A influência e percepção do Brasil nas literaturas africanas de língua portuguesa[1]

Russell G. Hamilton[i]

A partir do fim do século XIX e ao longo das décadas, até o presente, a expressão literária brasileira e a percepção do Brasil por escritores e intelectuais da África lusófona vêm tendo uma visível importância entre angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses. Nos derradeiros quarenta anos, mais ou menos, do colonialismo português na África, grupos de negros e mestiços “assimilados”, justamente com não poucos colonos e filhos de colonos, sentiam-se atraídos pelas percebidas afinidades etnoraciais, sociais, linguísticas e culturais entre o Brasil e Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Verifica-se que, entre muitos intelectuais dessas então colônias, o Brasil, tendo ganhado a sua independência no século XIX, representava o que os territórios africanos poderiam alcançar em termos de autonomia política num contexto sociocultural “luso-africano”.

Há, de fato, importantes afinidades e conexões históricas entre o Brasil e a África. Calcula-se, por exemplo, que entre o século XVI e meados do século XIX cerca de três milhões de cativos africanos foram transportados para o Brasil. O Brasil foi, aliás, o destino final de 38% de todos os escravos transportados para a América do Sul, as Antilhas e a América do Norte. O tráfico de escravos resultou na vinda para esse hemisfério de pessoas de diversas etnias e regiões, desde a Costa e Golfo da Guiné até a África austral. Vieram tantos africanos das regiões ocidentais da África austral que, como costumam dizer alguns historiadores especializados no assunto, “Angola é a mãe do Brasil”. A África deixou uma marca biológica, linguística, social e cultural no Brasil. Reciprocamente, o Brasil deixou marcas indeléveis em várias partes da África, da Nigéria a Angola, de Cabo Verde a Moçambique e em diversos setores sociais e culturais, desde a composição de famílias até a arquitetura.

Vários estudiosos já documentaram as migrações, tanto antes como depois da abolição, de milhares de africanos e brasileiros indo e vindo de portos como Salvador e Rio de Janeiro e Lagos, na Nigéria e Luanda, em Angola.  Pierre Verger, autor de Flux et reflux de La traite des nègres entre Le golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos, du XVIIe siécle au XIXe siècle, é provavelmente o primeiro estudioso a documentar o retorno de afro-brasileiros à terra ancestral. Citando apenas três de numerosos exemplos da reciprocidade entre o Brasil e as colônias portuguesas na África, verificamos que Vieira Dias, Vieira Lopes e Pinto de Andrade constituem três famílias importantes da província angolana de Luanda. Essas famílias de etnia kimbundu têm o seu ramo brasileiro, isto é, descendem de escravos afro-brasileiros de raíz kimbundu. Mário Pinto de Andrade, o celebrado estadista, poeta e antologista angolano, é descendente de escravos brasileiros, assim como Carlos Vieira Lopes, mais bem conhecido por “Liceu”, o fundador, em 1947, do Ngola Ritmos, um conjunto musical histórico angolano.

O Brasil e a África lusófona são ligados, é claro, por uma língua oficial comum. Aliás, os laços idiomáticos estreitam-se por meio das influências lexicais, fonéticas e sintáticas exercidas por línguas sudânicas, mas especialmente por línguas bantu, no português vernáculo do Brasil. Por falar da influência bantu, como verificam vários linguistas brasileiros, entre eles Yeda Pessoa de Castro, autora de Falares africanos na Bahia: um vocábulo afro-brasileiro, as línguas africanas que mais contribuíram na formação do léxico brasileiro são o kimbundo, o kikongo e o umbundo, todas idiomas falados em Angola. Constata-se, porém, que muitos dos vocábulos de idiomas de origem sudânica, especialmente iorubá, yeshá, ewe e fon, chegaram ao Brasil, principalmente à Bahia e outras regiões do Nordeste, no século XIX, portanto muito depois da entrada de vocábulos bantu no português do Brasil.

Entre as dezenas de vocábulos de origem bantu angolana emprestados ao vernáculo brasileiro figura “samba”, uma palavra que deriva de “massemba, querendo dizer “umbigada”, em Kimbudu, e de “massamba”, que significa “estar animado” e “pular”, em umbundo. Outras palavras de origem kimbundu e mbundu que fazem parte do vocabulário ativo do português do Brasil são, para mencionar mais três exemplos, “senzala”, “moleque” e “bunda”.

