Apontamentos sobre literatura e oralidade no projeto literário de Luandino Vieira e Mia Couto1

Wellington Marçal de Carvalho2

 

Resumo: A presente reflexão objetiva problematizar a complexa relação estabelecida entre a enunciação literária e as marcas da oralidade, especificamente em projetos literários de países africanos de língua oficial portuguesa. Em termos metodológicos foi realizado levantamento bibliográfico em trabalhos de críticos literários, historiadores, filósofos, sociólogos oriundos de diferentes espaços africanos, brasileiros e de outras partes do mundo que, de distintas maneiras, se dedicaram a pensar essa relação de saberes. São retomadas algumas considerações a respeito da feição oralizada da literatura em prosa dos escritores José Luandino Vieira, angolano, bem como de Mia Couto, moçambicano. A discussão permitiu, ao fim, referendar a maestria alcançada pelos escritores que se mostram habilidosos em construir textos cuja estrutura ancora-se no imbricamento entre o mundo da fala e o da escrita.

Palavras-chave: Oralidade; Literaturas de língua portuguesa – crítica e interpretação; Tradição oral.


Notes on literature and orality in the literary project of Luandino Vieira and Mia Couto

 

Abstract: The present reflection aims to problematize the complex relationship established between literary enunciation and the marks of orality, specifically in literary projects of African countries whose official language is Portuguese. In methodological terms, a bibliographic survey was carried out on works by literary critics, historians, philosophers, sociologists from different African, Brazilian and other parts of the world who, in different ways, dedicated themselves to thinking about this relationship of knowledge. Some considerations are resumed regarding the oralized feature of prose literature by the writers José Luandino Vieira, Angolan, as well as Mia Couto, Mozambican. The discussion allowed, at the end, to endorse the mastery achieved by the writers who show themselves skilled in building texts whose structure is anchored in the overlap between the world of speech and that of writing.

Keywords: Orality; Portuguese language Literature – criticism and interpretation; Oral tradition.

 

Apuntes sobre la literatura y la oralidad en el proyecto literario de Luandino Vieira y Mia Couto

 

Resumen: El objetivo de este trabajo es problematizar la compleja relación que se establece entre la enunciación literaria y las marcas de la oralidad, específicamente en proyectos literarios de países africanos cuya lengua oficial es el portugués. En términos metodológicos, se realizó un relevamiento bibliográfico sobre obras de críticos literarios, historiadores, filósofos, sociólogos de distintos países africanos, brasileños y de otras partes del mundo que, de diferentes formas, se dedicaron a pensar en esta relación de conocimientos. Se retoman algunas consideraciones sobre el rasgo oralizado de la literatura en prosa por los escritores José Luandino Vieira, angoleño, y Mia Couto, mozambiqueño. La discusión permitió, al final, evaluar el dominio alcanzado por los escritores que se muestran habilidosos en la construcción de textos cuya estructura se ancla en la superposición entre el mundo del habla y el de la escritura.

Palabras clave: Oralidad; Literatura en lengua portuguesa – crítica e interpretación; Tradición oral.

 

Introdução

Como se efetivam os agenciamentos entre a tradição oral e a literatura produzida por escritores em alguns países de África? Pretende-se neste trabalho trazer à baila algumas reflexões, quer de estudiosos do texto literário, quer pelos próprios escritores, sobre elementos que possibilitem um melhor entendimento desse fenômeno. Para tanto, a metodologia adotada consistiu em cotejo em parte da fortuna crítica dedicada à temática. Buscar-se-á, ao fim, demonstrar a importância elementar do imbricamento da oralidade na literatura para materializar a memória das ex-colônias portuguesas, notadamente, Angola e, em maior parte, Moçambique, na perspectiva apontada neste ensaio.

O contato com os estudos culturais e literários africanos sublinhou a necessidade de se conceituar, a priori, o que se entende por ‘oralidade’. Segundo Leite (1998, p. 16) o conceito de oralidade deve ser pensado em uma dimensão mais ampla, abrangendo o sentido de Oratura e Tradições Orais ou ainda de Literatura Oral. Será sob esta dimensão que este trabalho irá se desenvolver, partindo, primeiramente, de uma incursão nos estudos que se debruçaram sobre o lugar da tradição oral nas culturas africanas.

