p. 100) de que “a poesia é um processo não nas coisas, mas na linguagem” é significativa para a leitura do poema “E basta”. Os arranjos das palavras e do ritmo e o modo como o poema explora a repetição dos versos “e os dias sem pássaros/são outros dias” procuram produzir sentidos diversos a partir dos diferentes lugares em que esses versos são colocados no poema. Esse mesmo processo é explorado no poema “Sóis alegres. Que ardem” (p. 20), no qual o primeiro verso “ardem sóis alegres e salgados” marca o efeito de estranhamento que percorre todo o poema.

O verso, reiterado no poema em referência, serve de título ao Bloco I, “E ardem sóis alegres e salgados” do livro Quando se ouvir os sinos das sementes, publicado em 1993. Nesse bloco, como já me referi anteriormente,4 a reiteração de imagens construídas a partir de significantes como “olhos”, “olhar”, “janelas”, “sol” e outros tomados como símbolo de ações do homem e de expressões da natureza, enfatiza as relações simbólicas privilegiadas por uma poética sempre em desassossego. A utilização frequente de símbolos e o tom hermético característico da poesia de Maimona desviam significados que se relacionam com dados concretos ou situações efetivas. A linguagem dos poemas busca expressar, em sua obscuridade, os intrincados caminhos por onde transita o fazer poético

No livro Idade das palavras (IP), publicado em 1997, a opção do poeta pelos poemas curtos obriga a maior economia de expressões. O poema título, “Idade das palavras”, funciona como uma epígrafe ao livro, pois nele se anunciam as estratégias inventivas do poeta. As alegorias, as metáforas, as dissimulações fazem-se mecanismos de que se vale o poeta para intensificar articulações sempre inusitadas:

inventei alegorias, palavras cobrindo
sublavras; eram metáforas quando meus
dedos cantaram o rosto de meu retrato
e concebi o lúmen atravessado por silêncios.5

Em vários poemas do mesmo livro, a insistência no ato de lavrar permite a associação entre o trabalho da escrita e a arte de cultivar a terra. A “nostalgia da lavra” faz-se mote de um trabalho que ara o chão da língua para produzir novos sentidos:

o re-escrever dentro da escrita.
definição dos signos: palavras
flexíveis desatam o cio: sou sentinela
dos signos do meu silêncio.6

O poema toma como motivação a arte de lidar com as palavras e com a instigação de signos que resvalam para a intimidade do ser. A busca de relações inusitadas faz do poema o espaço em que os signos ora remetem à dureza das pedras ora invocam as chuvas, as águas – “escutei o sonho das chuvas” (p. 64), ora salientam a beleza das flores para celebrar uma festa em contrapontos:

era noite quando da janela as flores viram a noite.
na margem do jardim o dia ardeu transparente:
foi-se o dia entre sangue e pedra: uma festa.7

Assumindo uma postura contrária à poesia reivindicativa, ainda que a herança assumida pelo poeta seja marcada pela militância de um Agostinho Neto, o poeta trabalha com significações incomuns e com recursos estéticos que desarranjam os sentidos previsíveis. Não é por acaso que o gesto de desconstruir significações esperadas mostre-se como uma espécie de perplexidade do poeta diante da palavra:

pedras descem as águas. erguem-se nos trópicos.
talvez tuas pedras sejam palavras a arder:
hás-de sentir ao pé das águas o rumor da palavra.8

Fazer poesia passa a significar então um compromisso com a palavra, com os arranjos criativos. A economia do poema permite um deliberado afastamento das coisas concretas, captadas sempre pelo olhar ora sereno ora descrente de um sujeito inclinado a escutar “o rumor das palavras” (p. 64).

