Africanidades em trânsito em dois romances de Djaimilia de Almeida e Jeferson Tenório[1]

Gustavo Henrique Rückert[i]

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
 Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.
 São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.
(Agostinho Neto, Noite)

Africanidades em trânsito
Inicio estas reflexões a partir do conceito de africanidades conforme proposto por Kabengele Munanga (2015). Para o antropólogo brasileiro-congolês, o termo trata de convergências culturais e históricas que possuem matriz na África subsaariana.

Podemos, grosso modo, afirmar que a africanidade é um conjunto de traços culturais e históricos comuns a centenas de sociedades da África subsaariana. É uma comunidade que se fundamenta na similaridade de experiências existenciais e de esforços pacientes para subtrair do solo os produtos para a sobrevivência material. O conteúdo da africanidade é o resultado desse duplo movimento de adaptação e de difusão. (MUNANGA, 2015, p. 19)Nesse sentido, é possível ponderar que o conceito de africanidade parte do continente africano, mas não se restringe a ele. Ao enfatizar o compartilhamento de experiências no duplo movimento de adaptação e difusão pelo qual passou a comunidade negra africana, é possível pensarmos também na africanidade das comunidades da diáspora. Pensar na africanidade de um texto extrapola, portanto, o limite territorial da África, pois possibilita o diálogo identitário com o continente a partir de territórios históricos e culturais, e não nacionais ou continentais. Por esse prisma, seria possível pensar a africanidade nos mais diversos lugares do mundo, inclusive compondo outras identidades, como é o caso de nossa brasilidade. 

É claro que pensar em uma rede de africanidades literárias (a partir do conceito de africanidade proposto acima) resultaria em uma quantidade de obras imensurável: a literatura de cada um dos países africanos, a literatura negro-brasileira (CUTI, 2010), a literatura afro-cubana (GONZÁLEZ-PÉREZ, 1994), a literatura afro-americana (GILYARD; WARDY, 2004), e assim por diante. Para propor uma reflexão sobre as africanidades em trânsito neste trabalho, me detive em dois romances contemporâneos: Luanda, Lisboa, Paraíso, da escritora negra angolana e também portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, e Estela sem deus, do escritor negro brasileiro Jeferson Tenório, ambos lançados em 2018.

Luanda, Lisboa, Paraíso possui seu enredo centrado na dupla de protagonistas Aquiles e Cartola, pai e filho angolanos que migram para Portugal. Uma mulher nascida em Angola, que reside em Portugal, dá vida ficcional a homens também em migração entre o país africano e a antiga metrópole. Estela sem Deus, como o nome já indica, tem como personagem principal Estela, uma adolescente que passa por diversos deslocamentos no Brasil. Um homem brasileiro, herdeiro da diáspora africana, natural do Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre, dá vida a uma menina, também oriunda da diáspora africana, nascida na capital gaúcha e que passa a habitar a capital carioca. São, portanto, duas obras que enfocam o trânsito de seus protagonistas negros (africanos ou afrodescendentes) em busca de condições mais dignas de vida.

Djaimilia e Jeferson criam seres semelhantes e diferentes de si, corpos ficcionais que transitam entre África, Brasil e Portugal e testemunham uma história coletiva e real de violência social, racial e cultural materializada em segregação espacial. Portanto, pensar a questão das migrações contemporâneas é importante para a compreensão desses romances e da africanidade em trânsito de seus personagens.

Os primeiros anos do século XXI trouxeram certa euforia com um mundo conectado, simultâneo, globalizado: era a utopia do fim das fronteiras nacionais. O termo “pós-nacionalismo” chegou a figurar em trabalhos acadêmicos. No entanto, para os sujeitos oriundos do anteriormente chamado terceiro mundo (especialmente quando negros e/ou pobres), o deslocamento sempre soou um privilégio de certos grupos sociais hegemônicos (RÜCKERT, 2016). Na Feira do Livro de Frankfurt, em 2013, o escritor brasileiro Luiz Ruffato foi certeiro acerca do assunto: “as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas”[2].

