Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras, de Laura Cavalcante Padilha[1]
Susanna Ramos Ventura[i]
Novos pactos, outras ficções: Ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras, a mais recente obra da ensaísta e professora Laura Cavalcante Padilha, da Universidade Federal Fluminense, publicada em Porto Alegre pela Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (EDIPUCRS) em 2002, constitui o volume 10 da Coleção Memória das Letras (que, com 20 volumes até o momento, publica produções de teóricos e ensaístas brasileiros). O livro colige 29 ensaios, precedidos de prefácio da própria autora e apresentação da teórica santomense Inocência Mata, docente na Universidade de Lisboa. Vários dos ensaios que estão reunidos neste volume foram escritos e publicados na década anterior a esta publicação. Segundo a própria autora nos indica no prefácio, os ensaios representam algumas de suas reflexões sobre as literaturas africanas, especialmente a angolana, abarcando também as literaturas portuguesa e brasileira (esta última representada por obras produzidas por afrodescendentes).
O dinamismo que caracteriza a autora - que além das atividades exercidas como docente, tem estado em anos recentes à frente de várias associações (ABRALIC, ANPOLL), e como organizadora de Congressos e Encontros marcantes para o desenvolvimento do estudo das literaturas de língua portuguesa no Brasil, - transparece na construção de ensaios de grande densidade crítica. Neles, para usar termos caros à ensaísta, as “malhas” muito bem urdidas e matizadas de suas reflexões formam um “tapete” pleno de beleza e complexidade que requer e propicia várias leituras.
Como ressalta Inocência Mata na Apresentação, este trabalho da ensaísta continua as reflexões das obras anteriores: A ilustre casa de Ramires: o espaço do desejo (1989) e, especialmente, Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana (1985), confirmando-a como uma das mais conceituadas vozes críticas das literaturas de língua portuguesa no Brasil, com ênfase na literatura angolana.
O livro se divide em três grandes blocos de ensaios, nomeados respectiva- mente: “Dobras narrativas”, que compreende treze ensaios; “Novas fiandeiras de palavras”, com seis ensaios; e “Diálogos, reconversões, contaminações”, com dez ensaios. “Dobras narrativas” é composto por ensaios em que as reflexões partem ou convergem para as literaturas africanas de língua portuguesa. O recorte, no mais das vezes, privilegia a literatura angolana como ponto central de reflexões, a partir das quais se irradiam laçadas para as demais literaturas em língua portuguesa. Em “Novas fiandeiras de palavras”, a produção feminina nas literaturas de língua portuguesa é analisada tanto em seu aspecto literário, como são abordadas questões aparentemente externas à obra literária que, no entanto, no caso das mulheres, são reveladoras de preconceitos e barreiras que as cercaram e ainda as cercam.
No bloco de ensaios que fecha o livro, “Diálogos, reconversões, contamina- ções”, a autora empreende uma atitude crítica que privilegia questionamentos teóricos, inter-relações entre a literatura e outras artes, reflexões sobre gênero, buscando o caminho para uma aproximação teórica das literaturas africanas de língua portuguesa de maneira mais precisa e pertinente às suas particularidades. Vasto é o elenco de autores e teóricos abordados nos ensaios; no entanto, alguns são mais trabalhados e referidos nos ensaios que partem da literatura angolana produzida a partir da segunda metade do século XX e dialogam com outras literaturas de língua portuguesa. Assim, Boaventura Cardoso, Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Ruy Duarte de Carvalho, Luandino Vieira, Henrique Abranches, Ana Paula Tavares e Alda Lara (Angola) são intensamente trabalhados. A partir das reflexões sobre a obra destes autores, laçadas de diferentes âmbitos alcançam Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Noémia de Sousa (Moçambique), Helder Macedo (Moçambique e Portugal), Eça de Queirós (Portugal). No Brasil, merece destaque a obra do poeta Edimilson de Almeida Pereira.
No que diz respeito aos diálogos com teóricos, a ensaísta constrói seu texto em estreita relação com interlocutores que a auxiliam na construção de suas reflexões. Sempre presentes, destacam-se as reflexões de Homi Bhabha, Boaventura de Sousa Santos, Roland Barthes, Octávio Paz e Benedict Anderson. A maneira de trabalhar com as citações de outros teóricos aponta para a medida em que estas estão imbricadas na construção do próprio pensamento crítico da ensaísta. O ponto nodal da construção teórica da ensaísta, que amadurece desde a obra anterior, Entre voz e letra, parece-nos apontar para as imbricações entre voz e letra (criando o que a ensaísta chamará de “falescrita”), entre poesia e prosa que tipificam e diferenciam a produção das literaturas africanas contemporâneas, em especial a angolana, tornando ímpares as produções dessas literaturas.