Em Idade das palavras (1997), as referências a flores, água, pedra, ilhas referenciam dados concretos de uma realidade captada por sensações e percepções imaginativas que remetem a poemas de Quando se ouvir os sinos das sementes (1993) em que as referências ao mar, à noite, ao céu, às estrelas, ao sol e às folhas recortam diferentes visões de um mundo descrito através de sugestões ou evocações de paisagens em ruína. O sentimento de desolação, tão perceptível no poema “Nossas estradas” do livro Idade das palavras – “morrem por nós as pátrias/ como uma passível estação no deserto/ impassíveis aglutinam-se as estradas.” (p. 67) – reaparece em Quando se ouvir os sinos das sementes, onde as imagens de ruínas ou cenários devastados passam a ser evocadas com maior intensidade.  Os versos do poema “O que eu fiz. Nas ruas que buscam os dedos” (p. 43) reiteram sentidos ligados a desolação, abandono e sofrimento:

eu engoli as pedras e esmaguei o assobio
despedi-me dos dedos e da garganta
as ruas buscam os dedos que fervilham
no estômago já adormecido
e agora deixem-me fervilhar no vazio
entre árvores já sem folhas.

Os versos intensificam as sensações de desespero de um eu que observa um mundo sinistro e dele extrai as motivações poéticas para dar vida a imagens construídas para detalhar o sofrimento e o abandono. Percorre o poema uma visão desiludida, embora crítica, que redobra a força criativa dos versos e de construções como “engoli as pedras”, “esmaguei o assobio”, “fervilhar no vazio” . Marcadores textuais indicam a sensação de estranhamento e de abandono advinda de territórios devastados pela incerteza. Essa sensação suscita uma possível indagação sobre o lugar da poesia em espaços sufocados pela desesperança como a que se mostra, de maneira fantasmática, por vezes, nas construções de João Maimona.

No poema “Dimensão interior”, do livro Idade das palavras (1996), repete-se a constatação de que a poesia precisa despojar-se do fardo imposto pelas agruras de um tempo sombrio para recuperar os gestos e os atos que a habitam:

habita o verso nossa interdita povoação.
são tantas as pátrias destruindo o poema: lavemos
as palavras para que da memória não desista a poesia.9

 Perpassa esses versos uma visão do fazer poético que se firma no avesso daquela comprometida com ações guerreiras, no período de lutas pela independência dos países africanos de língua portuguesa. Esse novo olhar procura se desprender dos clamores da luta e impele o poeta a reorganizar os escombros que ajudam a construir o poema, num tempo desiludido de poesia. Os versos do poema “Dimensão interior” dizem da opressão que os clamores da pátria destinam ao fazer poético. O gesto ritual de “lavar as palavras” recompõe a força do verbo que a poesia recupera para permitir que, no espaço do poema, transitem novos arranjos que possam interligar diferentes realidades. O peso dos fatos que o poema recolhe, transfigurando-os, realça as sensações que advêm da retomada um passado que permanece nos vãos dos versos e da linguagem:

respiro luzes súbitas ao rés da profunda
nuvem. entre insectos que caminham com
asas minhas. onde posso escrever imagens
inertes. próximas: meu país me sobe às veias
abrindo ulteriores surtos de saudade.10

O hermetismo esgarça as relações entre as palavras e seus possíveis significados, mas ainda assim “luzes súbitas”, “núvem”, “asas” povoam os versos de levezas, permitindo que a terra natal motive novas pulsações – “meu país me sobe às veias” –  que reescrevem com outros tons a relação do eu lírico com o espaço natal.

 Em No útero da noite e Festa da monarquia, publicados em 2001, voltam a ser trabalhadas as inquietações do poeta e, principalmente, as marcas específicas do seu ofício: a dureza do significante faz com que a construção dos poemas se aproxime da arte do ourives que lapida a pedra bruta para alcançar o que nela é mais pedra, mas, ao mesmo tempo, puro esplendor.

O teórico catalão Xosé Lois Garcia, no prefácio de No útero da noite (2001), observa que, o livro, João Maimona se apropria de elementos da natureza – tal como em seus livros anteriores – e com eles elabora importantes significados simbólicos. Um exemplo desse trabalho de simbolização da palavra está – como acentua o crítico catalão – no uso que o poeta faz, em vários poemas, de palavras que podem ser agrupadas num campo semântico definido pelos sentidos de “incubação” e “germinação”.