Como afirma Leite (1998, p. 16-29), a oralidade é também uma atitude perante a realidade e não a ausência de uma habilidade, e a fronteira que separa a literatura da oralidade não é tão perceptível. O texto literário constrói um mundo fictício através do qual modeliza o mundo empírico, representando-o e instituindo uma referencialidade mediatizada.

Poder-se-ia concordar com a crítica são-tomense Inocência Mata, que vê nessa “textologia literária” uma espécie de sincretismo escritural. Para Mata:

No contexto de um expansivo e subterrâneo sincretismo escritural, estes dois universos [oralidade e literatura] vão-se contaminando de forma irreversível, daí emergindo uma “outra” língua que a textologia literária capta, tanto a nível da inventividade lingüística (morfo-sintáctica e lexical, porventura a mais visível das contaminações), quanto a nível da “ontologia” da materialidade discursiva, da composição formal, que a modalidade genológica (os gêneros do modo narrativo) actualiza na estruturação textual. (MATA, 2015, p. 84).

Um texto diagnosticado com essas múltiplas contaminações instrumentalizaria outra vertente da materialidade e sobrevivência de tradições. E, na tradição africana, fator elementar é o uso responsável da coisa sagrada que é a palavra.

A discussão do tema proposto nos leva a considerar que vários ‘dogmas’ insculpidos pela visão eurocentrista do mundo podem ser desmontados, como, por exemplo, os que postulam serem as literaturas produzidas em África natural e unicamente enquadradas no gênero das estórias curtas, os contos.

Se focalizadas as nações de língua portuguesa do continente, não serão poucos os exemplos de obras do gênero romance que, muito embora não tenham sido gestadas com o fim específico de registrar fatos históricos da realidade, todavia foram moldados (os fatos) e burilados ao sabor das dicções de cada escritor. É incontestável que uma leitura mais acurada poderá recolher, nesses romances, indícios suficientes para um resgate da memória coletiva dos acontecimentos históricos dessas nações. Não seria descabido, em hipótese alguma, afirmar que alguns desses romances funcionaram como verdadeiras obras de fundação da literatura de parcela do continente da qual emanam.

Uma mirada no vasto leque de romances do escritor angolano Luandino Vieira e do escritor moçambicano Mia Couto, apenas para citar dois autores, poderia demonstrar a nossa afirmativa. É válido resgatar Kundera, na passagem a seguir:

Foi um poema do jovem Césaire que desencadeou tudo: “Cahier d’um retour au pays natal” (1939); a volta de um negro para uma ilha antilhana de negros; sem nenhum romantismo, nenhuma idealização (Césaire não fala dos pretos, fala expressamente dos negros), o poema se pergunta, brutalmente: quem somos nós? Meu Deus, realmente, quem são eles, aqueles negros das Antilhas? Foram deportados da África para lá no século XVII; mas de onde exatamente? De que tribo faziam parte? Qual era a língua deles? O passado foi esquecido. Guilhotinado. Guilhotinado por uma longa viagem nos porões, entre cadáveres, gritos, choro, sangue, suicídios, assassinatos; nada restou depois dessa passagem pelo inferno; nada a não ser o esquecimento: o esquecimento fundamental e fundador. O inesquecível choque do esquecimento havia transformado a ilha dos escravos em teatro dos sonhos; pois só pelos sonhos os habitantes da Martinica poderiam imaginar a própria existência, criar sua memória existencial; o inesquecível choque do esquecimento tinha elevado os contadores de histórias populares à categoria de poetas da identidade e legaria mais tarde seu sublime legado oral, com suas fantasias e loucuras, aos romancistas. (KUNDERA, 2006, p.147, grifos nossos).

