A literatura de Agostinho Neto: intenção poética e política1

Maria Nazareth Soares Fonseca*

Muito se tem discutido sobre a configuração do intelectual nos países africanos de língua portuguesa e sobre como os escritores desses países assumiram – e por vezes assumem – uma fala pública que, via literatura, expressa os anseios de grande parte da população. Como criador, o escritor trabalha com possibilidades de tornar crível o que inventa no plano da ficção e, ao expor em seu processo de criação uma intenção declarada de trazer para o seu texto os gestos que legitimam os saberes de sua cultura, permite que o seu trabalho seja uma forma de acesso aos significantes que por vezes só circulam no domínio da oralidade. Assim, o escritor de vários espaços africanos pode ocupar o lugar do intelectual pois considera os conflitos do seu tempo, defende as ideias em que acredita porque elas têm como fundamento o bem-estar da humanidade. Comprometido com a transformação da realidade vivida, o escritor escreve para conclamar a participação daqueles que comungam o mesmo ideal e, nesse sentido, a literatura produzida por ele tem um forte apelo humanista e revolucionário. Essas características mostram-se em poemas do escritor angolano Agostinho Neto e demonstram faces do seu projeto literário de que o livro Sagrada Esperança é exemplo significativo.

Agostinho Neto, antes mesmo de se transferir de Angola para Portugal onde chegou para estudar medicina, na Universidade de Coimbra, em 1947, já expunha em vários escritos um processo “ao mesmo tempo doloroso e redentor de tomada de consciência” (CALVÃO, 2006, p. 1). Em Coimbra e depois em Lisboa, pode tomar contato com a secção coimbrense da Casa dos Estudantes do Império (CEI), fundada em 1944, da qual chegou a ser um dos mais ativos dirigentes. Mais tarde, Neto publica os poemas “Noite” e “Confiança” no boletim mimeografado Momento, surgido em 1950, deixando transparecer, nesses poemas, “marcas de leitura dos poetas negros norte-americanos”, como acentua Laranjeira (1995, p. 100).     

No ano seguinte à chegada de Agostinho Neto a Coimbra, é lançada em Paris a obra organizada pelo senegalês Léopold Senghor, Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache. Essa antologia irá permitir que as ideias defendidas pelos criadores da Negritude, Aimé Césaire, Léopld Cesire e Léon Damas, cheguem a outros espaços europeus. Tais ideias juntamente com a produção dos escritores afro-americanos, como Langston Hughes, marcam profundamente escritores do neo-realismo português, a obra do escritor são-tomense Francisco José Tenreiro e também a produção poética de Agostinho Neto. Os propósitos da Negritude, a dos poetas afro-americanos e as inovações do cubano Nicolás Guillén estão registrados na primeira antologia de poesia negro-africana de língua portuguesa, a Poesia negra de expressão portuguesa, organizada por Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade. Agostinho Neto faz parte dessa antologia com dois significativos poemas, nos quais se evidenciam intenções que indicam a forte inclinação para as questões do homem negro e do africano submetidos ao domínio colonialista. Os poemas de Neto, na antologia, bem como os dos demais poetas africanos nela presentes comungam os anseios que circulavam, na época, em Coimbra, em Lisboa e mesmo em Luanda com a plataforma do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA).