Ao final da segunda da década do século, parece não haver mais lugar para a mencionada utopia. De acordo com dados do Inventário de Migração Internacional da ONU[3], cerca de 3,5% da população mundial se viu obrigada a migrar internacionalmente por condições adversas, como guerras, governos totalitários, estiagens, desastres ambientais, doenças, fome, baixos salários e desemprego. Não há um levantamento da quantidade de migrantes internos nos países, condição que alavancaria potencialmente esse número. Ao mesmo tempo, discursos nacionalistas, xenófobos e racistas voltaram à ordem do dia e ocupam a agenda política de algumas das principais lideranças globais. Como consequência, milhões de imigrantes padecem sem direito à humanidade em travessias ilegais, trabalhos em condições análogas à escravidão, não reconhecimento de cidadania, falta de acesso a serviços essenciais (saúde, educação, segurança, previdência, etc), violência policial, perseguições de grupos de extermínio de extrema direita, entre outros.

Se as fronteiras nacionais permanecem mais sólidas do que sugeriram os entusiastas da globalização, é necessário avaliar a relação delas com o passado colonial. Naquilo que chamou “políticas da espacialidade”, Grada Kilomba (2019), pesquisadora, artista e psicanalista, portuguesa com origem familiar em Angola e São Tomé & Príncipe, aponta o racismo como elemento preponderante para a não aceitação dos imigrantes nos países europeus. Aquelas e aqueles que são “diferentes” permanecem perpetuamente incompatíveis com a identidade da nação. Segundo a autora (KILOMBA, 2019, p. 112), analisando o caso da afro-alemã Alícia, “uma pessoa é negra ou alemã, mas não negra e alemã”. Ou seja, no lugar do e (acréscimo, devir), é imposta a política do ou (exclusão, segregação)[4]

Dessa forma, é nos estereótipos das identidades coloniais que se sustentam os muros que impedem o trânsito de um número cada vez maior de pessoas que buscam viver em condições mais dignas. O teórico indiano Homi Bhabha (2013, p. 94-94), ao dialogar com a teoria de Frantz Fanon, destaca a imposição de uma imagem ao sujeito colonial, enquadrando-o e, portanto, tornando-o estático:

A imagem é apenas e sempre um acessório da autoridade e da identidade; ela não deve ser lida mimeticamente como a aparência de uma realidade. [...] A imagem é a um só tempo uma substituição metafórica, uma ilusão de presença, e, justamente por isso, uma metonímia, um signo de ausência e perda. (BHABHA, 2013, p. 94-95)

Se as políticas espaciais tendem a definir, restringir e imobilizar os sujeitos (ex)-colonizados, a literatura configura-se justamente pelo contrário. O inconformismo com as formas narrativas tradicionais e com as imagens estabelecidas culturalmente é o que leva escritores a narrar novas vidas ficcionais a partir de novos percursos linguísticos. No lugar do ou imposto pelas políticas espaciais, a literatura propõe percebermos os incontáveis e que compõem a complexidade de cada pessoa.

Nesse sentido, o texto literário é um dos mais importantes recursos para a compreensão dos dilemas contemporâneos. Para compreender as migrações atuais, é fundamental a leitura das narrativas escritas por imigrantes negros, africanos, brasileiros, que viveram e vivem as margens das fronteiras coloniais que permanecem ainda presentes. 

Cartola, Aquiles e Estela: corpos negros entre África, Brasil e Portugal

O personagem Aquiles nasceu em 1970 em Luanda, filho de Cartola – parteiro do hospital Maria Pia. Possuía uma má-formação em seu calcanhar esquerdo, fato que lhe rendeu o helênico nome escolhido pelo pai, “tentando resolver o destino com a tradição” (ALMEIDA, 2019, p. 9). Sua mãe, Glória, sofria de crescente paralisia. Apesar da tentativa do pai em controlar o trágico destino, pertencia a Aquiles “um futuro no qual nem o pai nem a mãe doente tinham lugar, história em que eram somente os destinatários atrapalhados de um pacote incógnito” (ALMEIDA, 2019. p. 11).