No poema “Se com a sombra não estivesse a anunciada catástrofe”,11 a palavra “ovos” associa-se a fecundação, mas os versos, ao comporem um cenário de feição surrealista – bastante frequente na obra de João Maimona – reforçam significados que remetem à ideia de catástrofe. O sujeito poético que declara: “eu vivo nas ruas frescas homenageando as ruas do/crepúsculo” (p. 69) insiste na visão de um mundo que se revela por contradições. Se palavras como “paraíso”, “flores”, “alegria” podem reforçar a ideia expressa pelo verso “o dia pareceu-me um paraíso”, outras como “catástrofe”, “cemitério”, “deserto”, “lágrimas” acentuam a visão de um mundo sinistro já indicada no título do poema. Uma visão paradoxal exibe a alegria, a festa, também referências frequentes nos livros do poeta, sem descartar os sinais que tornam as paisagens sombrias e anunciam as das catástrofes. O paradoxo, utilizado pelo poeta como uma estratégia de estranhamento, dá força às metamorfoses e às mutações constantes do mundo perscrutado por ele.

Em “Se com a sombra não estivesse a anunciada catástrofe”, um momento de paz, imerso em alegria, está expresso nos versos da segunda estrofe: “e a natureza existe na música tão redonda dos ovos./vive um quintal cheio de flores azuis na natureza d´alegria. e/confere a cor azul ao vestuário dos cemitérios que saem à rua/para fixar o azoto das flores azuis.” (p. 69). No entanto, os mesmos versos se deixam contaminar pelos sentidos contidos em termos como “cemitérios”. Em outra estrofe, os sentidos, ligados a desarranjo, desassossego são marcados principalmente pela repetição da palavra “ovos”: “já não havia ovos./triste rua onde os ovos se entrecomeram./e na festa de catástrofes aprendia a enumerar os ovos. As/flores diziam a incubação de ovos que o crepúsculo emprazou. e as flores viajavam para a beira do quintal”.

Nos dois momentos, percebe-se uma característica fundamental da poesia de João Maimona: o modo como ele desarticula sentidos previsíveis, pois o que interessa é criar imagens, é figurar um mundo através de antíteses, alegorias, símbolos e uma abundância de metáforas. As contradições e o absurdo ficam mais evidentes com a utilização desses recursos poéticos que permitem ao poeta vasculhar o mundo com um olhar ora contaminado por profunda tristeza, ora envolvido pela beleza que brota dos escombros e de situações inusitadas.

De alguma forma percebem-se, na construção poética de João Maimona, ressaibos da visão anti-historicista de Walter Benjamin, quando retoma a figura de Klee, o Angelus Novus. Ao olhar para o passado, como a figura de Klee, retomada por Benjamin, o sujeito lírico proposto por Maimona depara-se com catástrofes, ainda que seu desejo seja também o de perscrutar a alegria que resiste nos escombros. Por isso, o que se expõe em seus poemas são sempre situações em que paira o desassossego,12 ainda que a desolação não impeça que o sonho permaneça: “Minhas mãos cultivariam letras na ilha de um domingo” (p. 70).

Alguns poemas de No útero da noite (2001) já haviam sido apresentados aos leitores em livros anteriores. É o caso, por exemplo, de “A rua contemplada in vitro”, que já aparece em Quando se ouvir os sinos das sementes, de 1993, cujos versos reforçam imagens que detalham os contornos de “uma cidade sombria” (p. 54). O desassossego, tomado como um significante da poética de João Maimona, mostra-se nesse poema na reiteração significativa de versos e de expressões que marcam o esforço do poeta por expressar/suprimir suas palavras ou por estar atento a outras linguagens (a dos tambores, por exemplo) que também expressam um mundo em convulsão. No poema, como em tantos outros, as palavras “pedras” e “ossos” reforçam a dureza de um cenário sempre perscrutado pelo olhar vigilante do poeta. As palavras, em arranjos metafóricos, conseguem expressar os sentimentos do poeta diante de uma realidade que não pode ser (re)arranjada por palavras de sentidos atrelados somente aos fatos do dia-a-dia.

