A formação do cânone literário em África: limitadores e perspectivas[1]

    Vanessa Riambau Pinheiro[i]

Harold Bloom, em A formação do Cânone Ocidental (1994), propôs explicitar a importância   do   cânone   ao   longo   da   historiografia   literária   ocidental.   Partiu do pressuposto de que este é, por natureza, arbitrário; definido por poucos, aplicável por muitos. Para o autor, o cânone serve para fixar determinados modelos de excelência literária a partir de critérios estéticos – nunca ideológicos - representativos de um determinado momento histórico e cultural.  Ou seja, segundo o teórico, a consagração literária passa por sua completa autonomia estética.  A fim de selecionar seu panteão literário, o estudioso se valeu de seu conhecimento, restrito basicamente à Europa e aos Estados Unidos, e teceu parcas considerações acerca de literaturas de países periféricos, como Brasil e Argentina.  Naturalmente, o recorte é feito com base nas limitações do próprio Bloom em relação à literatura escrita e/ou traduzida em língua inglesa. Entretanto, seus escritos voltaram a suscitar questões latentes acerca da constituição do cânone.

Segundo artigo de Jaime Guinzburg (2004), as acepções de Bloom são pautadas em um profundo narcisismo, que utiliza duas mediações basilares: o valor inerente das obras escolhidas e o valor da modalidade de leitura defendida. Ainda segundo o pesquisador, o narcisismo penetraria a lógica do saber produzido e rigorosamente operaria em direção à delimitação precisa da incongruência entre ego e alteridade. Outros críticos posicionaram-se, ora a favor, ora contra o cânone ocidental de Bloom. De qualquer maneira, a reverberação da discussão trouxe novos pontos de tensão para esta já ostracizada querela.

Originalmente, o cânone veio da tradição bíblica e detém o valor de ser suporte de verdades.  Via  de  regra,   teria   começado   a   partir   dos   meados   do   século   XVIII, representando um catálogo de autores  aprovados  ou  autores  que  vieram  depois e  se sentem escolhidos por determinadas figuras ancestrais  (BLOOM, 1994)  Sua instituição pressuporia,    grosso    modo,    a    existência     de     critérios     de valor  identitários   e estéticos representativos de determinado período da sociedade, e sua estabilização supõe a passagem de tempo a partir da filtragem realizada pela consciência coletiva que o assimilou. Geralmente, a constituição do cânone representa uma ode aos escritores do passado; não por acaso, a maioria dos autores ditos canônicos estão mortos. “Confio mais nos mortos do que nos vivos” (HAZLITT apud BLOOM, 1994, p. 499).

É notória a   arbitrariedade   do   cânone:   como   toda   convenção, presta-se a determinado fim. Em sua fundamentação, não se buscam perspectivas interculturais ou pluralizantes. Em sua construção, ademais das orientações estéticas, critérios outros são mensurados, como a manifestação ou não da orientação sócio-ideológica vigente naquela sociedade, a representação de valores geracionais e a consonância com outros textos pertencentes ao mesmo momento sincrônico. De acordo com a pesquisadora Ana Maria Martinho (2001), o cânone possui uma base essencialista e não se funda realmente numa dimensão de alteridade ou de construtivismo, mas na perspectiva de uma norma centrada na definição de critérios sociais e coletivos. Kermode (1991), por sua vez, insiste no caráter institucional, convencional e historicamente variável dos cânones, ainda que reconheça que estes perpetuam valores estáveis e atemporais, o que permite ao próprio cânone   validar os consensos interpretativos de uma instituição.  O estudioso Walter Mignolo (1991) ratifica essa assertiva ampliando-a, pois, aposta na mutabilidade do cânone. Para o teórico, a formação do cânone no seio dos estudos literários é entendida como uma manifestação da necessidade da comunidade humana de estabilizar seu passado, adaptar-se ao presente e projetar seu futuro; uma das funções principais da formação do cânone (literário ou não) seria, portanto, garantir a estabilidade e a adaptabilidade a uma determinada comunidade. Entretanto, mudam- se os tempos, mudam-se as vontades, como diria Camões; Mignolo (1991) afirma que, apesar do cânone ganhar visibilidade através da crítica, ele só vai adquirir legitimidade a partir dos leitores comuns, que vão reforçar ou mudar a tradição.  Ainda segundo o autor, não é a sobrevivência da crítica que define a canonicidade, mas a sobrevivência do objeto a comentários mutáveis. De certa forma, esta afirmação desconstrói o conceito naïf de Bloom, que pretende, à maneira anti-bakhtiniana, estabelecer uma leitura crítica visando à neutralidade dos signos.  Mignolo (1991) tem consciência de que toda consideração sobre um esquema canônico o é em contextos sócio-históricos determinados. Na medida em que compreendemos a amplitude histórica do cânone, percebemos que seu caráter normativo não pode ser analisado de forma objetivamente neutra, já que inculca valores que lhe são absorvidos. Dessa forma, podemos observar a dimensão inerente de seu engajamento ideológico – manifesto tanto em sua representação quanto na sua própria negação e/ou ausência.

