Os recantos da memória e os cantos e encantos da linguagem (Boaventura Cardoso e Guimarães Rosa: aproximações possíveis)[1]
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco [i]
Parece-nos que se pode falar francamente de um pensamento artístico polifônico de um tipo especial, que (...) atinge, acima de tudo, a consciência pensante do homem e o campo dialógico do ser (Bakhtin, 1981, p. 237)
Esse tipo de pensamento tão característico da obra de Guimarães Rosa perpassa também a de Boaventura Cardoso. Esta comunicação pretende, analisando o último romance do escritor angolano, intitulado Mãe, materno mar, tecer algumas aproximações possíveis com a obra do referido escritor brasileiro.
Boaventura, como um "ferreiro tradicional", trabalha seus textos como "exercícios de escrita", modelando com o "fogo da fala" a forja de sua escritura, na qual reinventa a cálida chama da oralidade, as centelhas de conhecimentos e saberes apreendidos à volta da fogueira. Sua ficção inaugura, assim, um estilo todo seu, no qual o dom de ouvir, de ver, de sentir, de relatar e de lidar criativamente com inusitados aspectos e conotações de palavras, frases, provérbios, possibilita a realização de uma polifonia discursiva que, penetrando nos recantos da memória oral angolana, traz à cena textual as reminiscências das tradições e os cantos e encantos da fala angolana poeticamente recriada. Em entrevista à Lavra & Oficina, o escritor explicita um de seus processos de criação mais significativo:
A recriação linguística a partir da fala falada é, pois, urna constante e sê-lo-á nos próximos romances. É que não sei relatar de outro modo o falar do nosso povo. Sinto, corno disse o grande escritor brasileiro Guimarães Rosa ao crítico Günter W. Lorenz, que "existem elementos da língua que não podem ser captados pela razão; para eles são necessárias outras antenas". (Cardoso, 1998, p. 4)
Mãe, materno mar tece um polifônico painel dos múltiplos costumes, ritos e religiosidades dispersos em diferentes regiões angolanas, ao mesmo tempo que faz a denúncia da miséria do povo e do atraso em que se encontra o país, decorrência dos longos períodos de guerras e da manipulação religiosa exercida por líderes de várias igrejas evangélicas surgidas principalmente a partir de 1980.
Mãe, materno mar se organiza como um grande missosso, cujas diversas camadas narrativas, formadas pelos fios cruzados e entrecruzados de várias estórias, encaixam-se ao eixo principal condutor do enredo: o da viagem de um comboio que sai de Malange, com destino a Luanda. O romance opera com o tema e as metáforas da viagem. Viagem de Manecas, o protagonista, que parte para a capital à procura de emprego, mas conserva ainda resquícios da infância mimada, comportando-se como um menino que sofre de "complexo de Peter Pan" e não consegue libertar-se das amnióticas águas maternais. Viagem pelos mitos, ritos e religiosidades; pela memória, cultura e história de Angola. Viagem também pela própria escrita, em busca, cada vez mais, de uma linguagem que, captando e recriando expressões, formas e maneiras angolanas de falar e pensar, possa, acrescida da lucidez política e da capacidade de elaboração poética do discurso enunciador, fazer uma profunda e crítica leitura do paíscena e começa a contar a estória, apresentando Manecas. No entanto, a distância típica do narrar onisciente logo se reduz. Fragmentos de pensamentos interiores do protagonista vêm à tona pela técnica do discurso indireto livre. Duas viagens, então, se superpõem na teia romanesca: a do presente, física, que conduz o comboio para Luanda, e a do passado, subjetiva, que traz as recordações da mãe e da infância de Manecas, fazendo-o mergulhar nos subterrâneos da própria memória. Embora nascido em Malange, o personagem desconhecia o interior e os costumes populares de Angola. Seu imaginário era urbano, estava ligado ao mar e ao litoral, formado que fora pelas maternais estórias que lhe acalentavam desejos de chegar ao "marulhento azulmar". Representante de gerações crescidas durante a época do partido único que subira ao poder após 1975, Manecas não tinha religião e quase nada sabia das tradições culturais do seu povo. A viagem para ele se converte, pois, em aprendizagem rumo às raízes africanas que nem o colonialismo, nem o marxismo ortodoxo dos primeiros tempos da independência cultivaram e que, muitas vezes, reprimiram.
Interessante observar a constante mudança de dicção da voz enunciadora: ora lírica e mitopoética, ao descrever a paisagem, os pássaros, os campos, os rios, enfim a própria terra (lembrando, por vezes, o estilo do escritor brasileiro Guimarães Rosa, aliás de início convocado pela epígrafe "O dormir do peixe é a água que se descuida" (Rosa, 1970, p. 34), a qual, constituída por um provérbio, deixa entrever também no romance de Boaventura o gosto pela oratura, a opção pelo trabalho de recriação da fala e dos ditos populares), ora irônica, satírica, carnavalizadora, nos momentos em que efetua a análise dos costumes, hábitos alimentares, religiosidades, práticas políticas presentes na atual sociedade angolana.