Basta dizer que a influência africana na linguagem, práticas religiosas, músicas, dança, folclore e culinária do Brasil é bem documentada. Entre alguns dos estudos a respeito dessa influência destacam-se Costumes africanos no Brasil, de Manuel Quirino, Africanos no Brasil (estudos sobre os negros africanos e influências afronegras sobre a linguagem e costumes do povo brasileiro), de Nelson Coelho de Senna, e Made in Africa: pesquisas e notas, de Câmara Cascudo.

Embora não poucos cidadãos brasileiros, ao longo dos últimos cem anos ou mais, venham celebrando ou pelos menos reconhecendo o papel que a África desempenhou na formação de uma sociedade híbrida no chamado Novo Mundo, também se verifica, particularmente entre alguns membros do grupo dominante e das camadas socioeconômicas médias, certo incômodo psíquico em relação à presença fenotípica, se não genotípica e sociocultural africana num estado-nação historicamente desejoso de apresentar ao mundo uma imagem de si predominantemente de origem europeia.

A despeito de uma ideologia resumida na proclamação do Brasil como uma democracia racial, verifica-se certa ambivalência no que diz respeito às relações raciais, tanto nacional como internacionalmente. No âmbito diplomático, durante as derradeiras décadas do colonialismo na África lusófona, o grupo hegemônico do Brasil nem sempre simpatizava com as aspirações nacionalistas de angolanos, cabo-verdianos, guinenses, moçambicanos e são-tomenses. Não obstante essas ambivalências e reticências, nas décadas de 1950 e 1960 também havia períodos em que governantes brasileiros procuravam aproximar-se da África e dar apoio às aspirações independentistas dos colonizados. Uma iniciativa histórica teve lugar entre 1961 e 1964, primeiro durante a curta presidência de Jânio Quadros, quando o Itamaraty cedeu bolsas de estudos a um grupo de estudantes de Senegal, Nigéria, Cabo Verde e Guiné-Bissau. A aproximação com a África continuou durante a presidência de João Goulart.

Depois da instalação, em 1964, do regime militar no Brasil, os novos governantes autoritários logo restabeleceram uma política tradicional, que não apoiava os movimentos de libertação em países sob o domínio de Portugal. Não é de estranhar, portanto, que, ao longo dos anos de luta armada em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, os intelectuais militantes da África lusófona, assim como dissidentes portugueses e brasileiros, condenassem o apoio oferecido pelo governo do Brasil ao regime salazarista. Não obstante a política oficial alinhada com o colonialismo português, a rejeição dos militantes africanos a essa política e o mito da harmonia racial e da ideologia lusotropicalista, a ideia do Brasil e a sua influência cultural, principalmente no âmbito da literatura, persistiam entre muitos habitantes das então colônias. Constata-se que a ideia e influência do Brasil persistem até hoje nos Palop (países africanos de língua oficial portuguesa).

Ainda nos tempos coloniais, especificamente em 1955, em Présence africaine, uma revista editada em Paris, mas de ampla divulgação internacional, Mário Pinto de Andrade, a quem já me referi como um angolano de uma família kimbundu com antepassados brasileiros, e um respeitado crítico literário, organizador da primeira antologia de literatura africana de expressão portuguesa, poeta e militante anticolonialista, publicou um ensaio sob o título Qu’est-ce qu’est le luso-tropicalisme?  Depois de analisar o luso-tropicalismo, Andrade o rejeita, porque, a seu ver, trata-se de uma ideologia importada que não servia aos interesses dos povos colonizados da África lusófona. Não obstante a condenação enunciada por Pinto de Andrade e outros intelectuais das então colônias, um número significativo de intelectuais e escritores da África lusófona aceitava ao menos a tese central do luso-tropicalismo, a qual caracterizava o Brasil como um exemplo sem par de um Novo Mundo nos trópicos. O que prevalecia entre esses intelectuais e escritores da África lusófona era a ideia de que o Brasil ocupava um lugar preeminente como uma sociedade racial e socialmente híbrida. Tratava-se de uma sociedade crioula que surgiu no Atlântico Sul e que no século XIX emergiu do colonialismo para, no século XX, tornar-se uma potência mundial ou, pelo menos, uma potência entre as nações do chamado terceiro mundo. O Brasil, em pleno desenvolvimento, tornava-se uma força econômica e política entre as nações do cone sul e além.