Os médicos, quase como em uma profecia grega, anunciaram o destino inevitável do “pacote incógnito”: o calcanhar do menino teria solução caso fosse operado até os quinze anos de idade. A cirurgia, contudo, só seria possível em Lisboa. Foi assim que, em 1985, Cartola deixou Angola, sua esposa, sua filha, sua neta, além de duas sobrinhas por cuja criação era responsável, para rumar com seu filho para Portugal.

Na mala de Cartola, poucas roupas, os documentos que comprovavam a formação e a atuação em hospitais, a esperança do encontro com o paraíso que possibilitaria sua redenção profissional (com condições de trabalho em um hospital) e pessoal (com a cura do filho). O destino, no entanto, reservava à dupla outro Paraíso, este com inicial maiúscula: um bairro de lata fictício às margens da capital. Ao descrever o local, o narrador destaca seu caráter periférico e a estereotipização de seus habitantes:

[...] lugarejo demasiado distante para ser visitado por tementes, arrabalde que nenhum apóstolo conseguiria resgatar do fim do mundo, com o seu álamo esquecido e a ladainha do seu autocarro a caminho da cidade onde tudo, visto dali, era a giz e sem contorno e a gente era sem nariz e sem queixo. (ALMEIDA, 2019, p. 149). 

Já Estela, abandonada pelo pai, vivia com o irmão caçula e a mãe na cidade de Porto Alegre. A mãe trabalhava como faxineira. Entretanto, após contrair uma doença em suas mãos em consequência da exposição aos produtos de limpeza, não consegue seguir trabalhando, impossibilitando a família de pagar o aluguel. O oficial de justiça anuncia o despejo do imóvel. Conforme narra Estela,

Era um homem de camisa social, óculos grandes de aro preto. Lembro-me bem daquele rosto, porque foi ali o início da nossa descida aos infernos. O homem não entrou; apenas entregou uns papeis e pediu para minha mãe assinar. Pelo jeito que abriu o envelope, parecia que ela já sabia do que se tratava. Era uma ordem de despejo e dizia ali que teríamos 15 dias para desocupar aquele imóvel. (TENÓRIO, 2018, p. 25).

Iniciava assim a saga de Estela, sua mãe e seu irmão em busca de moradia no final dos anos 1980. Inicialmente, mudaram-se para Viamão, cidade da região metropolitana de Porto Alegre. “A casa era simples, de madeira, com dois cômodos apenas, o banheiro ficava do lado de fora” (TENÓRIO, 2018, p. 31). Afastado dos grandes centros urbanos, o local também era afastado de condições fundamentais de dignidade humana, tal como segurança, lazer e educação. “Lembro que, quando dissemos onde íamos morar, nossas tias ficaram preocupadas porque disseram que ali era um lugar perigoso e violento para se criar um filho pequeno e uma filha adolescente” (TENÓRIO, 2018, p. 31).

A estadia em Viamão não se prolongou muito. Após um episódio traumático, dois homens invadem a casa, e Estela e a mãe são alvos de violência sexual. A família passa a morar provisoriamente no complexo habitacional do bairro Cavalhada, na zona sul de Porto Alegre. Sem condições de habitação dignas, vivem de favor no apartamento de Conceição, amiga da família, onde moram também seus três filhos. Como as perspectivas não melhoram, a mãe, desesperada, opta por enviar os dois filhos ao Rio de Janeiro para viver no bairro popular do Méier, zona norte da cidade, no apartamento de Jurema (madrinha de Estela). No local, também viviam seu marido, Padilha, e o filho pequeno, Ricardinho.

Lisboa e Rio de Janeiro representam para as duas narrativas, portanto, o desejo de resolução dos dilemas contemporâneos de duas famílias negras, herdeiras do passado colonial e escravista envolvendo Portugal e suas ex-colônias. No entanto, o que encontram é mais segregação, violência e precariedade no Paraíso e no Méier.

Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, em Por uma geografia nova:

A sociedade se transforma em espaço através de sua redistribuição sobre as formas geográficas, e isto ela o faz em benefício de alguns e em detrimento da maioria; ela também o faz separar os homens entre si, atribuindo-lhes um pedaço de espaço segundo um valor comercial (SANTOS, 2004, p. 162)

O espaço mais precário, é claro, costuma ser aquele reservado aos corpos de “mais baixo valor comercial”, os fornecedores de força de trabalho – em sua maioria, corpos negros. Em O espaço do cidadão, esse espaço destinado ao trabalhador é descrito:

Olhando-se o mapa do país, é fácil constatar extensas áreas vazias de hospitais, postos de saúde, escolas secundárias e primárias, informação geral e especializada, enfim, áreas desprovidas de serviços essenciais à vida social e à vida individual. O mesmo, aliás, se verifica quando observamos as plantas das cidades em cujas periferias, apesar de uma certa densidade demográfica, tais serviços estão igualmente ausentes. É como se as pessoas nem lá estivessem. (SANTOS, 1993, p. 43.)

E de fato não estão lá por não serem consideradas pessoas pela perversa lógica capitalista e racista do planejamento urbano. Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, esse planejamento está intimamente ligado à permanência do colonialismo, como explica no artigo O colonialismo e o século XXI:

Colonialismo é todo o modo de dominação assente na degradação ontológica das populações dominadas por razões etno-raciais. Às populações e aos corpos racializados não é reconhecida a mesma dignidade humana que é atribuída aos que os dominam. São populações e corpos que, apesar de todas as declarações universais dos direitos humanos, são existencialmente considerados sub-humanos, seres inferiores na escala do ser, e as suas vidas pouco valor têm para quem os oprime, sendo, por isso, facilmente descartáveis. (SANTOS, 2018, n.p.) 

Na esteira desse pensamento, ele acrescenta que essas populações e corpos racializados são confinados naquilo que chamou de “zonas de sacrifício, a cada momento em risco de se transformarem em zonas de não-ser” (SANTOS, 2018, n.p.). A ideia de “não-ser” é equivalente ao “como se lá não estivessem” de Milton Santos, ou seja, são vidas que não possuem qualquer importância atribuída pelo Estado.

Nesse sentido, a cartografia que confina os corpos negros de Aquiles, Cartola e Estela aos espaços da impossibilidade e do não pertencimento é arquitetada há mais de quinhentos anos pela história colonial. Jogados às periferias das suas cidades de destino, não terão acesso à educação e terão sua mão de obra explorada sem direitos trabalhistas, sofrerão racismo e capacitismo – no caso de Aquiles –, verão seus traços culturais de africanidade sofrerem ataques no Brasil e em Portugal.

Aquiles é reduzido ao epíteto “aquele preto coxo da obra” (ALMEIDA, 2019, p.151). Pessoa com deficiência, negro, trabalhador da construção civil, da mesma forma que o pai (que nunca teve reconhecida sua formação e experiência profissional), tem retirada sua dignidade humana para ser reduzido a mero corpo produtivo. Estela, que sonhava ser filósofa, teve que deixar de lado a escola para cuidar de Augusto e Ricardinho, cozinhar para a família da madrinha e limpar a casa, afinal precisava “retribuir o favor” da madrinha e de Padilha.

Em suma, os três personagens terão negada sua dignidade humana, terão negada sua condição de vivo enquanto seres em devir, enquanto possibilidades de existência plenamente integradas à sociedade e ao ambiente que compõem. Para o filósofo camaronês Achille Mbembe (2020), em diálogo com Gilles Deleuze e Félix Guattari, o conceito de “vivo” passa necessariamente por uma ideia de todo. O vivo, assim entendido, transcende o indivíduo, pois está justamente em sua integração com os demais corpos, sejam humanos ou não. A política espacial que impede aos sujeitos migrantes a plena integração com o espaço, a sociedade e a cultura é então entendida como um ataque à própria “política do vivo”. 