O questionamento de Césaire, assim como a incursão do ‘legado oral’, de acordo com a expressão de Kundera, no registro escrito, na literatura e, especificamente, no gênero romance, encaminha a incessante procura por respostas, ou mesmo pontos de ancoragem acerca do lugar que aproxima esses projetos, sob certa medida, de constituição e afirmação de espaço-temporalidades, gestadas a partir da conexão de saberes das tradições orais e da literatura.

Acerca dos enclaves da cultura oral na literatura

A tradição oral é a grande escala da vida e para Hampaté Ba (2010, p. 169) é dela que se recuperam e se relacionam todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo, e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados.

Por outro lado, o filósofo, sociólogo e doutor em letras beninense Honorat Aguessy (1977) lembra que

uma das características das culturas africanas tradicionais, a sua característica essencial, é a oralidade. [...] Porque, mesmo quando se utiliza a escrita, a tradição, que dissemos ser sinônimo de atividade, apenas se expande autenticamente, na maioria dos Africanos, pela oralidade. [...] A oralidade é tanto um efeito como causa de um certo modo de ser social. Denuncia relações sociais específicas privilegiando certos fatores de estratificação ou de diferenciação social, tais como a detenção da palavra, que é sinal de autoridade, a iniciação a conhecimentos que constituem uma espécie de saber mínimo garantido, que qualifica o indivíduo. (AGUESSY, 1977, p. 108, 113, 114).

O angolano Carlos Serrano (2007, p. 145) reafirma a importância da oralidade no continente africano, destacando que “em muitas das sociedades que conhecia a escrita, formas não-orais de comunicação eram entendidas como parciais e incompletas.” O estudioso ressalta a importância dos griots em espaços da África Ocidental, encarregados de armazenar na memória “contos, histórias e provérbios, além das genealogias e dos feitos de reis e de imperadores famosos” (SERRANO, 2007, p. 145).

Para o especialista em história da África e em tradição oral, o belga Vansina (2010, p. 166), a experiência prática provou que o valor maior das tradições reside em sua explicação das mudanças históricas no interior de uma civilização. Por esse motivo, apesar da abundância de fontes escritas relativas ao período colonial, subexiste a necessidade de se recorrer constantemente aos testemunhos oculares ou à tradição para completá-las, a fim de tornar inteligível a evolução do povo.

Na concepção do professor e historiador queniano Ali A. Mazrui (2010, p. 688) os escritores africanos, ao serem confrontados aos males de um esquartejamento múltiplo – político, educacional, lingüístico, estético e técnico -, compuseram a vanguarda da luta para reaver a memória, em busca de uma derradeira renovação.

De acordo com Fonseca (2009, p. 144) a escrita se faz em proximidade com o trabalho do antropólogo, que ausculta tradições orais e fornece ao poeta material para a feitura dos textos. A recolha das histórias, depoimentos e a observação de rituais de (re)criação do mundo fomentam a escrita, e nela as tradições se manifestam não mais como expressão e hábitos de vida, mas como matéria de poesia.

Cada literatura nacional africana tem as suas características próprias e desenvolve-se segundo processos estéticos e linguísticos, cuja distintividade resulta não apenas das diferenças culturais étnicas de base, mas também das nuances linguísticos-culturais que a colonização lhes acrescentou (LEITE, 1998, p. 27).

De acordo com Mazrui (2010, p. 668) é legítimo, principalmente nas sociedades de tradição oral, considerar a arte oratória e a eloquência como formas de criação literária. Para Vansina (2010, p. 140-142), as tradições requerem um retorno contínuo à fonte. Um texto oral deve ser escutado, decorado, digerido internamente como um poema, e cuidadosamente examinado para que se possam apreender seus muitos significados. Um estudioso que trabalha com tradições orais deve compenetrar-se da atitude de uma civilização oral em relação ao discurso, atitude essa totalmente diferente da de uma civilização em que a escrita registrou todas as mensagens importantes. A tradição oral pode ser considerada como um testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra.