É irrefutável que o modernismo, o neo-realismo e o regionalismo do Nordeste exerceram uma influência importante nos incipientes movimentos literários de Cabo Verde, Angola e Moçambique. Em A geração da utopia, um romance angolano contemporâneo (1992), de autoria de Pepetela, o narrador relata que “numa mesa encontrou o poeta Horácio dando uma lição de literatura a Laurindo (...) demonstrando que os últimos poemas publicados pela Casa dos Estudantes do Império, em Portugal, provavam de maneira irrefutável a influência do modernismo brasileiro nos escritores angolanos” (p. 77). Horácio, seguindo com a “aula”, diz para o seu ouvinte : “_ Vê o livro de Viriato da Cruz. Ele marca a ruptura definitiva com a literatura portuguesa. Utilização da voz do povo, na língua que o povo de Luanda usa. Já não tem nada a ver com todo o anterior, em particular com os portugueses. A literatura à frente, a expressar o sentimento popular de diferença. Os brasileiros fizeram isso há trinta anos’’ (p. 77). Horácio fazia as suas observações em 1961.

Também a propósito da influência brasileira, cito o seguinte trecho do ensaio “Três séculos de influência brasileira em Angola” (2001,Crioulos e brasileiros de Angola, do luso-angolano Leonel Cosme):

Os “angolanos” sabiam do Brasil tudo quanto lhes era útil. Conheciam a sua literatura (designadamente a nordestina), tanto ou mais que a portuguesa. Reputados jovens prosadores e poetas, em breve trecho de autores consagrados, bebiam a inspiração em autores como Jorge Amado, José Lins do Rego, Guimarães Rosa ou Mário de Andrade e até na crônica jornalística era patente a influência de David Nasser (...) em muitos pontos semelhantes aos de Angola, mas, principalmente, o processo que recriara um homem que já não era só europeu e muito menos só português. (1999)

Tomo a liberdade de citar mais um trecho longo do ensaio do Leonel Cosme, pois julgo-o bastante pertinente:

A literatura proibida em Portugal chegava à sorrelfa a Angola, adquirida diretamente no Brasil através de importações não controladas pela autoridade administrativa, no que respeitava a umas poucas livrarias e por aquisições pessoais, geralmente através de amigos ou correspondentes brasileiros. É assim que um restrito público angolano contata com os livros políticos de Jorge Amado, de Sartre, de John Reed etc. E é assim, em secretismo, que um grupo de jovens intelectuais de Luanda contata com Abdias do Nascimento, o anti-Freyre, na contestação duma alegada democracia racial existente no Brasil e decalca o estatuto do Partido Comunista Brasileiro para modelo de um embrionário Partido Comunista Angolano, que pouco depois se converteria no primeiro movimento nacionalista multirracial apoiado nas massas populares – o MPLA (1999).

Como um de dezenas de exemplos em que se encontram alusões diretas a obras e autores brasileiros, destaco “Canto de farra”, de Mário António, um poeta da Geração dos Novos Intelectuais de Angola, a qual emergiu nos anos quarenta, do século passado. Na primeira estrofe de “Canto de Farra”, a voz poética declama: “Quando li Jubiabá/Me cri, António Balduino/Meu primo, que nunca o leu,/Ficou Zeca Camarão/Eh, Zeca!”. Nesse poema de sete estrofes, escrito em 1952, a voz poética modifica o seu linguajar conforme o “baianês”. Além de empregar brasileirismo no léxico e sintaxe, o poeta angolano elabora ligações entre o meio cultural baiano, tal como Jorge Amado o pinta em Jubiabá e outros dos seus romances, e o meio luandense, o qual, para muitos dos Novos Intelectuais de Angola, exprimia marcantes semelhanças topofílicas com o meio baiano. Os romances de Jorge Amado serviam, na sua linguagem, seu modo de narrar, sua delineação de personagens ou sua tropicalidade, como modelos para aqueles “filhos da terra” que procuravam criar uma literatura “de” e não apenas “em” ou “sobre” Angola.