A escrita demonstra grande entusiasmo da ensaísta pelo corpore tratado. O leitor percebe de imediato a profunda emoção da crítica diante de seus objetos de estudo. No entanto, ao mesmo tempo, exercita o distanciamento ao mapear com precisão os contornos de seus objetos, mostrando ao leitor a complexidade histórico-social vivida pelas sociedades onde se produzem as obras, que levaram por vezes a literatura, no período estudado pela ensaísta, a plasmar artisticamente os sonhos mais ousados para, na sequência, descortinar diferentes visões diante do desencanto mais cruel que, por vezes anuncia, nas palavras de Laura, a “quase morte” das utopias.
No que diz respeito ao tratamento geral dado ao continente africano nesta obra da ensaísta, notamos que ela parte ou do todo “África” para então executar recorte (normalmente centrado em Angola) ou vice-versa, do recorte expande para a totalidade, matizando sempre a possibilidade de determinadas afirmações poderem corresponder a aspectos do todo, dada a enorme diversidade africana, que, no entanto, apresenta constantes evidenciadas por Laura Padilha.
Outra particularidade da ensaísta reside na maneira singular com que trabalha o fenômeno literário em vários âmbitos – tanto na análise dos textos, feita com paixão, sensibilidade e acuidade, como no desvendamento dos aspectos histórico-políticos em que a obra foi concebida, em análises que surpreendem pelas várias angulações adotadas. Como portadora de uma câmera cinematográfica cheia de recursos, a ensaísta ora trabalha em close, ora em grandes planos. Podemos exemplificar estas afirmações com aspectos de alguns ensaios. Se no primeiro ensaio do livro, “Faca amolada: tradição e ruptura em Boaventura Cardoso”, Laura Padilha se detém na análise literária mais clássica, dissecando o texto com precisão, em outros dois ensaios da primeira parte, “A semântica da diferença” e “Por terras de África com Helder Macedo e Mia Couto”, ela elege como chave de entrada num romance de Mia Couto a análise das epígrafes. Do bloco de ensaios que compõem a segunda parte do livro, um dos mais surpreendentes é o de abertura: “A diferença interroga o cânone”, em que Laura Padilha analisa “de fora” a concepção de duas obras canônicas: A antologia No reino de Caliban, de Manuel Ferreira, e os livros de entrevistas de Michel Laban, Encontros com escritores (Angola e Cabo Verde), para verificar, primeiro, o número de mulheres presentes nas obras, prosseguindo com a investigação minuciosa de aspectos que escapam a um olhar desatento, mas que são destacados de maneira a evidenciar a real “posição” das escritoras nas obras – discriminadas, mesmo de maneira involuntária. Além de comparecerem em número muito menor – o que poderia ser facilmente justificado pela falta de acesso das mulheres à cultura (a começar pela falta de acesso à alfabetização), outros indícios são buscados para, com técnica puntilista, formar o quadro: nas biografias propostas na obra de Manuel Ferreira, por exemplo, as escritoras normalmente aparecem referidas como filiadas a homens de destaque (netas, filhas, esposas), ou então altamente tituladas, exercendo posições de destaque no ensino ou em algum ramo da cultura.
De modo geral, os exemplos apontam alguns dos caminhos trilhados pela ensaísta, que compõe, com esses elementos, um ensaio a partir de fora dos textos. Do último bloco de ensaios, destacamos aquele que fecha o livro, “Entre obediência e rebelião”. Laura Padilha nos remete para o período do começo dos estudos de literaturas africanas no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, em que se enfrentavam obstáculos tanto ideológicos quanto de ausência de teorização. Destaca, então, a importância dos teóricos Silviano Santiago e Antonio Candido que, em ensaios produzidos no início da década de 1980, ajudaram na formação do arcabouço teórico brasileiro sobre as literaturas africanas, uma vez que suas reflexões sobre o lugar do intelectual latino-americano e sobre a dependência cultural dos países considerados então como subdesenvolvidos puderam atender às necessidades teóricas dos que abordavam pela primeira vez as literaturas africanas.
Desta maneira, ao encerrar seus ensaios com uma reflexão sobre o começo dos estudos de literaturas africanas no país, Laura Padilha nos permite vislumbrar o longo caminho percorrido pelos estudiosos brasileiros até que se pudesse chegar ao presente momento, em que algumas obras do porte de Novos pactos, outras ficções: Ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras têm sido publicadas no Brasil.
NOTAS
[1] Originalmente publicado na Revista Via Atlântica, nº 8, dezembro/2005.
i Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (2006). Trabalha com Literatura de Autoria Feminina, Literatura, Língua e Cultura dos Países de Língua Portuguesa e Literatura Contemporânea. Tem publicações sobre as literaturas contemporâneas produzidas no Brasil, Portugal, Cabo Verde, Angola e Moçambique.
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