Mãe, materno mar se divide em partes significativamente intituladas "A terra", "O fogo" e "A água", três dos quatro elementos primordiais, sem os quais, de acordo com as ancestrais cosmogonias africanas, é rompida a harmonia cósmica da natureza, essencial às manifestações da força vital. Intencionalmente, inexiste uma quarta parte intitulada "O ar". Este, efetuando a ligação entre os demais elementos, aparece em toda a narrativa, sob várias formas e conotações. A mais recorrente está vinculada aos sonhos e às recordações de Manecas, aos seus olhares encantados com a paisagem, com o azul dos céus, com as nuvens, com os voos dos pássaros, enfim, com "os bem-vindos ares", cuja simbologia remete à imaginação criadora e à poeticidade da linguagem. O elemento aéreo também é considerado símbolo de espiritualização, significando o sopro divino, o Espírito Santo invocado pelos profetas e pastores. No entanto, no romance, nem sempre os ares são celestiais e poéticos. Algumas vezes, o narrador, assumindo a "aresta cortante da ironia" (Hutcheon, 2000, p. 33) e um tom galhofeiro, vai chamando a atenção para a putrefata atmosfera que envolve a acidentada viagem, uma alegoria da história do país. A involução da intriga romanesca se dá com a primeira avaria do comboio. Das carruagens, metáfora dos estratos sociais angolanos, vão surgindo as personagens típicas, representantes dos ricos, da classe média, dos pobres e dos marginalizados. Carnavalizadoramente, o discurso enunciador vai relatando os embates ocasionados pelo atraso do comboio, a ansiedade dos passageiros, cujas estórias se cruzam: as ocorridas e narradas durante a viagem; as da infância de Manecas, vindas através da memória; as cantadas por Ti-Lucas, o ceguinho que, sem lugar fixo, andava de classe em classe.
A parada em Cacuso e as demais que se sucedem transformam a viagem em conhecimento da própria sociedade angolana, das tradições da terra. Crendices, modas, superstições, preconceitos, religiosidades, rituais vão sendo focalizados pelo narrador, cujo tom crítico e brincalhão pontua e questiona tudo com interjeições as mais variadas, com onomatopeias e com galhofeiros comentários: "Hela!" "eé! eé! eé!" "Haka!" "Uá!" "ih?' Tás brincar ó quê meu?!" Optando pelo chiste, o discurso enunciador mostra o avesso da realidade. Do riso também faz parte o brincar com a linguagem, uma constante não só em Mãe, materno mar, mas na obra toda de Boaventura Cardoso, onde abundam os neologismos, a reelaboração estética de provérbios da- tradição, os jogos e trocadilhos com palavras.
As muitas contendas dentro e fora do comboio evidenciam a banalização da violência, na medida em que, apesar delas e do atraso enorme da viagem, tudo ia acontecendo. Quando as brigas se exacerbavam, as lideranças religiosas vinham acalmar os ânimos. Mas, ao morrerem quatro homens, começaram as sérias dissensões entre as igrejas, pois a cada uma pertencia um morto e os funerais exigiam rituais compatíveis com cada religião. A partir desse incidente, a voz narradora vai revelando a profusão de doutrinas e templos evangélicos surgidos em Angola: a Igreja de Jesus Cristo Negro, a Igreja do Profeta do Bonfim, a Igreja do Profeta Simon Ntangu António, entre outras, cuja raiz africana se evidencia por práticas também encontradas em ancestrais religiosidades de Angola. A perspectiva crítica do narrador acusa também o marxismo dos tempos do partido único, ironicamente visto "como outra igreja que também catequizou muita gente" (Cardoso, 2001, p. 68).
Muitas são as makas entre pastores, profetas e comunistas. Para esclarecê-las é sempre chamado Ti-Lucas, o ceguinho, que não tinha lugar fixo. É ele símbolo da tradição, da sabedoria dos mais velhos. Embora sem enxergar, era quem iluminava os problemas, conforme sugere a etimologia de seu nome: "Lucas, do grego Loukas, que remete à significação de "terra da luz" epifanicamente, lembra o verbo inglês Iocke = ver" (Obata, 1987, p. 201). O cego, paradoxalmente, é o que tem uma profunda visão do mundo. Aliás, em Guimarães Rosa, a cegueira sempre aparece com esse sentido, pois, como adverte o escritor brasileiro, em um dos contos de Primeiras estórias, "mente vigia atrás dos olhos"...
Cabe a Ti-Lucas - espécie de griot, no presente, porque aconselhava, contava casos e estórias orais, e de "ferreiro", no passado, pois aprendera, como soldador mecânico dos Caminhos de Ferro, os mistérios dessa profissão considerada sagrada nas tradições africanas - a resolução dos conflitos através de práticas da tradição.