Agostinho Neto e a Poesia negra de expressão portuguesa

Uma análise, ainda que superficial, dos poemas de Agostinho Neto presentes na antologia Poesia negra de expressão portuguesa, organizada por Tenreiro e por Mário Pinto de Andrade, indica as ligações da publicação com o projeto da Negritude e com o anseio desse movimento de se solidarizar com os “condenados da terra”, na lúcida visão de Frantz Fanon. No poema “Aspiração”, às páginas 59 e 60 da referida antologia, sente-se a presença de uma voz que se dirige aos “negros de todo o mundo”, louvados pela poesia de Aimé Césaire. O canto de Neto almeja alcançar os que vivem “para lá das ‘linhas’”, separados pelas demarcações dos espaços na planta baixa legitimada pela colonização. Assim, ainda que por vias indiretas, a intenção poética, neste poema de Neto, assuma os gestos da Negritude, nele também se notam os ecos dos nacionalismos que explodem em vários lugares da África. Assim, se na poesia negritudinista de Césaire, a expressão literária se fortalece com as imagens tomadas à natureza: água, sol, árvores, tempestade, vulcões, que ajudam a construir um canto de rejeição à submissão, no poema “Aspiração”, de Neto, conclama-se a força capaz de entrar “nas sanzalas/nas casas/ nos subúrbios das cidades” e inspirar “as consciências desesperadas”. Essa força que advém dos ritmos africanos, figurativamente relembrados na menção a instrumentos como o quissange e a marimba, cujos sons se misturam ao violão e ao saxofone, conclamados para compor “os ritmos de ritual orgíaco” (p. 60). Assim, a força que, em Césaire se manifesta na evocação a elementos da natureza e a animais como répteis, sobretudo, cobras, anacondas, pitons, serpentes e crocodilos, vistos quase sempre com significação positiva (KESTELOOT, 1962, p. 46), também transita pelo  poema de Neto, compondo ritmos que acompanham o canto, ainda que marcado por murmúrios e pela tristeza.

 Em “Criar”, outro poema selecionado para compor a antologia, ressalta-se a intenção de que o fazer poético se realize “com os olhos secos”, com a força que transforma a violência, metonimizada em semas como “palmatória, “chicote” “lágrimas”, “ódio” e expressões como “”estradas escravas” e “forças simuladas” em expressão de liberdade. O poema “Criar” expressa uma intenção em que a ressignificação e a transformação fortalecem táticas que, no campo da literatura e no processo de conscientização política, procuraram revelar as reais condições do africano, sobretudo aquele dominado pelas normas regidas de obediência e submissão. A intenção coletiva fica indicada neste poema pela ênfase na ação de criar, tomada como vivência de uma estética da utilidade, pedagogicamente assumida em cada estrofe do poema.

Utilizada como estratégia literária e como exercício de conscientização, a ação de criar indicará, em outros poemas de Neto, publicados no livro Sagrada esperança (1974),  uma intenção que se acentuaria no programa do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, surgido em 1948, com a participação de vários “rapazes negros, brancos e mestiços”, como bem observa Carlos Ervedosa (1974, p. 101), aludindo, mais concretamente, a uma geração literária constituída sobretudo por poetas.2

Agostinho Neto na Mensagem

Na esteira desse movimento, surge, em Luanda, em 1951, a revista Mensagem, publicação que assume o compromisso com o redescobrimendo de Angola e da África por extensão. Na proposta do movimento pairam os ecos da poesia afro-americana, na voz de Walt Whitman, Langston Hughes e Couteen Cullen, a sonoridade dos poemas de Nicolas Guillén e o apelo negritudinista da poesia de Francisco José Tenreiro, que havia publicado, em 1942, o Novo cancioneiro. Além dessas presenças marcantes, certamente estão os ecos vindos do modernismo do Brasil, claramente identificáveis no brado lançado por Maurício Gomes no poema “Exortação”, no qual podem-se ouvir a rebeldia e a contestação assumidas pelo sujeito poético quando clama: “Angola grita pela minha voz/pedindo a seus filhos nova poesia!» e «É preciso inventar a poesia de Angola!”. (GOMES, apud FERREIRA, 1988, p.85).  As vozes conclamadas para pela “nova poesia angolana” vêm do Brasil, de movimentos que se espalham pelos Estados Unidos e Europa; outras chegam através dos nacionalismos de colônias britânicas e franceses (KANDJIMBO, 2008, p. 91). Todas elas ajudam a fortalecer a decisão de expor aos angolanos as imagens da terra e de retomar, poeticamente, lugares resgatados pela memória.