Voltando à consideração de “Canto de farra”, vemos que, a fim de se identificar com uma idéia do que é o Brasil, a pessoa poética torna-se Antônio Balduino, um herói novelesco. E temos que levar em conta que, para um africano vivendo sob o domínio colonial, Antônio Balduino, aparentemente o primeiro protagonista negro de proporções heróicas da prosa de ficção brasileira, vem representar uma espécie de orgulho racial numa incipiente literatura angolana de reivindicação cultural e protesto social. Além do mais, Antônio Balduino e Jubiabá, este um pai de santo de carne e osso em Salvador, representam a coletividade afro-brasileira e, implicitamente, uma manifestação da resistência cultural inerente à ideologia do “negro do mundo inteiro”, nesse  caso de Angola e da diáspora africana do Brasil. A visão populista e as imagens idealísticas da Bahia, a chamada Roma Negra, realçam elementos sociais e culturais brasileiros de origem africana. Juntamente com a ideia da sobrevivência diaspórica de africanismo, para muitos membros das elites aculturadas da África lusófona, a Bahia também era e ainda é um microcosmo do pais sul-americano geograficamente vasto e biológica e culturalmente híbrido. Nas derradeiras décadas do período colonial, na opiniação de muitos angolanos, cabo-verdianos, guinenses, moçambicanos e são-tomentes desejosos de forjar uma identidade multiétnica e ao mesmo tempo unificada, o Brasil era um estado-nação cuja sociedade se destacava como um sucesso da chamada experiência romântica nos trópicos.

A partir dos anos 30, gerações de intelectuais cabo-verdianos vinham nutrindo um conceito da sua sociedade crioula, isto é, biológica e culturalmente mestiça, como comparável à sociedade brasileira. Em outras palavras, entre intelectuais cabo-verdianos prevalecia a crença de que o seu pequeno arquipélago, mesmo sendo colônia, era também um exemplo proeminente do sucesso da experiência romântica no Atlântico Sul. Na década de 1930, um núcleo de intelectuais e escritores cabo-verdianos reunia-se em torno de Claridade, uma revisita de arte e letras lançada em 1936. Na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, os poetas, prosistas e ensaístas da geração da Claridade cultivavam a ideia da compatibilidade entre o seu ethos, ou seja, a sua imagem de si perante o mundo e aspectos salientes, e a seu ver atraentes, do luso-tropicalismo. Nos anos 50, Jorge Barbosa, de um trio de poetas célebres da geração da Claridade, escreveu versos evocando o Brasil. Nessa série de poemas figuravam “Carta para Manuel Bandeira”, “Carta para o Brasil” e “Você, Brasil”. Em “Você, Brasil”, dedicado ao poeta paulista Ribeiro Couto, lemos os seguintes versos: “Eu gosto de Você, Brasil/porque Você é parecido com a minha terra”. A voz poética logo afirma: “É o seu povo que se parece com o meu,/é o seu falar português/que se parece com o nosso,/ambos cheios de um sotaque vagaroso,/de sílabas pisadas na ponta da língua,/de alongamentos timbrados nos lábios/e de expressões terníssimas e desconcertantes” (p.170). Nas restantes estrofes segue uma acumulação das supostas afinidades entre Cabo Verde e o Brasil. Assim, a pessoa poética crioula, dirigindo-se calorosamente à sociedade irmã, exclama:

O gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas,/dos seus cataretês, das suas toadas de negro,/caiu também no gosto da gente de cá/que os canta e dança e sente/com o mesmo entusiasmo/e com o mesmo desalento também./As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares, fazem lembrar as suas músicas,/com igual simplicidade e igual emoção,/Você, Brasil, é parecido com a minha terra./As secas do Ceará são aos nossas estiagens,/com a mesma intensidade,/de dramas e renúncias./Nós também temos a nossa cachaça/o grog de cana que é bebida rija (p.171).