Ou seja, antes mesmo de adentrar na reflexão acerca das literaturas africanas, é mister relativizar a formação do cânone no Ocidente. Afinal, compreendemos que a canonicidade mostra-se antes no conjunto de padrões sociais e representações sócio-culturais que lhe são subjacentes do que no texto propriamente dito.  Concordamos com Even-Zohar (1990) quando este afirma que todo cânone resolve-se enquanto estrutura histórica, o que o converte em cambiante e sujeito aos princípios reguladores do sujeito ideológico, individual e coletivo que o postula.

Portanto, se partirmos do pressuposto de que existe um substrato político e ideológico que atua na definição do cânone e que este fato, por si só, colocaria o cânone em suspeição, podemos imaginar como este fator adquire relevância ao se tratar de literaturas produzidas em países africanos de recente descolonização, nos quais o processo de constituição literária ainda estaria em vias de consolidação.

Se tomarmos como verdade que a literatura se constitui a partir da representação da sociedade, tal qual nos afirma o conceito aristotélico de mímesis, podemos inferir que o cânone pretende fixar valores considerados representativos de determinada época histórica e/ou cultural, buscando estabelecer uma relação de identificação com determinado país que o representa. Para que esta relação seja estabelecida, entretanto, é necessário que os textos situados na mesma perspectiva diacrônica sejam afins, coadunem-se de tal forma que sua base semântica possa ser reconhecida como paritária e homogênea. Entretanto, não raro, isso pressupõe ignorar as diferenças e simplificar o passado, tornando passível de representação uma imagem confortavelmente adequada ao estereótipo monocultural que se pretende homologar social e externamente.

Cabe-nos a seguinte questão: será que podemos utilizar os mesmos critérios que consagraram a literatura ocidental ao longo dos séculos para valorar a produção literária emergente pós-europeia? Como uma nova querela entre antigos e modernos, a formação do cânone das literaturas pós-europeias ainda está em xeque e suscita muitas reflexões.

Ao concordarmos com a acepção de Kermode (1991) acerca da variabilidade do cânone, também acreditamos na ampliação deste espectro no sentido conceitual. Compreendemos que o padrão utilizado para definir a constituição do cânone no Ocidente não pode ser aplicado ipsis litteris na classificação de   obras literárias produzidas em África.  Faz-se necessário, outrossim, descentralizar o cânone da perspectiva ocidentalizada, ampliando   sua abrangência a partir de um olhar menos diacrônico e homogêneo, na medida em que estamos falando de literaturas recém- constituídas, ou melhor dizendo, de nações recém-formadas.

Ana Maria Martinho (2001) relata a complexidade da formação do cânone em África, já que existem duas tradições – a oral e a escrita – que evoluíram em oposição uma à outra. Só este fator, por si só, já singulariza essa literatura em relação às de autoria ocidental. Pires Laranjeira (2005), por sua vez, enumera outras singularidades, ao relatar que não se pode tomar a acepção de Harold Bloom aplicada a África:  o crítico norte-americano estabelece o cânone ocidental a partir de um número muito seleto de obras-primas resistentes ao tempo. Em um país africano recém-independente e com poucos recursos, o cânone literário não teria condições de ser estabelecido a partir de um reduzido número de obras em um período tão curto. Ademais, cada país africano tem particularidades que devem ser observadas para que se compreenda por que determinadas obras se consolidam em detrimento de outras que lhes são contemporâneas.

Destarte, é válido distinguir, conceitualmente, o cânone ocidental do cânone pós-colonial. Enquanto aquele se vale de critérios estáveis e de uma perspectiva diacrônica, este leva em conta a mutação das identidades cambiantes – celebrações móveis, segundo Hall (2011) – e   a   recente   reconfiguração   social   das   sociedades   pós- independência.  Segundo Pires Laranjeira (2005), o cânone pós-colonial tende a erigir novos temas e discussões e a reiterar antiquíssimas posturas anti-poder. Dessa forma, há aspectos que não podem ser olvidados: a existência, por um lado, de uma literatura de influência oral que ainda está em processo de formação; e todas as fases pelas quais essa literatura passou até ganhar legitimação externa. Entretanto, a quem interessa e como se processa essa legitimação externa?