Esse propósito se mostrará nos poemas de Agostinho Neto, publicados em Mensagem, nos quais vários elementos da paisagem africana,  cheiros,  sons e  cores, ajudam a compor a “sinfonia adocicada dos coqueirais” (p. 96), marcada por ritmos que, de forma metonímica, aludem à terra mas também à gente africana “dos pés descalços” e “unhas descarnadas” (p. 97)3. Fogo e ritmo são significantes de uma força que gesta a resistência desses espaços à total devastação. A luz das fogueiras e o ritmo das danças e dos tambores são força evocada pelo poeta para vencer o “choro de séculos/ inventado na servidão/ em histórias de dramas negros almas brancas preguiças/ e espíritos infantis de África4.

O intelectual Mário Pinto de Andrade (1997) em vários momentos de sua longa entrevista a Michel Laban, publicada em 1997, também ressalta o esforço desempenhado por estudantes africanos residentes em Lisboa e por jovens angolanos pertencentes aos movimentos culturais e literários que se criaram, em Angola no final dos 1940 e início de 1950.  O intuito desses movimentos era, como já esclarecido, intensificar ações mais eficazes a serem efetivadas por africanos em torno da alfabetização, por exemplo, e de produzir uma reflexão mais profunda sobre a diversidade de uma África desconhecida da maioria dos africanos, uma vez que o sistema colonial legitimava concepções e valores que foram aos poucos soterrando tradições e concepções de mundo. O trabalho dos jovens intelectuais, escritores e estudantes, em Angola, em Coimbra e em Lisboa reflete-se em textos produzidos por vários deles5. Nesses textos alguns elementos figuram como marcadores de um processo de “auto-consciencialização da cultura africana na sua globalidade” (Andrade, 1997, p. 71), acentuado no objetivo de conhecer melhor o continente a que pertenciam os estudantes, escritores e intelectuais reunidos em torno da Casa dos Estudantes do Império e, mais tarde, do Centro de Estudos Africanos, em Lisboa e também em Angola pelo MNIA. No fundo dessas ações delineava-se o projeto de reverter estereótipos como os aludidos por Agostinho Neto no poema “O choro da África” e os mecanismos de apagamento de uma consciência de pertencimento a um território que precisava ser assumido por aqueles que, nascidos nele, dele foram alijados ainda que nele habitassem.

Nas entrevistas dadas a Laban, Mário Pinto de Andrade revela algumas táticas que se firmaram com os pressupostos defendidos pelos movimentos Renascimento Negro norte-americano e Negritude. Algumas dessas táticas indicam a retomada política do significante negro com o intuito de esvaziar os sentidos negativos nele alocados: “Nós introduzimos talvez uma categoria que parecia, aparentemente, racial -, nós privilegiamos o negro ... Para nós o negro era o centro de África: era uma visão negrista (p. 72). 

A preocupação com “os negros de todo o mundo” fica clara em várias atividades desenvolvidas no Centro de Estudos Africanos que tinha como meta principal “dar a conhecer, conhecer-nos a nós próprios” (ANDRADE, p. 71). O projeto a que se refere Andrade deixa perceber os elos fortes com a Negritude, que em sua primeira fase preconizava um retorno aos referenciais africanos, reconhecendo-os como antídoto à alienação imposta aos africanos com a presença da colonização em África. A proposta dos intelectuais africanos como Mário Pinto de Andrade, Francisco José Tenreiro, Amílcar Cabral e outros será de certo modo realizada em vários poemas de Agostinho Neto publicados na aludida coletânea Poesia negra de expressão portuguesa, de 1953, no livro Sagrada Esperança (1974) e em antologias organizadas por Manuel Ferreira. Todas essas publicações tinham a intenção de apresentar, via poesia, os problemas essenciais do negro e, dessa maneira, combater a perversa realidade dos espaços colonizados e a exploração do trabalho de africanos submetidos a diferentes formas de exploração no continente africano e fora dele.

Poemas do livro Sagrada Esperança

Particularmente no livro Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, temas e estratégias procuram consubstanciar uma proposta poética que deliberadamente assume dados do processo de conscientização de que fala Mário Pinto de Andrade.  A poesia de combate, de feição pragmática por vezes, assume uma feição mais descritiva, presente em vários poemas de Agostinho Neto com a intenção de compor quadros em que o dia-a-dia dos angolanos concretiza as intenções pedagógicas que também estão em muitas de suas produções.