Entre as diversas violências sofridas pelos personagens imigrantes de Luanda, Lisboa, Paraíso, destaca-se o dramático episódio do incêndio. A humilde casa mantida por Cartola e seu filho arde em chamas, que consomem além de sua estrutura inteira, os poucos móveis, algumas roupas, os documentos pessoais (e com eles a possibilidade de cidadania), as recordações de Angola e o sonho de uma Lisboa redentora. “Onde ficava a sua casa há agora um buraco escuro e molhado, esventrado, despido, à vista. Não sobrou nada” (ALMEIDA, 2019, p. 145).

Entre as diversas violências sofridas por Estela, desataca-se o episódio já referido da violência sexual em Viamão. Nessas “zonas de não-ser”, o Estado não garante a privacidade dos corpos, sobretudo negros e femininos. Uma dupla invade o casebre da família. Um homem golpeia e estupra a mãe de Estela. O outro, ao perceber a menina, tenta estuprá-la, sendo interrompido por algum barulho do lado de fora da casa que o faz fugir. “Eu fechei meus olhos e clamei por Deus. Mas Deus não veio” (TENÓRIO, 2018, p. 43). Diante da impactante reflexão da jovem, complemento que tampouco veio a polícia, que deveria garantir a segurança da população mais vulnerável, ao invés de reprimi-la.

Grada Kilomba, ao se debruçar sobre os casos de violência contra a mulher negra, define o que chama de “racismo genderizado” (KILOMBA, 2019, p. 97), isto é, uma forma de intersecção entre racismo e sexismo fundada nas fantasias coloniais que colocam as mulheres negras como corpos passíveis da mais variada sorte de violências, entre elas a sexual.

Pode-se argumentar que, como processos, o racismo e o sexismo são semelhantes, pois ambos constroem ideologicamente o senso comum através da referência às diferenças “naturais” e “biológicas”. No entanto, não podemos entender de modo mecânico o gênero e a opressão racial como paralelos porque ambos afetam e posicionam grupos de pessoas de forma diferente e, no caso das mulheres negras, eles se entrelaçam. (KILOMBA, 2019, p. 100)

Com o passar do tempo no Rio, Estela percebe que a madrinha Jurema sofre recorrentes episódios de violência doméstica por parte do marido. Ela filosofa sobre o tema, questionando-se sobre como Deus permite que tais injustiças aconteçam, ao que a madrinha responde: “Às vezes penso que Deus não tem memória, Estela. Deus tem lampejos. Às vezes, Ele esquece de nós, mulheres. É por isso que vou à igreja: para rezar e lembrá-lo de que existimos.” (TENÓRIO, 2018, p. 171). No desfecho das narrativas, contudo, parece que o Deus da madrinha não se lembrou da existência de Estela, tampouco de Cartola e de Aquiles.      

Pai e filho jamais obtiveram a cidadania portuguesa – seja a formal dos documentos, seja a informal da integração comunitária. Aquiles até tentava caminhar em meio à multidão do centro de Lisboa para dispersar-se e esquecer-se da sua condição de imigrante. Mas a fome logo tratava de recordá-lo: “A barriga colada às costas é a única recordação que tem de Cartola quando está no centro da cidade. Estão unidos pela fome” (ALMEIDA, 2019, p. 143).

Recordar-se do pai é recordar-se de Angola e de sua condição como homem, negro, pessoa com deficiência física, imigrante. É recordar que jamais chegou a pertencer de fato a Portugal. O passado colonial é um fantasma impossível de desvencilhar aos imigrantes africanos na Europa. E, se o único sentimento de pertencimento de Cartola se deu pela amizade com Pepe (outro imigrante, este fugindo das guerras do Leste Europeu), até isso lhe é tirado.