Boaventura de Sousa Santos (2010) afirma, a   propósito   do   tema, que   o colonialismo foi também uma dominação epistemológica, que relegou os saberes locais a um espaço de subalternidade.  O pesquisador relata ainda que o que importa é desfamiliarizar a tradição das monoculturas do saber, como se essa forma de estranhamento fosse a única familiaridade possível. Acreditamos que essa desfamiliarização deve ocorrer tanto interna quanto externamente já que, mesmo após a descolonização, a necessidade de apropriação do saber sobre África não foi devidamente superada.  A nigeriana Amina Mama (2010) constata:  a maior parte do que é recebido como conhecimento acerca de África é produzido no Ocidente.

Cabe aqui uma reflexão: a fim de legitimar-se como autônoma frente ao mundo ocidental, uma das   vias   desta   produção   literária   objetiva   ressignificar elementos autóctones; entretanto, esta sociedade, ocidental e globalizada, é a principal consumidora desta literatura. Temos, então, dois aspectos a serem observados: por um lado, a necessidade de autolegitimação; por outro, a consolidação de uma literatura que não acontece apenas de forma endógena.

Em relação a este primeiro aspecto a ser observado, recorremos ao congolês Mudimbe (2013), que possui uma importante reflexão acerca do tema: o estudioso afirma que há um espaço intermédio existente em África, situado entre a reificação do primitivo e a problemática da modernidade, e que revela a forte tensão entre a modernidade - que é frequentemente uma ilusão de desenvolvimento -, e uma tradição que, por vezes, reflete uma imagem empobrecida de um passado mítico. Alienada ao resgate de um passado pré-colonial inventado, as literaturas produzidas no continente africano, ao pretenderem legitimidade, autenticam-se como o discurso que “se constrói como ficção do Outro”.

Achille Mbembe (2014) complementa esta assertiva, pois considera que existe um aparato próprio do sistema colonial que parece impor ou insinuar, mesmo aos que pretendem rechaçá-lo, a existência de um discurso preexistente que o condiciona à imitação de si próprio, ou seja, a um simulacro. Neste sentido, os temas ditos autóctones não seriam, como comumente se poderia atribuir, responsáveis pela reafirmação da identidade africana   no   mundo   ocidental, mas   corresponderiam   ao reforço desta estereotipação que se pretende evitar.  Assim, para o autor, a identidade negra só pode ser problematizada enquanto identidade em devir.

Estes preceitos vão ao encontro do pensamento do crítico ganês Anthony Appiah (1997), segundo o qual devemos renunciar à ideia de que existe uma África mítica na qual as culturas se interrelacionam. Assim sendo, seria mister considerar cada país com suas próprias especificidades, sabendo que todos, em algum momento de sua história, farão a busca para redescobrir sua cultura e  (re)inventar as tradições.

Da mesma forma, ademais do exotismo ser tema de interesse externo à África, podemos inferir que, de forma geral, os mundos euro-americanos reduzem não só a temática das literaturas africanas às de cunho essencialista, mas também definem a raça de seus escritores. Segundo o já citado pensador camaronês Achille Mbembe, o negro e a raça têm significado a mesma coisa nos imaginários etnocêntricos. Assim, ao restringir as pessoas a uma questão de aparência, “outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do Negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura, a da loucura codificada. ” A raça negra torna-se, portanto, a   reificação   do   exótico, ou, em   outras   palavras, uma “zoomorfização[ii]” consentida culturalmente.

E como insere-se o receptor da literatura neste contexto? O leitor, seja qual for seu país de procedência, é de suma importância, já que atua enquanto consumidor de valores. É passível de percepção o fato de o leitor leigo sucumbir à dimensão simbólica e cultural dos valores estéticos reificados através da produção literária de cunho essencialista ou tradicional. A Literatura, dessa forma, torna-se capital simbólico, na medida que a máxima legitimação cultural implica em capital econômico.  Neste sentido, nos alicerçamos na teoria de campo intelectual de Pierre Bourdieu (1996), nomeadamente o conceito de capital simbólico, ou seja, tudo aquilo que confere valores culturais e nos permite identificar os agentes no espaço social. Todo ato narrativo revela conexão entre   o   sujeito   individual   e   suas relações sociais, o que envolve um investimento simbólico pelo sujeito que não é completamente controlado por ele. Não podemos, portanto, negar as implicações sociais repercutidas a partir da literatura, nem os por ela gerados.