Em vários poemas do escritor, percebe-se uma estratégia de assumir a pintura de cenas e de cenários com recursos plásticos, picturais. Delineiam-se com  a utilização desse recurso feições de uma poética que se efetiva na criação de retratos de gente simples, como as “compadres discutindo/escandalosamente/velha dívida de cem mil réis”, os “bêbados caídos nas ruas”, as “mães aos gritos /à procura dos filhos desaparecidos”, o “ homem/ que consulta o kimbanda/ para conservar o emprego” ou a “ mulher/ que  pede drogas ao feiticeiro/ para consertar o marido”6. A estratégia descritiva é, portanto, recurso sugestivo que permite ao poeta fotografar cenas características de bairros pobres de Luanda e registrar imagens que se montam, no poema “Sábado nos musseques” com um ritmo marcado pela repetição intencional da palavra “ansiedade” no início da maioria das estrofes. A repetição da palavra deixa mais evidente a intenção de trazer para a cena os acontecimentos da rotina dos sábados em espaços habitados por gente simples, em Luanda, e os sentimentos que aí se acentuam. A estratégia utilizada pelo poeta para registrar as cenas deixa evidente traços do neorrealismo particularmente acentuado no deslocamento do foco sobre a “gente humilde” para a apreensão de um processo de fermentação que brota da miséria e da precariedade do lugar. A intenção de “conscientizar” através da poesia fica marcada nos versos e no registro de ações capazes de transformar os “lamentos da multidão” em “heroicas bandeiras” desfraldadas por aqueles que saberão transmudar a ansiedade em força criativa.  

O processo de conscientização que se mostra no poema “Sábado nos musseques” também está presente no célebre poema “Mussunda amigo” (p. 91-93), no qual a intenção coloquial se reforça com o uso de recursos de um processo que faz do vocativo “Mussunda amigo” um elo entre o sujeito poético e o interlocutor presumido. Outros marcadores alusivos ao alocutário se mostram no uso de formas pronominais como “te”, “a ti, reiteradas nas desinências do verbo em 2a. pessoa. Esse modo conversacional de produção do poema é, metalinguísticamente, marca da função dialógica do texto em que o outro, o angolano como o poeta, é conclamado a participar do processo de construção do poema ainda que não o possa ler. Como se diz no poema, os interlocutores estão situados em lugares demarcados por diferentes códigos, embora um mesmo sentimento os una na feitura do texto que retoma um passado que pertence aos dois. É importante, nesse sentido, a inclusão, no poema, da expressão “O ió kalunga ua um bangele!”, que nomeia um espaço em que os interlocutores, figurativamente, concretizam o compartilhamento encenado pelo texto. O sujeito poético que se anuncia no poema (“aqui estou eu”, “a vida a ti a devo”), conclama o outro, o companheiro analfabeto, que, por artifícios retóricos, participa do poema. Ainda aqui ficam evidentes os propósitos de uma literatura que se produz num espaço no qual os não letrados são também acolhidos com ajuda de estratégias enunciativas que desestabilizam as rígidas leis que segregam os que foram excluídos da leitura e escrita.

Também no poema “Quintandeira” (p. 61 - 63), o recurso da interlocução é utilizado para possibilitar que a “fala” da quitandeira se separe da do sujeito poético. Tal recurso fica explícito na cena em que o sujeito poético coloca-se como observador da cena em que se mostra a quitandeira:

A quitanda,
                  Muito sol
E a quitandeira à sombra
Da mulemba. (p. 61)

Ao longo do poema, outras estratégias vão sendo construídas para permitir a percepção do contexto em que se situa a quitandeira, tomada metonimicamente em referência àqueles que têm de vender a sua capacidade de trabalho por preço insignificante. Os versos “A quitandeira/que vende fruta/vende-se alude ao processo de exploração e alienação que se anuncia, como denúncia, no final do poema. No mesmo poema, a metáfora do jogo da cabra-cega serve ao propósito do poeta de fotografar cenas e, ao mesmo tempo, refletir sobre elas, para acentuar a situação perversa em que vivem os angolanos na época em que o poema foi escrito. Os dados da realidade apresentam-se como configuradores de uma poética que acolhe os que sorvem o “amargo da vida”. A cenografia explorada pelo poeta possibilita a construção de “um discurso dialógico orientado para alguém que, como acentua Maingueneau (1996) seja capaz de lhe dar uma resposta, real ou virtual” (p. 22).