Se bem que os dois povos tenham muito em comum, para Barbosa e os seus companheiros de geração, os brasileiros eram seus irmãos mais velhos, de estatura bem maior. Assim, Barbosa escreveu no seu poema: “Você é um mundão/e que a minha terra são/dez ilhas perdidas no Atlântico,/sem  nenhuma importância no mapa”. Em compensação, de vez em quando o cabo-verdiano, com a devida humildade, mas não perdendo a oportunidade de fazer comparações humoristicamente invejosas, ufana-se dos seus meios pequenos. Assim, segundo a voz poética de Jorge Barbosa: “Temos também o nosso café da ilha do Fogo/que é pena ser pouco, mas - Você não fica zangado? – é melhor do que o seu” (p.172).  

Outro poeta da geração da Claridade é o Osvaldo Alcântara, pseudônimo de Baltasar Lopes da Silva. Além de poeta e romancista, Baltazar Lopes também era filólogo, jurista e professor. De certo modo, o poeta Osvaldo Alcântara ultrapassa Jorge Barbosa em matéria de ufanismo cabo-verdiano. Além do mais, enquanto Barbosa apenas sonhava conhecer o Brasil, Baltasar Lopes conseguiu visitar a terra sonhada. Essa visita levou-o a compor “Saudade no Rio de Janeiro”, poema que começa com os seguintes versos: “Caminho, asfalto, pureza/violada debaixo das rodas assassinas. /Vieste escondida na minha mala/para Cristo te consagrar/na altura hierática/do Corcovado”. Nesse poema saudosista há referências imagísticas ao folclore europeu adaptado a Cabo Verde, talvez como manifestação da gabada experiência românica nos trópicos. Também há alusões iconográficas e imagens de um meio urbano brasileiro cujo aspecto pouco acolhedor contraste com o bucolismo do arquipélago cabo-verdiano, suas cidades pequenas e pacatas.

Pouco depois de Baltasar Lopes visitar o Brasil, Cabo Verde recebeu um ilustre visitante brasileiro. Em outubro de 1951, Gilberto Freyre passou quase um mês no arquipélago fora da costa da África ocidental. As percepções que Freyre teve de Cabo Verde aparecem num volume publicado em 1952, sob o título sugestivo e algo curioso de Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação. No seu livro de viagem, Freyre revela que não via em Cabo Verde um exemplo do sucesso do luso-tropicalismo. O antropólogo brasileiro não descobriu em Cabo Verde “constantes portuguesas” nem semelhanças com o Brasil. Segundo Freyre, Santiago, a ilha cabo-verdiana com o maior número de habitantes, pouco diferia, quanto a seu “aspecto negróide”, das ilhas antilhanas Barbados e Trindade. Bastante amargurado com as declarações do luso-tropicalista preeminente que ele tanto respeitara, Baltazar Lopes da Silva foi para a Rádio Barlavento, na cidade do Mindelo e, entre 12 de maio e 23 de junho de 1956, proferiu seis palestras, as quais foram reunidas num volume intitulado Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. Na primeira de suas palestras, Baltasar Lopes, que tanto antecipara a visita do mestre brasileiro, confessou, desalentado, que o “Messias desiludiu-nos”. Mas a desilusão causada pelas observações de Gilberto Freyre de modo nenhum serviam para diminuir a percepção positiva do Brasil em Cabo Verde, assim como nas outras antigas colônias portuguesas na África.  

Já se vão vinte e oito anos desde a Revolução dos Cravos, que deu fim à ditadura em Portugal e abriu o caminho para a independência, em 1974 e 1975, das colônias. A esta altura, vale a pena fazer algumas observações relativas à percepção do Brasil entre os cidadãos dos países africanos de língua oficial portuguesa – os Palop. Antes de mais, cabe notar que, em julho de 1974, o governo brasileiro, infringindo um acordo de amizade assinado com Portugal em 1961, reconheceu oficialmente a legitimidade do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Na mesma veia, ao reconhecer, em dezembro de 1975, o Movimento de Libertação de Angola (MPLA) como o governo legítimo dessa nação recém-independente, o Brasil antecedeu todos os países do chamado Primeiro Mundo.

Embora tenham havido algumas contradições nas relações diplomáticas entre o Brasil e os Palops nos anos posteriores à independência, o que tem predominado é uma política de reaproximação. Entre as inciativas tomadas nesse período pós-colonial inclui-se um programa de bolsas de estudos concedidas a jovens dos Palop pela Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Cândido Mendes, cujo Centro para Estudos Afro-Asiáticos funcionou como o organismo administrativo para o Projeto Moçambique. No mesmo âmbito pedagógico e cultural, alguns anos atrás o Instituto Brasileiro do Livro doou dois mil volumes a escolas e bibliotecas moçambicanas.