Cartola abraçou-se a ele [Pepe] e então chorou como ainda não tinha chorado em Lisboa. Estendido no pátio com o sapato de fora, Pepe era o seu único amigo, caído por desespero, por vergonha, por remorso – por amor. Se aquele portento generoso, homem cujos erros desconhecia, estava agora aos seus pés no que Cartola via como um ato digno, Portugal terminava para seu amigo angolano sem que o pai de Aquiles tivesse chegado a esse paraíso. (ALMEIDA, 2019, p. 197)   

Diante dos infortúnios sofridos em solo português, o único amigo do velho parteiro angolano, espécie de membro de uma família de excluídos que constituíram, acaba cometendo suicídio por enforcamento. Era a derradeira prova de que a Lisboa imaginada por Cartola e Aquiles ainda em Angola jamais estaria disponível à dupla; o filho não conseguiria tratar o calcanhar, ambos não teriam acesso a qualquer estabilidade profissional e financeira, ambos permaneceriam como figuras apartadas da sociedade. 

Estela, que almejava ser independente, livre, pensadora, acaba por cumprir o mesmo caminho de milhares de meninas negras no Brasil. Com pouco acesso à informação, com o corpo (e o conhecimento sobre ele) interdito por parâmetros patriarcais e religiosos, privada de assistência médica qualificada, acaba por engravidar de Francisco, com quem mantinha um relacionamento, aos quinze anos de idade. Desesperada, a personagem, que não queria estar grávida de um filho, mas queria estar grávida de ideias (TENÓRIO, 2018, p. 188), lamenta sua sina:

[...] eu não queria passar por tudo que minha mãe passou. Eu não queria ser como ela. Eu não queria aquilo de continuar a vida mesmo tendo lágrima nos olhos. Eu não queria que milagres fossem uma condição para continuar vivendo. Eu não queria ter as mãos esbranquiçadas de feridas. Eu não queria. (TENÓRIO, 2018, p. 189)

Ainda percorrendo o roteiro destinado a tantas meninas pobres e negras do país, Estela, que teve sua educação sexual sonegada pelo Estado, pela família e pela igreja, vê-se sozinha como única responsável pelo destino de uma gestação indesejada. Opta pelo abordo, mais uma vez sem o apoio da saúde pública, realizado de modo clandestino com a ajuda de sua amiga Melissa. Ela tem sérias complicações e passa por uma internação até se recuperar. Mas antes da recuperação, é claro, passa por uma série de julgamentos daqueles com quem convivia, a madrinha, o irmão, os membros da igreja evangélica, entre outros.

O episódio faz com que Estela enxergue a necessidade de mudar o curso pré-estabelecido de sua história. Buscando transcender as fronteiras que lhe foram impostas desde a colonização, abandona a casa da madrinha para viver com Francisco. Todavia, este logo passa a planejar o casamento de ambos. Casar-se aos quinze anos seria enquadrar-se mais uma vez no território que a história lhe reservava enquanto mulher negra. Por isso, sai também da casa do namorado, sem rumo. “O abandono era a única forma de me proteger” (TENÓRIO, 2018, p. 205), refletia enquanto vagava pelas ruas do Rio de Janeiro. Assim como Aquiles e Cartola, Estela não conseguiu chegar ao destino de sua constante busca por dignidade. No entanto, chegou à resposta de sua principal indagação filosófica, Deus:

Deus era, na verdade, a minha mãe limpando o chão nas casas das madames. Deus era a minha mãe tendo de sustentar a casa sozinha porque meu pai nos esquecera. Deus era a minha tia cuidando do tio Jairo com derrame. Deus era a Melissa querendo voar pela janela. Deus era a minha madrinha Jurema suportando o Padilha. Deus éramos nós sendo violentadas. Deus era eu carregando um filho morto no ventre. (TENÓRIO, 2018, p. 206)

A literatura também compõe memórias da plantação      

Após o incêndio do casebre de Cartola e Aquiles, a voz narrativa de Luanda, Lisboa, Paraíso analisa:

Ainda antes de perderem tudo, Cartola e Aquiles estavam longe de saber a razão de terem vindo parar à Quinta do Paraíso. A história empurrou-os para uma margem sem que dessem conta de que tinham chegado a terra. Postos de parte, não tinham nem a dignidade dos espoliados nem a honradez redentora dos desgraçados. Tinham apenas o heroísmo insuspeito de terem ficado de lado, como ervas daninhas, querubins, migalhas de pão, e a graça de se poderem reerguer fora do campo de visão de quem os soubesse existentes, enquanto clandestinos não para os mestres das certidões, antes dissimulados no lugar escuro onde os narradores não chegam nem para se regozijarem do facto de terem visto o que mais ninguém viu nem para dizerem que ninguém lá entra. (ALMEIDA, 2019, p. 148).    

Os enredos de ambos os romances não apresentam solução para a busca de seus personagens. A obra angolana encerra com Cartola idoso caminhando pelo centro de Lisboa como uma figura extravagante e “fora de lugar”, vestindo uma cartola já fora de moda que inquieta os demais transeuntes. Acaba por jogá-la ao rio Tejo. A obra brasileira encerra com Estela andando em Copacabana, bairro nobre à beira-mar da zona sul do Rio de Janeiro. A adolescente negra termina a narrativa filosofando de frente para o mar – algo também “fora do lugar” estabelecido pelo colonialismo intelectual e paisagístico brasileiro.  

Apesar de não haver solução para seus dilemas, Aquiles e Estela, em suas adolescências, parecem vir a compreender “a razão de terem vindo parar à Quinta do Paraíso”, assim como ao Meyer, a Viamão, à construção civil, aos cuidados domésticos, ao abuso, à gravidez, ao aborto, ao incêndio, à ilegalidade. É por meio da consciência da historicidade de exclusão e de migrações forçadas impostas aos africanos e seus descendentes que ambos os personagens compreendem que seu deslocamento em busca de dignidade, por meio de moradia, saúde, segurança e educação, é a saga que os liga a um passado ainda presente, que transcende os espaços e torna os sujeitos excluídos e violentados a partir da segregação racial, os liga ainda à memória coletiva desses sujeitos – aquilo que Grada Kilomba (2019) nomeia “memórias da plantação”.

É por meio dessas memórias descobertas por Aquiles e Estela que sujeitos como Djaimilia e Jeferson reivindicam a condição de cidadania tantas vezes negada a negros, pobres, mulheres e imigrantes. Inserem-se, desse modo, em uma africanidade que há tempos denuncia pela literatura a perversidade da lógica espacial herdada do colonialismo. Nesse sentido, podemos destacar Agostinho Neto e seu Kinaxixi; o Mafalala de Craveirinha e de Noémia; Carolina de Jesus e seu Quarto de despejo; Zeli de Oliveira e sua Ilhota; Luandino e seu Nosso musseque; Manuel Ferreira e as ilhas de A hora de bai; Aldino Muianga e a periferia de Maputo em contos de vendedores de tripas e de estivadores; Patraquim e seu Tsalala; Os baldios da Munhuana por Nelson Saúte; Paulo Lins e sua Cidade de Deus; Conceição Evaristo e seus Becos da memória; Ferréz e seu Capão Pecado; Allan da Rosa com as imagens de sua Morada; José Falero e os casos da sua Vila Sapo – para ficar em alguns exemplos.

Apesar dessas e tantas outras narrativas denunciarem há tempos “as zonas de não-ser”, onde a dignidade humana é retirada e toda violência é permitida aos corpos negros, a sociedade branca, herdeira dos privilégios coloniais, permanece não ouvindo o que têm a dizer escritores como Agostinho, Carolina, Luandino, Conceição, Djaimilia ou Jeferson. 