Ao atribuir aspectos de origem autóctone na base das literaturas africanas, o cânone   que   se   estabelece como um  discurso  identitário    definido, prioritariamente, pela sociedade ocidental.  Entretanto, como já   foi referido, essa identidade também é forjada, na medida em que é uma imitação de si; outrossim, também espelha uma imagem distorcida ao mundo euro-americano.  O estudioso Mudimbe (2013) ratifica esta assertiva, ao argumentar que os discursos sobre as realidades africanas foram gerados à margem dos seus contextos de origem, e que tanto seus eixos quanto sua linguagem têm sido limitados pela autoridade de sua exterioridade, o que lhe retira a densidade e lhe confere um cariz artificioso. Neste sentido, cabe citar o questionamento feito pela estudiosa Ana Mafalda Leite (2013): De que lugar teórico escreve a crítica e quais são os critérios utilizados para julgar o mérito das literaturas pós-europeias?

O filósofo congolense Mudimbe (2013) contribui com esta questão, ao afirmar que o cerne da questão é que, até agora, tanto os intérpretes ocidentais quanto os analistas africanos têm usado categorias e sistemas conceptuais que dependem de uma ordem epistemológica ocidental. Mesmo nas descrições “afrocêntricas” mais evidentes os modelos de análise referem-se, explícita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, à mesma ordem.   Ou   seja, as   análises   partem   da   perspectiva ocidentalizada.

Leite (2013) complementa   esta   ideia   ao   afirmar   que   há   muitas   atitudes subjacentes nas formações discursivas em relação a África. Dentre elas, destaca a de cunho paternal, com evidentes resquícios coloniais, revelando um olhar exterior que encara o outro com distância e tolerância, mas não lhe reconhecendo, de fato, maturidade e autonomia.

Entretanto, há um processo complexo envolvido na estrutura deste paternalismo pós-colonial; não podemos reduzi-lo ao mero antagonismo de partes. Concordamos com Leite (2013), que ressalta que se deve evitar uma visão dicotômica da história em África, a fim de se buscar uma perspectiva mais neutra dos factos. Quando a escritora moçambicana Paulina Chiziane afirma, em entrevista, que é preciso “descolonizar as mentes”, certamente ela se refere aos dois lados do sistema colonial.  O estudioso marfinense Hountodji (2002) indica   que   a   incapacidade   de descolonizar a vida intelectual é uma externalização persistente da pesquisa acadêmica africana, que homogeneiza e simplifica o complexo continente africano.

É mister, portanto, descobrir uma via de escape que permita que a vida intelectual, produzida dentro de África, venha a ser descolonizada, num trabalho que atue a partir da destereotipação endógena a fim de influenciar a perspectiva falhada da dominante exógena.  Talvez caiba aqui a questão formulada pelo já citado   filósofo Hountondji (2010, p. 118): “Quão africanos são os estudos africanos?” E ainda: qual é o papel do respectivo país de origem na definição do cânone literário?

Acreditamos, portanto, que é oportuno dar visibilidade às vozes autóctones, para que estas possam refletir a respeito de seu processo de formação literária e de suas obras basilares. Adotar como pressuposto os conceitos de Bloom ou outros similares seria, em “termos epistemológicos e conceituais, admitir a autonomia do valor estético, o descomprometimento da crítica com a sociedade e a concordância com a autoridade estética do gênio” (GUINZBURG, 2004, p. 12).  Neste sentido, concordamos com Candido (1991) quando este constata que, ainda que a imanência do texto deva ser respeitada, não pode ser dissociada do tripé escritor-obra-público, bem como do papel de cada um desses atores no sistema literário.

O ensaísta camaronês Achille Mbembe (2010), ao analisar a constituição dos nacionalismos nos países africanos, afirma que novos imaginários foram criados no período pós-colonial. Destes, duas tendências merecem destaque: a primeira, que se pauta no princípio da diferença e do reconhecimento de identidades particulares – o que contribui para a falácia da homogeneização cultural e da exclusão de representações autóctones periféricas –, e a segunda, que reconhece as singularidades, mas que considera apenas a noção de comunidade e não a de indivíduo. Dessa maneira, podemos observar na representação literária destes países que emergiram do contexto colonial uma temática, de certa forma, obsessiva e restritiva, pautada ou na perpetuação do nativismo ou na necessidade de legitimar-se literariamente enquanto destino coletivo e épico da nação. Ou seja, para que acontecesse a consolidação de sua autonomia literária foi preciso, antes, que houvesse a reprodução do estereótipo colonialista. Ainda de acordo com Mbembe (2010), o nativismo é, também, uma invenção colonial, que serviu para justificar o comportamento dos colonos. Este pensamento já havia sido mencionado por Francisco Noa (2002), que afirma que a literatura colonial é uma das criações mais significativas da colonização moderna. Neste sentido, um dos maiores desafios da literatura pós-europeia é exatamente reverter este poder epistêmico colonial. África, a “casa sem chaves”, como se refere Mbembe (2010), empreende, desde a descolonização, uma reorganização de espaços, sociedade, cultura e representações.