   Os laços cada vez mais estreitos e as referidas iniciativas refletem uma nova ordem que vai além das relações entre o Brasil e os Palop. Pois, juntamente com Portugal, o Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe constituem os sete países em três continentes cuja língua oficial é o português. E parece que Timor Leste, na Indonésia, será o oitavo pais de língua oficial portuguesa. Atualmente, a configuração linguística dos sete ou oito vem modificando-se por causa do fenômeno transnacional e macrocultural denominado lusofonia. Ora, a lusofonia é, certamente, um conceito repleto de considerações de ordem ideológica em torno do neocolonialismo, pós colonialismo e da globalização. Chamo a atenção para o que julgo ser um paradoxo a respeito da lusofonia. O presidente de Portugal é, naturalmente, o chefe titular dos sete e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Era nessa qualidade que, em 1989, em Lisboa, Mário Soares dirigia algumas palavras animadoras aos representantes dos sete que assistiam ao Primeiro Congresso de Escritores de Língua Portuguesa. Nas palavras do chefe de Estado português, o mundo da lusofonia, “que contará na entrada do século XXI com mais de duzentos milhões de habitantes, constitui hoje uma realidade poderosa que temos de saber afirmar”. O paradoxo é que, não obstante a liderança titular de Portugal, hoje em dia, mais do que nunca, o epicentro da lusofonia é o Brasil. Era sem dúvida a noção dessa centralidade que levou Lindsley Cintra, o eminente linguista português, a proclamar o Brasil como a última defesa contra o desaparecimento do idioma. Foi na mesma ocasião que Agostinho da Silva, também um estudioso português, que viveu muitos anos na Bahia, afirmou que “nunca sinto que a língua portuguesa esteja em perigo quando estou no Brasil”. Em virtude da representação do Brasil como baluarte do idioma, podemos entender por que o Instituto Internacional da Língua Portuguesa foi fundado, em 1989, em São Luís do Maranhão, a cidade natal do então Presidente José Sarney. Todos os chefes de Estado dos sete, com exceção de José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola, que mandou um representante, assistiram à reunião histórica.

É escusado afirmar que o lugar destacado do Brasil no mundo de língua portuguesa tem muito que ver com a influência da literatura brasileira na África lusófona, tanto antes como depois da independência dos cinco Palop. Ainda nos tempos coloniais, José Luandino Vieira, o conceituado escritor angolano, emprega na sua já clássica obra Luuanda o termo “estórias” em vez de “contos” para denominar as narrativas reunidas no seu volume. O próprio Luandino revela que foi a obra de Guimarães Rosa que o levou a empregar “estória”. E Mia Couto e Ba Ka Khosa, dois dos maiores prosistas contemporâneos de Moçambique, reconhecem na sua obra a influência do realismo mágico que caracteriza as “estórias” de Guimarães Rosa.

É oportuno referir-me a um poema de autoria de João Melo, um escritor angolano que lançou a sua carreira no período pós-colonial. Trata-se de “Diário de bordo”, que consiste de vinte poemetos, cada um tendo como título o nome de uma cidade na África, Europa, Ásia e América Latina. Entre as vinte cidades evocadas, começando, em ordem alfabética, com Arusha, Tanzânia, e terminando com Yaoundé,  Camarões, lemos três poemetos que captam a reação do viajante angolano ao Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Leio primeiro “Rio de Janeiro”: “Água, céu e morros/no meio/o verde” (p. 22). Agora, alterando a ordem alfabética, leio “São Paulo”: “Para onde correm/estes seres apressados/saindo da cloaca dos edifícios? /E onde estão os poetas?” (p.22). Antes de ler “Salvador”, recito “Luanda”, o poemeto mais longo dos vinte e que evoca a cidade natal do poeta: “O mar lá em baixo /ao alcance da mão/À tarde/o horizonte tinto violentamente de sangue/A amizade trespassa as casas/como um fio invisível/e palpável/E a música/anima as fundações da cidade/sempre” (p.21). Finalmente, leio “Salvador”, um poemeto muito conciso: “O mesmo clima/o mesmo ritmo/a mesma ciência/que Luanda” (p.22). É lícito asseverar que “Luanda”, o poemeto mais elaborado, também evoca a cidade de Salvador. Ao ver do poeta angolano, as duas cidades exprimem o mesmo feitiço.