Em No útero da noite (2001), um outro poema também é retomado do livro Quando se ouvir os sinos das sementes: “Prostitutas/Janelas/Entre mar/E janelas” (p. 71). O poema tem um forte apelo social, já que é dedicado ao quadragésimo aniversário da explosão de Hiroshima. Tal motivação impulsiona a composição do poema, que se vale de recursos de repetição, recurso bastante explorado pelo poeta em vários poemas.

O poema “Prostitutas/Janelas/Entre mar/E janelas” exibe um alto nível de elaboração formal. O enjambement, recurso de estilo muito frequente na poética de Maimona, marca a intenção de não indicar o fim do verso por corte ou pontuação, mas pela relação que as palavras mantêm entre si. O recurso dá ao poema maior musicalidade, uma vez que os versos imbricam em outros, reforçando o hábito do poeta de não utilizar letra maiúscula após o ponto final. 

nascemos quase pelas horas quase
iluminadas pelas cortinas que
ocultam a ausência  humana. e
falecemos entre as sombras da
presença humana. A palavra sentida
há de calar a dor. (p. 71).

Nesse poema fica evidente ainda a utilização de um símbolo recorrente na poesia de Maimona: janelas, na estrofe sugeridas por “cortinas”, “sombras”. Construções de efeito incisivo como “há de” fortalecem a intenção de recuperar momentos de alegria: “temos de dançar ao pé das janelas”, verso repetido no final da primeira e da segunda parte do poema. Os significantes “mar” e “janela” reafirmam ações que recuperam a alegria, a festa, o prazer, enfim. A crença em alterações que deverão construir sopros de felicidade aparece nos versos:

a carne, a flor, o sal, o
sangue e a água se misturam para
soprar felicidade ao mar e às
janelas. temos de conhecer o mar.
temos de dançar ao pé das janelas.
(p. 72)

Como se afirmou,13 a palavra “prostituta”, contida no título, não é explicitamente retomada no corpo do poema, a não ser na referência aos modos como “as Américas colecionam lembranças da escravatura” (vs. 7-9, estrofe 2). Pode-se afirmar então que, nesses versos, o deslocamento explica a utilização dos termos “prostitutas” e “misérias” no título, fortalecendo a denúncia explícita à destruição. No verso 8 da estrofe 2, a palavra “lembranças” faz menção aos horrores da escravidão dos africanos e alude a sentidos construídos pelos termos “prostitutas” e “misérias” utilizados como um cântico de esperança em relação ao futuro. Por isso são bastante significativos os versos reiterados no final de cada estrofe: “temos de conhecer o mar./temos de dançar ao pé das janelas”.

Em outro poema, “Os meus versos. No universo que nasce” (p. 67), clareiam-se intenções de determinar as relações entre uma poética que se cria a partir dos elementos da terra, da observação do mundo circundante e as linguagens marinhas que identificam o homem angolano. Como vimos afirmando, vários símbolos frequentam de forma sistemática a poesia de João Maimona e o significante “mar” é um deles.

 Carmen Tindó Ribeiro Secco, em sua Antologia do mar na poesia africana do século XX (2000), afirma não ser intensa a presença do mar na poesia de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Haveria, na literatura desses países, uma maior “identificação com a terra e a natureza africanas” (p. 24). A estudiosa salienta ainda que, na poesia do pós-independência, a aspiração ao “mar” surge transmudada em “mar novo” como uma ruptura com os significados do “mar português” e como determinação de um espaço que é também erótico (p. 25). O mar, kalunga, que aparece em vários textos angolanos como devorador de homens ou como a estrada sem fim trilhada pelos africanos a caminho de lugares determinados pelo tráfico negreiro, é retomado com novos significados. Carmen Tindó faz referência ainda ao culto à kyanda, divindade do mar, pelas populações angolanas de língua e cultura kimbundu que se tornou, inclusive, uma forma de resistência à cultura introduzida pelos colonizadores.