O autor ainda menciona formas de escrita oriundas deste período pós-colonial: a primeira seria uma escrita de fusão, na qual “a voz desaparece para ceder lugar ao grito” (2010, p.180). Derivam daí as manifestações inspiradas no pan-africanismo; na literatura moçambicana, pode ser observada na Literatura Combate, de forte cunho nacionalista, cujos maiores representantes são os poetas Noémia de Sousa e José Craveirinha. Esta seria também a fase descrita por Noa (2002) como “doutrinária”, de forte teor ideológico e social, que sucedeu a fase “exótica” inicial da literatura em Moçambique. Ou ainda, refere-se à fase de “resistência” descrita por Chabal (1994).

Sabemos que um dos desígnios do romance africano é tornar-se um instrumento formal da reinvenção de uma cultura africana, de uma nova comunidade nacional, face à perda que a colonização representou. (MENDONÇA, 2011). O escritor, elemento icônico do sentimento nacionalista, era legitimado pelas práxis revolucionárias. De acordo com Edward Said (2011), o discurso literário pode transformar-se num veículo importante na definição da dependência cultural. Neste sentido, esta literatura foi pautada a partir de valores intrínsecos do que veio a tornar-se sua moçambicanidade. Entretanto, em que medida este desígnio deixa de representar o marco fundacional de uma cultura de cariz autóctone e passa a significar incapacidade de superar a colonização?

Outro momento posterior na formação literária dos países africanos, pertencente, segundo Mbembe (2010), ao “afropolitanismo[2]”, consistiria na inserção de culturas diaspóricas, que tirariam a África do centro. “Na era da dispersão e da circulação, essa mesma criação já não se preocupa tanto com a relação com o si mesmo, mas com um intervalo”. (2010, p.181). A África, então, passa a ser imaginada como um grande espaço passível de inúmeras formas de combinação e de composição. Neste sentido, o passado já não manifesta em si uma singularidade essencial – “pelo contrário, trata-se de manifestar que o homem despedaçado se ergue lentamente, libertando-se de suas origens” (MBEMBE, 2010, p. 181) -, sendo visto em sua relação com os movimentos onde se inserem. Ou seja, existe aqui a consciência da hibridização cultural, para usar um conceito de Homi Bhabha. É mister, portanto, analisar em que medida a literatura moçambicana constitui-se a partir de uma “ecologia de saberes”, como conceitua Boaventura de Sousa Santos (2009).

Homi Bhabha (1998), em sua clássica obra O local da cultura, também procura uma forma de reposicionar o (pós) colonizado na história moderna. Para o teórico, a saída possível seria encontrar um lugar de enunciação que procure escapar de noções essencialistas e transgredir as fronteiras culturais traçadas pelo pensamento colonial.

Hodiernamente, há um ambiente mais propício à diversidade cultural, reconhecendo-se a esfera da pluralidade, não mais da unicidade, como um constitutivo da identidade local das culturas postas em questão. O desafio da construção das literaturas pós-europeias consiste em valorizar o mosaico de identidades regionais como índice de uma rede lítero-sócio-cultural complexa e diversificada que constitui um país, no qual sua heterogeneidade nunca venha a ser fator de demérito, antes revele sua pluralidade. Mendonça (2011, p. 20) aponta para esta via, ao afirmar que a literatura emergente, ao mesmo tempo em que se vê inserida num contexto histórico conflituoso que lhe acentua a necessidade de afirmação identitária, encontra-se imersa em tendências relativistas trazidas por novas concepções de mundo “tendentes a desconstruir os vínculos que a inseriam num espaço e num tempo histórico”.

Discutir o cânone, neste sentido, é uma forma legítima de questionar este capital simbólico imposto por “grupos detentores do poder cultural, que legitimaram um repertório, com um discurso, por vezes globalizante” (LEITE, 2013, p. 25). É também uma maneira de se refutar a exclusão de grupos e etnias com finalidade sistematizadora e homogeneizante.

NOTAS

1 Originalmente publicado na E-scrita, Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.11, N. 2, julho-dezembro, 2020.

2  “Forma de estar no mundo que recusa, por norma, qualquer forma de identidade vitimária – o que não significa que não tenha consciência das injustiças e da violência que a lei do mundo infligiu a esse continente e a essa gente.” (MBEMBE, 2010, p.186)

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[i]
Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

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