Não por acaso, José Miguel Lopes (2003), estudioso da oralidade moçambicana, ressalta que o discurso oral, de um modo geral, tem na repetição uma de suas marcas mais peculiares. É comum atribuir-se o fenômeno à necessidade de reforçar a informação contida numa mensagem que se desenvolve linear e irreversivelmente na cadeia do tempo e que, por essa razão, não permite qualquer espécie de revisão, quer por parte do emissor, quer por parte do receptor. Há, pois, um retorno constante às palavras ou sentidos-chave, em um esforço para evitar a dispersão em relação ao conteúdo fundamental (LOPES, 2003, p. 272-273).

Ainda de acordo com Lopes (2003, p. 273), na esfera da poesia oral, de modo geral, e da africana, mais particularmente, a repetição é uma das suas dominantes, concretizando-se em diversos níveis: no nível da palavra, do verso e até de grupo de versos, bem como no nível do sentido, com recurso a palavras diversas. Essa característica se manifesta na quase totalidade dos gêneros poéticos orais africanos. A questão não tem a ver com negar a importância da oralidade em África e nas literaturas africanas, mas antes com o modo como foram construídas e são entendidas as categorias intelectuais de oralidade e, nesse viés, de escrita e de literatura (LEITE, 1998, p. 14).

Fonseca (2009, p. 139), ao retomar Stuart Hall, lembra que não há traços fixos, nem uma essência em etnia ou nação alguma, a não ser como uma representação imaginária e ideologicamente sustentada. É a noção de impureza que facilita operar com as múltiplas lógicas de desenvolvimento que se exibem, em escala fenomenal, nos países periféricos da América Latina, da África, da Ásia, mas não apenas. O conceito de impureza possibilita, para além disso, transitar por propostas literárias com a intenção de observar estratégias de produção textual que afirmam ser a impureza a mola que movimenta textos produzidos com deliberada atenção aos intercâmbios, às trocas fecundas entre diferentes linguagens.

O próprio nascimento de uma literatura escrita em línguas européias marcou uma importante ruptura em relação às tradições coletivas de um patrimônio transmitido oralmente (MAZRUI, 2010, p. 683).

Vale ainda destacar à visão do historiador senegalês, especialista no mundo mandingo, Djibril Tamsir Niane (1982, p. 65): “Há povos que se servem da linguagem escrita para fixar o passado; mas acontece que essa invenção matou a memória entre os homens: eles já não sentem mais o passado, visto que a língua escrita não pode ter o calor da voz humana.”

Leite (1998, p. 17), de certa maneira, opõe-se a visão de Niane ao considerar que a predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e históricas e não uma resultante da ‘natureza’ africana. Merecem ser destacadas algumas ponderações de Leite (2010, p. 160) em que a autora constata que a cultura oral não desaparece, assim como não desaparece a literatura oral, pelo fato de passar a existir literatura escrita.

Ainda é o próprio Mazrui (2010, p. 677-678) quem compartimenta em sete grandes temas que denotam a autenticidade da literatura produzida em África: 1) passado X presente de África; 2) tradição X modernidade; 3) oposição mundo autóctone X mundo estrangeiro; 4) conflito indivíduo X sociedade; 5) dilema socialismo X capitalismo; 6) dilema desenvolvimento X autossuficiência e 7) relação entre africanidade X humanidade.

À título de ilustração, podem ser observados os escritores Luandino Vieira, angolano, e Mia Couto, de Moçambique. Em romances de Luandino Vieira ou de Mia Couto sobejam elementos que subsidiam a conclusão de que fôlego não faltou a esses escritores e, muito menos, engenho, no sentido de se valer da oralidade para compor e, nesse viés, fundar uma literatura que se construiu associada, visceralmente, às tradições orais de seu torrão natal. Essa imbricação, esse trânsito entre o mundo da fala e o da escrita, em diferentes estratégias, é realizado pelos escritores e carregado para suas obras (FONSECA, 2016, p. 15). Ao fim, compõem percurso marcadamente estético e, ao mesmo tempo, político. Em processo de oralização da escrita, como bem acentua Padilha (2007, p. 214), referindo-se à literatura angolana, a escrita literária brota de uma singular ambiência e finca os pés no acervo de tradições orais que vários estudiosos denominam de literatura oral, oratura e oralitura.3 Destaca-se a apropriação do neologismo oralitura feita pela professora brasileira Leda Maria Martins, com a intenção de fazer do termo um operador conceitual, pertinente ao estudo das modulações da voz presentes na enunciação narrativa.