No poema de Maimona, “Os meus versos. No universo que nasce” (p. 67), o mar é o significante de uma intenção poética que se fortalece com a “brisa da rua” para se fazer “línguas do mar” e “lagoas de flores pintadas com a luz d´aurora”. O universo configurado pelas palavras que o poeta evoca tece-se a partir de elementos de um imaginário que conclama mar e terra: o mar como a força de que se faz o verso; a terra o húmus de que as palavras se nutrem.

Em outro poema de No Útero da noite (2001), “Memória” (p. 56), também presente em Quando se ouvir os sinos das sementes (1993), intensifica-se a crença no sonho e em mudanças. O poema é dedicado ao poeta Lopito Feijoó, organizador da antologia No caminho doloroso das coisas (1988) e integrante do grupo de “jovens cultores da palavra poética” (FEIJOÓ, 1988, p. 11). O poema “Memória” já aparecia na famosa antologia, integrando o esforço dos jovens poetas de então de apresentarem ao mundo literário da Angola pós-independência a voz da “primeira geração de poetas nascidos com Angola enquanto República Popular” (FEIJOÓ, 1988, p. 11):

baloiçando em escombros de teu itinerário
saberás que os gados constroem estrada,
e quando a mão deslizar pela margem
das cicatrizes que se fundam na noite
saberás que a tua mão viaja para
a península dos dias sem escombros
e saberás que no berço da noite jaz a luz
drogada e ouvida pela cruz sobre quem viajaste.
(1980/1996/2001, p. 56).

Lançado como produção da Angola pós-independência, o poema foi lido, na época, com significados muito colados aos momentos tensos vividos pela sociedade angolana, dos quais as palavras “escombros” e “cicatrizes” podiam ser tomadas como metonímia que se reforçava com o termo “estrada” e com a expressão “península sem escombros”. O facho de luz sobre a realidade imediata poderia ser uma alusão ao trabalho de reconstrução sugerido pelo verso “os gados constroem as estradas”, cujo sentido é retomado no penúltimo verso. Nesse verso, o verbo “jazer”, de sentido ambíguo, parece fortalecer uma significação negativa construída pelo adjetivo que modifica o termo “luz” na expressão “luz drogada”.

É importante considerar que Inocência Mata, no prefácio do Bloco I – Retrato das mãos – do livro Festa da monarquia (2001), percebe uma performance dialógica na qual os “níveis formalizantes da mensagem literária parecem responder (...) a uma aproximação empirista ao mundo” (MATA, 2001, p. 28). A estudiosa, tomando como referência principal os poemas “Procura” (p. 71) e “Adeus barricada” (p. 84), destaca a “permeabilização do discurso social pelo discurso intimista”, para salientar o que, em sua opinião, aparece como um dado característico da poesia de Maimona: “a inefável sutileza dos sentidos” (p. 29). A observação feliz da autora nos permite reiterar algumas marcas da poética de Maimona. O sujeito que observa as coisas o faz com um olhar saturado de impressões e por isso recusa a ilusória percepção linear do mundo, procurando descrevê-lo através do impacto sofrido pelo observador, reflexivo. Por isso sua escrita é prenhe de imagens, de recursos que privilegiam as relações inusitadas, as paisagens estranhas, os intensos paradoxos. Todos esses recursos parecem buscar uma expressão que ultrapassa o circunstancial, ainda que este esteja sempre rondando os versos, instituindo-se como um trabalho de revigoração da palavra e da escrita. O poema move-se então por um impulso que o libera da colagem pura e simples ao contextual porque o assume através de transfigurações e de sugestões que conduzem ao inesperado. O intenso trabalho com a palavra acolhe lembranças, retrabalha o circunstancial, mas o que se expõe são percepções muitas vistas alegóricas e inusitadas.