Entremeando a tessitura romanesca, as canções premonitórias do cego e os cantos da tradição, como o do óbito, entre outros, apresentam-se como resistência aos barulhentos e apelativos cânticos bíblicos das igrejas eletrônicas que se valiam de modernos recursos da mídia para atrair fiéis. O imaginário afro mescla-se ao das doutrinas evangélicas. São muitos os exemplos de sincretismo, perceptíveis, por exemplo, na Igreja do Profeta do Bonfim, filho do Profeta Simão Mukongo - referência aos Simões, líderes do kimbanguismo e tocoísmo -, religiões cujos rituais de cura misturavam cânticos bíblicos, batuques, velas, crucifixos, ex-votos, oferendas de animais e vinho. No romance, estão presentes aspectos da chamada "etnofilosofia", entre os quais provérbios da oralidade que aparecem reelaborados pelo discurso do narrador e vão pontuando as suas críticas, bem como as lições e cantigas premonitórias de Ti-Lucas. Este vai tecendo sábias reflexões sobre o tempo. Para ele, as águas "tanto podiam ser vida, como morte" (Cardoso, 2001, p. 144), tinham a ver com o fluir da existência. Por isso, ensinava: "É preciso saber estar no tempo de outro tempo"(Cardoso, 2001, p. 121). Propunha, assim, a reinvenção do tempo- um supratempo existencial que servisse de antídoto às agruras do real, aos maus tempos sociais. Sua lição se assemelha à de Guimarães Rosa, em um dos prefácios de Tutaméia: "A vida não é para ser lida literalmente, mas no seu supra-senso".
Os conselhos de Ti-Lucas levam Manecas ao tempo da memória, fazendo-o recordar-se da estória do kimbanda a prenunciar para sua mãe que ela daria à luz uma mulher-kianda (Cardoso, 2001, p. 144). Ele, entretanto, nascera um rapaz normal, graças às marítimas oferendas maternas. Talvez por isso tivesse sempre se comportado como "um menino das águas", obcecado pelo mar. "Menino-feminino" (Cardoso, 2001, p. 146), Manecas, de modo semelhante a Diadorim, personagem de Rosa, afigura-se como uma espécie de andrógino primordial, metáfora dos sentidos poéticos e cósmicos do existir.
A viagem acidentada dura quinze anos. Quando, após esse tempo, o comboio chega a Luanda, o Profeta não desce da carruagem, pois perdera o bastão. Só mais tarde o faz, saindo ileso, com a ajuda de um destacamento da polícia. Aos que, ansiosos, o aguardavam, não se apresenta, tornando-se, desse modo, uma alegoria do engodo e da frustração do povo. Os únicos que não se frustram totalmente são Ti-Lucas e Manecas, personagens que conservam certa pureza de sentimentos, além do cultivo das tradições, da profundidade da memória e da liberdade da imaginação. O romance termina em aberto, com o cego e o protagonista molhando os pés no mar. Manecas realiza, assim, seu antigo desejo. Em meio ao desencanto, ao fanatismo religioso, à miséria e à deterioração social dominantes, restam as maternais águas marítimas, que, reunindo em si os princípios cósmicos do feminino e do masculino, da vida e da morte, continuam a embalar os sonhos do protagonista, oferecendo-se como metáfora do indiferenciado primevo que, em sua liquidez, abre-se tanto às origens como ao infinito.
Pela poesia da linguagem e reelaboração criativa dos substratos orais da cultura de Angola, Mãe, materno mar abre-se à "consciência pensante do homem" e à "dialogia existencial do ser", aproximando-se nesses aspectos da obra de Guimarães Rosa.
NOTAS
1 Originalmente publicado na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004, editado pela Editora da PUC Minas.
Referências
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
CARDOSO, Boaventura. Entrevista a Luís Kandjimbo. Lavra & Oficina. Luanda: União dos Escritores Angolanos, v. II, n. 2, p. 4-8, março/abril de 1998
CARDOSO, Boaventura. Mãe, materno mar. Porto: Campo das Letras, 2001.
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2000.
OBATA, Regina. O livro dos nomes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.
ROSA, Guimarães. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
ROSA, Guimarães. Aquário. Ave, palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.31-36.
i Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco é Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1B do CNPq e da FAPERJ. Tem doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense, com estágio na Universidade Politécnica de Moçambique (2009-2010). Publicações: A magia das Letras Africanas (2003); Paulina Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique (2013) em coautoria com Maria Geralda Miranda, Afeto & poesia (2014), Pensando o cinema moçambicano (2018), CineGrafias moçambicanas (2019), CineGrafias Angolanas - Memórias & Reflexões (2022), dentre outros.
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