O poema “Quitandeira” explicita, no enquadramento proposto pelos versos e pela mancha na folha do livro, possibilidades de o leitor ter acesso não apenas à cena em que se mostra a inspiradora do poema, mas também às reflexões que são feitas sobre o lugar ocupado por ela na sociedade a que pertence. Assim, é importante ressaltar a intenção pictórica da primeira estrofe, em que as peças componentes da cena indicam também o modo como são acrescentados à composição significados que propiciam uma leitura mais profunda dos elementos ressaltados. Na cena, os significantes quitanda e quitandeira fazem parte de um quadro em que se mostram outros elementos postos em conjunção: o muito sol e a sombra da mulemba. Na paisagem descrita no poema, os jogos de “claros e escuros” anunciam a estratégia do poeta para deixar em campos diferenciados tanto os elementos que compõem as cenas marcadas pela luz “que brinca na cidade” quanto outras, aparentemente sombreadas pelo roubo da infância, “este botão de rosa/ que não abriu” e pela alusão ao trabalho duro, cruel e ao sofrimento presente no contexto histórico-social enfocado.  

As diferentes cenas do poema dizem bem do projeto literário que propõe mostrar a África e Angola, resgatando tipos característicos e os problemas que eles enfrentam.  A função da literatura, escrita em tempos sombrios, acentua, nos poemas de Agostinho Neto publicados dessa fase, a intenção de apreender os cenários em que a gente simples transita pelos espaços construídos com o intuito de edificar uma consciência sobre as mazelas que se acentuam em África. Por isso, a preocupação dos poemas com o resgate do universo dos excluídos de que figuras como a quitandeiras, o trabalhador “enterrado nas roças” e os contratados são símbolo. A poesia procura expor, denunciar e de certa forma expurgar situações naturalizadas por um perverso processo político-econômico que associa o agravamento de situações de miserabilidade ao processo de modernização que, de forma paradoxal, se pauta pela exploração dos que trabalham.

De certo modo, a descrição da gente simples presente em poemas de Agostinho Neto como em “Mussunda, amigo”, “Quitandeira” e “Sábado nos musseques” pretende provocar a reflexão sobre uma situação em que a personagem encenada é apreendida pelo olhar que a vê como metonímia da situação mais ampla em que se situa. Nesse processo, o recurso interlocutório reforça o pressuposto de que o mergulho em situações concretas seja necessário para que a literatura participe de ações capazes de desmontar a percepção da realidade vivida pelos africanos e angolanos como em um quadro fixo e imutável. Como já explicitado, a estratégia que se realça no poema “Sábado nos musseques” caracteriza-se pela insistência com que são captados os movimentos, os ruídos e as diferentes ansiedades que tensionam os espaços. Essa estratégia também está presente no poema “Meia noite na quitanda” (p. 65). Nos dois poemas, a imobilidade de algumas cenas é quebrada pelas alusões a outras conclamadas para compor o cenário. Em “Sábado nos musseques”, agenciam-se gritos, choros histéricos, alto-falantes, tilintar da louça, sons de violas e das danças que inundam o texto com ruídos e agitação, permitindo o acesso à vida que se monta no ritmo da ansiedade que vai sendo ressignificada ao longo do poema. Em “meia-noite na quitanda”, os gritos da vendedeira procuram ressaltar a ansiedade provocada pela exigência do pagamento de imposto, marca de uma situação político-social a que os poemas remetem. Assim, a captação da movimentação dos espaços marcados pela exclusão torna-se ação eficaz para denunciar formas cruéis de exploração que neles se mantêm.