No seio da mulher permanece o anunciado céu:
céu que é de novo horizontal poema.
nas pálpebras cabe o permanente lexema:
lexema que é indiferentemente estrela do ilhéu.
em minhas pálpebras acorda a madrugada.
sonho o que as minhas águas de novo dizem.
pinto as estações e nela ponho uma pomba.
para amar as palavras da folhagem.14

A potencialidade da palavra é, por isso, o locus da transformação, da alquimia que produz o poema, “o anunciado céu” da gestação do prazer que também se anuncia no início do primeiro verso pelo viés de um corpo erotizado. O poeta se assemelha ao pintor, construindo com palavras associadas à natureza as imagens que anunciam a germinação do poema.

Repetem-se em Festa da monarquia (2001) muitos dos apelos telúricos presentes nos outros livros do poeta e a recorrência a essa força que o poeta busca na terra, no universo e que se redobra na palavra falada. A abundância de imagens e os artifícios de linguagem que buscam alcançar o que se produz para além do poema dizem muito do trabalho do poeta com a materialidade do poema, com a produção de arranjos verbais que fazem a escrita repercutir o som e o gesto que ela mesma silencia. No Bloco I de Festa da Monarquia, os poemas insistem em aspectos picturais – “pintei as paredes com as águas a envelhecer” (p. 69), em sugestões de toques indicadas pela frequência do significante “mão” – “não sei o que destas éguas e sombras/teus dedos diriam/mãos desertas perdeu o pastor” (p. 44) – ou em motivações que evocam a festa anunciada, seja pelo riso – “pelo riso canto as árvores em aberto trovar” (p. 60), seja pela exaltação da memória que se esvai: “na memória minhas mãos se refugiam/queria uma terra que juntasse as árvores” (p. 68). A festa se estrutura com os arranjos da criação poética, com as providências que garantem a germinação da “imensa alegria do poema”.15 Por isso, mais que exaltar um sentimento de alegria por seu estar no mundo, o poeta procura a alegria da criação que pode reconstruir o mundo. Não seria esse o sentido do poema “Mão fértil” (p. 80), indicador dessa associação entre fazer o poema e, imaginariamente, (re)construir o mundo?

quem fecunda a sede dos tempos
sobre povoações maternas do dia?
diante d´árvore está uma canção
para celebrar o sol das estações.

A segunda parte do livro, Bloco II, que tem como título “Epilepsia do planeta”, reúne poemas que, de forma mais concreta ou intensamente alegórica, referem-se à necessidade de restaurar a terra. Os poemas trabalham com os significados intensos que o termo “terra” assume em culturas como a angolana, imersa em tradições atentas às mutações da natureza. Ainda nessa parte, o trabalho com o significante indica a preocupação do poeta de lavrar o verso, de semear novas possibilidades criativas, de conclamar os saberes da terra para povoar o poema. Em vários poemas, a alusão a festas, cantos, danças e músicas reforça a intenção, já comentada, de sentir o poema como o lugar de gestação de imagináveis mundos. Essa ideia se anuncia nos versos de “Árvores da África” (p. 122), principalmente em “minha mão pronunciava sob a germinação /do dia, sob noites ínfimas/reconhecidas em minerais reunidos”. Esse gesto, concretamente situado na mão que constrói o poema e no poeta que, com sua escrita, revolve seus sentimentos e expõe um olhar ao mesmo tempo crítico e angustiado sobre o mundo à sua volta, é o mesmo que impulsiona a construção de versos e inscreve o trabalho do poeta numa proposta de recriação do mundo.

Iniciamos este texto chamando a atenção para os novos percursos estéticos anunciados pela antologia No caminho doloroso das coisas. A coletânea, ao levar ao público as experiências literárias de dezenove poetas, trouxe à luz o “grito poético, meio desiludido mas decidido” (p. 11) da primeira geração de poetas nascidos na Angola livre do colonialismo. Ainda que a geração dos jovens poetas se quisesse esteticamente diferenciada dos antecessores e afastada da poesia politicamente empenhada nas lutas pela descolonização do continente africano, muitas marcas dessa fase heroica e grandiosa permanecem na antologia. Mas, ao lado de heranças inevitáveis, um novo sopro poético se desprende de suas páginas.