Luandino e Mia Couto, segundo Fonseca (2000), assumem um compromisso com a expressão de uma literatura que se fazia em tempos duros: Luandino, preso por 17 anos, grande parte deles no Campo de Concentração do Tarrafal; Mia, atravessando os diferentes momentos da guerra pró-independência de Moçambique.

A vivência de Luandino fez com que sua produção literária testemunhe um conhecimento vivido no musseque e, por conseguinte, elabora uma linguagem do entre-lugar (ROSA, 2002). Para Carvalho

O período no qual se deu grande parte da concepção da obra luandina, ou seja, aquele em que Angola ainda era uma colônia de Portugal, por si só, não era favorável ao trabalho do escritor. Acrescenta-se a isso o fato da experiência estética empreendida por Luandino Vieira, na qual, ousadamente, introduz feições de uma língua portuguesa angolanizada, uma linguagem mais apta a representar a fala mussequeira. (CARVALHO, 2014, p. 70).

Obviamente, não se trata de uma simples transposição, cabal, do ruído apreendido na urbe. Muito pelo contrário, Luandino lapida, revira, insculpe e potencializa a significação do que ausculta, habilmente, na tessitura de sua obra literária. Relevante mencionar que Luandino o faz também como forma de transgressão, por meio do trabalho com a língua, desconstruindo e rasurando o lugar comum do qual, na maioria das vezes, foram vistos e pensados os países de África.

De acordo com Guimarães (2007), Luandino afirmara em uma entrevista ao jornal O Globo, de 17 de novembro de 2007, que sua “ficção sempre se alimentou da memória. É do que se inscreveu na memória que retiro o material que submeto a todos os maus-tratos possíveis sobre ele”.

O romance de Luandino, Nosso musseque, tematiza rememorações de uma infância vivida no musseque por meio de uma linguagem mais próxima da voz e da oralidade. Em João Vêncio: os seus amores ilustra-se o trabalho operado com o texto em que se apresenta argutamente a prática da contação de estória através do narrador que interpela seu leitor a todo instante, traço bem particular da cultura oral.

Por sua vez, Mia Couto, no ‘Texto de abertura’ de seu primeiro livro de contos, intitulado Vozes anoitecidas, registra: “Estas estórias surgiram em mim sempre e a partir de qualquer coisa acontecida de verdade...” Para Sampaio (2008), Mia reafirma a importância da experiência e do convívio do escritor com as culturas africanas de tradição banto, essencialmente oral, pois só a partir desse convívio a oralidade poderá ser recriada no trabalho poético com a linguagem.

O estilo de Mia é, como atesta Chagas (2007), caracterizado pela ludicidade e, paradoxalmente, por uma seriedade imensa, transformando o texto literário em jogo de reflexão permanente sobre a cultura e história de Moçambique.

No que toca a literatura produzida pelo moçambicano Mia Couto, Sampaio (2008, p. 58-59) ressalta que esse escritor declara, em várias entrevistas concedidas, que não gosta de ver seus textos analisados apenas como qualquer coisa que seja uma brincadeira em nível de vocábulos. O trabalho vocabular – seja a inserção de palavras africanas, a modificação destas por afixos portugueses ou os neologismos – só se torna importante porque mostra a riqueza da oralidade e da convivência linguística em Moçambique. Para ele, a reconstrução da linguagem que existe em seus livros só é possível em função da realidade linguística de Moçambique, desse ‘novo nascimento’ do português em meio às línguas africanas. É a experiência do dia a dia e a percepção da liberdade com que o português é falado que permitem e oferecem ao autor recursos suficientes para construir também um novo português escrito, que marca todos os livros de Mia Couto. Neles, a relação da escrita com a realidade cultural africana se dá por meio da experiência e da oralidade, a partir das estórias ouvidas e através de um processo de travessia de uma margem a outra, da oralidade à escrita, da realidade ao sonho.