É importante ressaltar que a intenção de assumir situações marcadas pela dificuldade de cumprir as normas determinadas por um sistema opressor faz com que o poeta Agostinho Neto ressalte e denuncie as condições de vida de angolanos e africanos que precisam convier com agruras imensas. Os musseques mostrados em sua intimidade povoada de cheiros fortes, gritos de dor e de alegria, são lugares de encenação de emoções e vivências. E ao ressaltar a agitação do musseque ou a ansiedade estampada no pregão da quitandeira, o poeta nomeia o gérmen da esperança que fortalece a luta contra um sistema repressor que procura banalizar o sofrimento e a violência. Tais sentimentos tornam-se significantes de um cotidiano que Agostinho Neto observa e acolhe para construir formas de conscientização no campo na poesia.  É, nesse sentido, que o poema “Civilização ocidental” do livro Sagrada Esperança (p.69) evidencia um campo textual em que o processo de “naturalização” das brutalidades impostas pela colonização é colocado em xeque. A utilização de recursos que fortalecem a intenção de acentuar a descrição de cenas e de cenários angolanos/africanos tem o propósito de induzir à reflexão sobre o projeto de conscientização defendido por ele, projeto que, conforme observações de Luís Kandjimbo (2008, p. 92), tem suas raízes nos princípios de justiça de sua formação. 

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa 

 
Os farrapos completam
a paisagem íntima 
 

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante 
 

Depois as doze horas de trabalho
escravo 

 
Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol 
à chuva
britar pedra
acarretar pedra 
 

A velhice vem cedo 
 

Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.

À guisa de conclusão

Como se acentuou em outros momentos, a distribuição dos versos no poema e a mancha do texto na folha em branco já revelam uma intencionalidade que merece ser destacada. Os versos dispostos nas duas primeiras estrofes inscrevem a intenção de apreender plasticamente a cena pelo detalhamento do tipo de material empregado na concretização da casa: “latas pregadas em paus”, “farrapos” para completar a construção. Os detalhes estampam a miséria do habitante que, ironicamente, será acordado pelo sol que atravessa as “frestas” deixadas pela precariedade do material da construção. Os versos centrais do poema procuram acentuar as mazelas do trabalho forçado, indicado pela repetição das ações que reproduzem as ordens dadas ao indivíduo. Assim, “britar pedras” e “acarretar pedras”, insistentemente repetidos, funcionam como um recurso hábil de denúncia. O ritmo dos versos acentua a perversidade das ações que remetem ao que fora anunciado nos versos anteriores: “Depois as dozes horas de trabalho/escravo. O significante escravo, destacado no verso, assume-se como possibilidade de expansão dos significados construídos pelas cenas iniciais e por outras que fecham o texto: a descrição da fragilidade da casa antecipa a fatalidade da morte que vem cedo. Nos versos finais, o recurso da ironia ganha uma significação mais ampla, pois deixam em suspensão os sentidos agenciados pelo adjetivo “grato”.

É possível pensar que o poema e particularmente os versos finais do poema “Civilização ocidental” sejam uma clara indicação da rejeição de Agostinho Neto às injustiças, que tendo motivações próprias, como explica Kandjimbo (2008, p. 92 e seguintes) demonstra proximidades com as ideias defendidas por sua geração.

Pode dizer que, na poesia de Agostinho Neto, o espaço do oprimido é significado pelo que se mostra na deliberada intenção de apreender as mazelas que estão nos bairros pobres, no trabalho forçado, nos corpos mitigados pelo trabalho duro e nas severas leis impostas pelo império colonial. É pertinente considerar que são essas mesmas leis que motivam o enfrentamento que a poesia de Agostinho Neto assume em tempos duros, para produzir uma poética que se alimenta dos princípios que defende7. Ao se decidir por registrar a vida das pessoas simples, jogadas “nos bairros escuros do mundo8, os espaços de memórias da cidade de Luanda são assumidos pelo olhar carinhoso dirigido aos tipos humanos que por eles transitam9. Não é por acaso que, apesar do sofrimento que se abate sobre todos e das armadilhas que surpreendem a alegria com a insensibilidade da violência, o poeta Agostinho Neto defende um projeto utópico que, defrontando-se com a dureza das cenas evocadas, incita a que se enfrente a realidade.