Ao lado de tantos poetas significativos, João Maimona apresenta, no volume, tendências que irão se firmar ao longo de sua trajetória de escritor. Dentre essas tendências talvez a maior seja a forma como, seguindo caminhos por vezes já trilhados, mostra-se atento ao trabalho com a linguagem, certo de que o material da literatura é a palavra em sua encenação no palco da escrita. Escrever e encenar guardam, assim, no espaço da literatura, uma relação estreita, cabendo ao escritor trabalhar ao infinito as coreografias que a letra desenvolve, procurando – em culturas como a angolana – recuperar o sopro da voz, as modulações do canto e a força imagética dos elementos da natureza.

Os poemas de Maimona, desde os apresentados pela antologia No caminho doloroso das coisas (1988), são impregnados de recursos estéticos que filtram a realidade sensível para expô-la em cenários (re)construídos por imagens. Sua poesia é, por natureza, densa em alegorias, símbolos, imagens e construções que descartam a percepção imediata de significações para instalar o que Friedrich (1978) denominou de “tensão dissonante”, portadora de uma grande inquietação, porque expurga a segurança enganadora da arte realista.

Ler João Maimona requer exercitar a inquietação e trabalhar, sobretudo, com as profundas relações que seus versos propõem como material necessário à consolidação da nova “carpintaria poética” presente em seus vários livros.

Notas

[1] - A versão original deste texto foi publicada no livro A kinda e a missanga, organizado por Rita Chaves, Tânia Macedo e Rejane Vecchia, em 2007. A versão atual apresenta algumas alterações. 

[2]  No decorrer do texto, os poemas de João Maimona serão indicados pelo título do livro em que estão publicados e pelo número da(s) página(s).

[3]  Sobre a proposta de inovação dos novos poetas angolanos, destacando-se sobremaneira os que começaram a publicar após a independência de Angola, ver o artigo de Inocência Mata (2001, p. 259), “A poesia de João Maimona: o canto ao Homem Total ou a catarse dos lugares-comuns”, indicado nas referências deste texto.

[4]  Ver o texto “João Maimona: uma poética em desassossego” (2000).

[5]  Poema “Idade das palavras” (IP, p. 41).

[6]  Poema “Poesia (requalificada) de glória” (IP, p. 50).

[7]  Poema “Visão” (IP, p. 65).

[8]  Poema “Lâmpada da manhã” (IP, p. 64).

[9]  Poema “Dimensão interior” (IP, 1996, p. 71).

[10]  Poema “Exercício prometido” (IP, 1996, p. 76).

[11] UN, p. 69-70.

[12] Utilizei a expressão “poética em desassossego” para me referir, em texto publicado em 2000, a essa característica importante  da poesia de João Maimona: transitar por escombros, por cenários em ruínas, mas atenta aos apelos de vida que podem ser encontrados. Cf. “João Maimona: uma poética em desassossego” (2000).

[13]  Cf. “João Maimona: uma poética em desassossego” (2000).

[14] Poema “Palavras” de FM (2001, p. 72).

[15] Parte do último verso do poema “Colorido canto” (FM, p. 60).

Referências

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FONSECA, Maria Nazareth Soares Fonseca. “João Maimona: uma poética em desassossego”. In: SEPÚLVEDA, Maria do Carmo; SALGADO, Teresa. África & Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Cenas da poesia angolana: João Maimona. In: Rita Chaves, Tânia Macedo; Rejane Vecchia. (Org.). A kinda e a misanga. Luanda/São Paulo: Nzila/Cultura Acadêmica, 2007, v. 1, p. 259 – 276..

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MAIMONA, João.  Idade das palavras. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1997.

MAIMONA, João. No útero da noite. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2001

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MATA, Inocência. A poesia de João Maimona: o canto do Homem Total ou a catarse dos lugares-comuns. In: Revista da Faculdade de Letras, n. 15-5ª Série, 1993, p. 181-188.

MATA, Inocência. “A fala dos sentidos”. In: MAIMONA, João. Festa da monarquia. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2001, p. 27-32.

MURICY, Kátia. Benjamin: alegorias da dialética. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada UFMG. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995 – 2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas desde 2010. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

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