Nesse sentido, não posso encerrar este texto sem lembrar que, nas últimas semanas, enquanto o escrevia a partir dos meus lugares de privilégio enquanto homem, branco e com formação universitária, João Beto, um homem negro, meu conterrâneo, com quem eu partilhava os mesmos espaços nos bairros populares da zona norte de Porto Alegre, foi covardemente assassinado por dois seguranças brancos a serviço de uma famosa rede multinacional de supermercados.

Eu gostaria que esses seguranças e os empresários responsáveis pela rede de supermercados tivessem lido Djaimilia ou Jeferson. Gostaria que eles enxergassem em Beto não um corpo desprovido de direitos, de dignidade e de humanidade, mas enxergassem um pai, um marido, um filho, um amigo, alguém que trabalha e que festeja, que luta e que reza, que possui história, que sonha, que narra, que carrega em seu corpo a africanidade e a brasilidade que também nos constituem.  

NOTAS

1 Publicado originalmente em: RÜCKERT, G. H.. Africanidades em trânsito em dois romances de Djaimilia de Almeida e Jeferson Tenório. In: Jurema Oliveira. (Org.). Africanidades e brasilidades em educação. 1ed.Curitiba: Appris, 2021, v. , p. 65-78.

2 Disponível em: < http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463 >. Acesso em 20/12/2015.

3 Disponível em: <https://www.un.org/en/development/desa/population/migration/data/estimates2/ docs/ MigrationStockDocumentation_2019.pdf>. Acesso em: 05/01/2020.

4 O mecanismo identitário estabelecido entre os termos “e” e “ou” como instrumento de racismo no âmbito nacional também é apontado pelo teórico jamaicano Stuart Hall, recuperando Paul Gilroy, em seu ensaio “Que negro é este na cultura negra?”: “[...] o ‘ou’ permanece o local de contestação constante, quando o propósito da luta deve ser, ao contrário, substituir o ‘ou’ pela potencialidade e pela possibilidade de um ‘e’, o que significa a lógica do acoplamento, em lugar da lógica da oposição binária. Você pode ser negro e britânico, negra e britânica, não somente porque esta é uma posição necessária nos anos 90, mas porque mesmo esses dois termos, unidos agora pela conjunção ‘e’, contrariamente à oposição de um ao outro, não esgotam todas as nossas identidades” (HALL, 2003, p. 345).

Referências

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BHABHA, Homi K. Interrogando a identidade: Frantz Fanon e a prerrogativa pós-colonial. In.: ______. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 77-115.
CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010.
EARLY, Gerald. What's African-American Literature? America. February. 2009.
GILYARD, Keith; WARDI, Anissa Janine. African-American Literature. Penguin Academics, 2004.
GONZÁLEZ-PÉREZ, Armando. Acercamiento a la literature afrocubana: ensayos de interpretación. Miami: Ediciones Universal, 1994.
HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra? In.: ______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et all. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. p. 335-349.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cabogó, 2019.
MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. Trad. Ana Luiza Braga. São Paulo: N1 Edições, 2020.
MUNANGA, Kabengele. O conceito de africanidade nos contextos africano e brasileiro. In: OLIVEIRA, Jurema (org.) Africanidades e brasilidades: culturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015. p. 9-25.
RÜCKERT, Gustavo Henrique. Uma história de outros regressos: a comunidade lusófona e as fronteiras do império, Letras de hoje, Porto Alegre, v. 51, n. 4, p. 501-508, out-dez 2016. 
RUFFATO, Luiz. Conferência de abertura da Feira do Livro de Frankfurt. Disponível em: < http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463 >. Acesso em 20/12/2015.
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SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1993.
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TENÓRIO, Jeferson. Estela sem Deus. Porto Alegre: Zouk, 2018.
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[i] Atua como Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e como Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Presidente (2022) da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos (AFROLIC). É vice-coordenador do Grupo de Estudos em Literatura, Arte e Cultura (UFVJM/CNPq).  Seu principal interesse de pesquisa envolve as relações entre literaturas contemporâneas de língua portuguesa e pós-colonialismo.

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