Assim, como expressão de um anseio literário que procura se construir com referências ao espaço físico e social de determinados contextos angolanos, o poema Criar”, publicado na antologia Poesia negra de expressão portuguesa, em 1953, e também no livro Sagrada Esperança resume uma proposta que só aparentemente inverte as direções apontadas em outros poemas analisados neste artigo. O tom solene do poema emblematiza a atitude de respeito com que o poeta traça o caminho a ser percorrido em busca da liberdade, na transposição dos obstáculos que se põem a cada momento. O ato criativo é, então, o incentivo à esperança, à capacidade do povo para perseguir a vida, “com olhos secos” mesmo quando a brutalidade da opressão corrói os sentimentos e as expressões mais íntimas do povo angolano e do poeta que o canta.

Notas

[1] Este texto retoma e amplia o conteúdo de palestra proferida na Embaixada de Angola em Roma, em 2001.  Está publicado em: FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa – mobilidades e trânsitos diaspóricos. Belo Horizonte: Nandyala, 2015, p. 131-146.

[2] - Luís Kandjimbo (2008) salienta que a geração literária angolana a que pertenceu Agostinho Neto era formada pelos poetas Aires Almeida Santos, Alexandre Dáskalos, Antero de Abreu, António Jacinto, Cochat Osório, Ermelinda Xavier, Lilia da Fonseca, Mário Pinto de Andrade, Mauricio Gomes e Viriato da Cruz.

[3] As imagens fazem parte do poema de Agostinho Neto Fogo e ritmo, publicado também na antologia No reino de Caliban II, 1988.

[4] Os versos são do poema O choro de África (FERREIRA, 1998, p. 97).

[5] Ver as publicações: No reino de Caliban II, de Manuel Ferreira (1988), Mensagem, Casa dos Estudantes do Império, 2 volumes organizados por Manuel Ferreira e publicados em 1996.

[6] Excertos do poema Sábado nos musseques, publicado em Sagrada esperança, 1987, p. 50 - 57.

[7] Luiz Kandjimbo,  no artigo citado neste texto, defende que a formação libertária do escritor advém em parte do fato de ele ter sido criado com os valores religiosos seguidos em sua casa.

[8] Verso do poema “Noite”, do livro Sagrada Esperança, p. 68.

[9] Referencia ao poema “Kinaxixi”, do mesmo livro, p. 86.


Referências

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CALVÃO, Dalva. Agostinnho Neto: o lugar da poesia em tempos de luta. In: SEPÚLVEDA, Maria do Carmo; SALGADO, Teresa. África & Brasil: Letras Em Laços, São Caetano do Sul: Yendis, 2006, p. 1 - 21.

FERREIRA, Manuel; AMARILIS, Orlanda. (Dir.). Mensagem - Casa dos Estudantes do Império. Vol. 1 e 2.   Linda-a-Velha: ALAC, 1992.

FERREIRA, Manuel. No reino de Caliban II. Venda Nova-Amaradora: Plátano Editora, 1988.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008, p. 73 -92.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. A literatura de Agostinho Neto - intenção poética e política. In: Latitudes. Paris, v. 41-42. 2012. P. 72- 77.

KANDJIMBO, Luís. Os itinerários da Identidade Individual de Agostinho Neto, um poeta da Geração Literária de 40 (1940 - 1960). In: PADILHA, Laura Cavalcante; RIBEIRO, Margarida Calafate. Lendo Angola. Lisboa: Edições Afrontamento, 2008, p. 87-106.

KESTELOOT, Lilyan. Aimé Césaire. Paris: Seghers, 1962.

LARANJEIRA, Pires. A negritude africana de língua portuguesa. Lisboa: Edições Afrontamento. 1995.

MAINGENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

NETO, Agostinho. Sagrada esperança: poemas, 11a. ed. Lisboa: Livraria Sá Costa Editora, 1987.

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada UFMG. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995 – 2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas desde 2010. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

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