Para Sampaio (2008, p. 75), não se trata de uma transcriação da realidade. Mia usa palavras africanas e estruturas da oralidade como estratégia de se marcar a diferença, a alteridade, de inserir a voz e o corpo daquele que escreve, daquele que lê e, sobretudo, daqueles sobre os quais os textos falam, refletindo suas culturas.

Assim, Mia Couto recria a oralidade através de um língua literária sustentada por uma exuberante criatividade lexical e uma sintaxe, que fazem a ponte entre a oralidade e a pura invenção, em que o contexto comunicativo, estético, possibilita a partilha da mensagem de ruptura (LOPES, 2003, p. 293). Nos romances A varanda do frangipani e Antes de nascer o mundo, podem ser ressaltadas as relações, quase sempre tensas, entre a oralidade e a escrita, plenas de êxito enquanto produções que materializam o imbricamento, operado pelo autor, da literatura e as tradições orais.

Palavras finais

De tudo o que foi dito, merecem ser destacadas algumas ponderações de Leite (2010, p. 160) em que a autora constata que a cultura oral não desaparece, assim como não desaparece a literatura oral, pelo fato de passar a existir literatura escrita. Produz-se, todavia, uma síntese em que as características da cultura oral são absorvidas, assimiladas e reorganizadas em uma nova experiência cultural. E acontece também que aspectos vitais da literatura oral são absorvidos na literatura escrita emergente, com uma energia vernacular, por meio de metáforas e de símbolos, enredos mais ou menos complexos e diversificadas estruturas de sentido. Essa síntese só é possível quando o escritor detém profundo conhecimento da sua cultura, da tradição narrativa, das formas retóricas orais, conhecimento da familiaridade necessária para com uma audiência de ouvintes e, concomitantemente, de leitores, ou seja, a capacidade de controlar a escrita e os seus protocolos, movendo-se agilmente dentro e entre as duas colunas.

Nos espaços africanos de língua portuguesa, mesmo significados por projetos literários distintos, é possível ouvir, em muitos textos escritos, o burburinho característico da oralidade. Essa constatação é que incentivou, neste trabalho, a incursão em visões teóricas que se dedicaram a problematizar e tentar compreender as múltiplas faces em que opera a oralidade, notadamente, na cultura dos povos africanos, permitiu melhor visualização do cenário abrangido por esta categoria conceitual, ainda que célere.

Para além disso, uma possibilidade de desconstrução de determinados ‘dogmas’, ou, idiossincrasias que grassavam sobre a literatura africana, foi aqui realizada: i) verificou-se que não somente das narrativas curtas é formado o acervo literário daquele continente; como também o fato de que, ii) a presença, expressiva, de indícios da(s) oralidade(s) no texto literário é muito mais em função de condições históricas e materiais do que de uma suposta anima africana.

Espera-se que, a partir dessas breves considerações, um percurso interpretativo tenha sido construído para tentar elucidar como se articulam, na literatura produzida em certos países africanos, elementos próprios da tradição oral que nutriram o processo de criação literária de alguns escritores daquele continente.

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Notas

[1] Artigo originalmente publicado na Kwanissa: Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, v. 6, 2020.

[2] Wellington Marçal de Carvalho é Pós-Doutorando em Estudos Literários pela FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED), desde 2011. Autor dos livros: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014) e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). É um dos organizadores do livro Deslocamentos estéticos (2020). E-mailEste endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[3] Vejam-se, nesse sentido, os estudos de Pio Zirimu (1998), de Uganda, Lourenço do Rosário (2001), de Moçambique, Ngungi wa Thiongo (2007), do Quênia sobre o termo “oratura”; os dos haitianos Ernst Mirville (1984), Maximilen Laroche (1991), os martiniquenses Patrick Chamoiseau e Raphael Confiant (1991) e as brasileiras Leda Maria Martins (1997) e Terezinha Taborda Moreira (2005) sobre o termo “oralitura”.


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