Acontece que João Melo conta-se entre um número apreciável de escritores dos Palop a visitar o Brasil. Aliás, João Melo fez tanto a licenciatura como o mestrado na Universidade Federal Fluminense. José Educardo Agualusa, o conhecido escritor angolano, autor de romances históricos, viveu e trabalhou vários anos no Rio. E, desde a independência, Lilia Momplé, a romancista e contista moçambicana também morou algum tempo no Brasil. Nesses anos pós-coloniais, outros escritores da África lusófona, como Pepetela, vêm quase anualmente ao Brasil a fim de dar palestras sobre literatura e encontrar-se com autores e estudiosos brasileiros.

Nos últimos tempos pré-independentistas, embora em número relativamente reduzido, porém não insignificante, havia escritores das então colônias na África que viviam exilados no Brasil. Luís Romano, o ficcionista e poeta cabo-verdiano, viveu por mais de trinta anos no Rio Grande do Norte. Depois de Cabo Verde ganhar a sua independência, Romano começou a deslocar-se com frequência à sua terra natal. Desse modo parece estar na vanguarda de escritores que, intrínseca e extrinsecamente, elaboram uma neocrioulização. Como sugere o título da sua obra mais recente, Luís Romano atinge uma espécie de lusofonia. Ilha: contos lusoverdianos de temática europáfrica + brasilamérica.

Muito mais pode ser abordado a respeito da influência do Brasil na literatura da África lusófona e das inter-relações afro-luso-brasileiras. Porém, concluo esta intervenção certo de que o ensino e a análise, tanto da forma quanto do conteúdo e de contexto intrínseco das literaturas africanas de língua portuguesa, estão nas mãos competentes dos meus colegas brasileiros.

NOTAS

1-Originalmente publicado na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004, publicado pela Editora da PUC Minas.

Referências

ALCANTARA, Oswaldo. Saudades no Rio de Janeiro. In: Claridade: revista de arte e letras. n. 8, de maio de 1958, p.1.

ANDRADE, Mário Pinto de. Qu’est que c’este Le luso-tropicalisme? In: Présence africaine. Paris, n 4. P. 24-25, 1955.

ANTONIO, Mário. Canto de farra. In: 100 poemas. Luanda: Editora ABC, 1963, p. 46-47

BARBOSA, Jorge. Você, Brasil. In: FERREIRA, Manuel (Org.). 50 poetas africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Lisboa: Plátano, 1989. P. 170.

CASCUDO, Luís da Câmara. Made in África: pesquisas e notas. Rio de Janeiro.Civilização Brasileira, 1965.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahhia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001.

COSME, Leonel. Cioulos e brasileiros de Angola. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2001.

FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação. Lisboa: Livros do Brasil, 1952.
MELO, João. Diário de Bordo. In: Canção do Nosso Tempo e Outros Poemas. Luanda:UEA.1988. p19-22.


[i] Professor emérito de espanhol e português da Universidade Vanderbilt em Nashville, Tennessee, morreu no final do mês passado em Minnesota, onde morou após se aposentar. Ingressou no corpo docente da Universidade Vanderbilt em 1984 como reitor de estudos de pós-graduação e pesquisa. Foi o primeiro afro-americano a servir como reitor de uma escola ou faculdade de Vanderbilt. Antes de ingressar no corpo docente da Vanderbilt, o Dr. Hamilton foi professor titular e reitor associado do corpo docente da Universidade de Minnesota. Fez mestrado na Universidade de Wisconsin e depois estudou por dois anos no Brasil. Retornou aos Estados Unidos para concluir o doutorado. na Universidade de Yale. Autor de dois livros: Literatura Africana, Literatura Necessaria (Luanda, 1981) e Voices From an Empire: A History of Afro-Portuguese Literature (University of Minnesota Press, 1975). Faleceu em 2016.

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