A voz dos autores: entrevista com Ungulani Ba Ka Khosa[1]

Vanessa Riambau Pinheiro[i]

Cada editora escolhe ou aposta num autor e faz deste autor uma bandeira. Este não é o melhor espelho que possa existir para um país novo, onde os autores não chegam a 40 ou a 50; dificilmente se apreende essa realidade.

(Ungulani Ba Ka Khosa)

A entrevista que segue foi concedida pelo escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa em 9 de março de 2017, nas dependências da Associação dos Escritores Moçambicanos, sediado em Maputo, capital de Moçambique. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto,  que foi mantido. 

VANESSA RIAMBAU PINHEIRO: Que relação você crê que exista entre a formação da nação moçambicana e as narrativas literárias?

BA KA KHOSA: Pergunta difícil de responder principalmente para minha geração: eu pertenço a uma geração que nasceu na literatura após a independência, uma independência recente. Na minha geração colocou-se que tipo de narrativa faríamos quando começamos com a atividade literária. É porque logo após a independência houve mais uma pretensão ideológica do que literária, houve a tentativa de se impor uma narrativa  mais no campo da poesia porque era o gênero dominante, uma poesia de combate como resultado da guerra pela libertação, a chamada poesia de combate que imperou nos primeiros anos da independência por um lado; por outro lado, nesses primeiros anos da independência houve uma espécie de  - eu não diria de declínio, mas as grandes figuras da literatura (eu falo de Rui Knopfli, eu falo de ensaístas como Eugénio Lisboa e tantos outros que se assumiam na literatura e nós mais tarde os reivindicamos, como o grupo Charrua. Esses escritores migraram, saíram do país, e houve nessa altura uma tentativa, no quadro do nacionalismo muito estreito, de rejeitar, de certo modo, esses poetas como se pertencessem a uma outra galáxia. O que aconteceu conosco foi que, logo após a fundação da Charrua, nós reivindicamos esses autores como autores moçambicanos. O caso paradigmático foi o do (Ru) Knopfli que, inclusive, creio que em 1985 ou em 1986, foi convidado ( a retornar) e nós o recebemos.  Ele ficou extasiado com isso, porque afirmou-nos categoricamente que desde que havia saído de Moçambique tinha um grande problema com a escrita e com seu exílio. Nós tivemos de o reivindicar, reivindicar o universo que ultrapassava o nacionalismo ideológico estreito, baseado numa poesia de combate que por si morreu, porque era muito circunstancial. Então a sua pergunta é neste sentido:  o que é que nós temos? Uma herança, no meu caso em particular eu teria uma herança relativamente curta no sentido do Modernismo  literário na narrativa. Temos como referência Luís Bernardo Honwana,  e tem um outro texto, Contos e Lendas, do  Carneiro Gonçalves, por exemplo.  Enfim, um outro texto assim. Então nós temos que olhar para o universo africano e o universo para além do africano para encontrarmos referências para a narrativa que a gente queria que retratasse o país.  É isso. Sou fruto da Independência ao mesmo tempo procurando uma narrativa que adequasse aos propósitos da nação que se ia construindo e que nós também estávamos interessados em saber como é que é, como é que não é. Então, procuramos pelo universo inteiro e mesmo na poesia houve um outro fenômeno para a minha geração: eu falo de Eduardo White, falo de Armando Artur, poetas marcantes para minha geração, a da Charrua. Mesmo na poesia, num período em que se dizia que era preciso matar a tribo para nascer a nação, estes poetas procuraram um universo distante de Sophia de Mello Breyner, etc. Procuraram outros referenciais que não fossem somente o grande referencial que tínhamos e que era o Craveirinha, muito alicerçado numa realidade cultural bem distinta. Então, aquela aparente deriva ideológica fez com que muitos de nós procurássemos outros quadrantes, outros paradigmas para a nossa criação.

VRP  E, dentre estes quadrantes, estaria incluído o Brasil?

BKK: Com o Brasil, infelizmente, no caso da narrativa, ocorreu um elemento que, assim à distância, eu posso dizer que influenciou de certo modo porque esta geração da gesta nacionalista, o quadro do nacionalismo socialista forçou um bocadinho a entrada de Jorge Amado. Isso obrigou-nos, de certo modo, a procurar outras narrativas também, né? Houve sim Brasil, mas na minha geração não tocou assim profundo porque o que mais nos fascinou  nos anos 80 foi o realismo mágico latino-americano, com grande alicerce na América Latina espanhola. Então, isso é o que mais nos fascinou. Fascinou no sentido de que esta procura  - houve aqui um primeiro dilema, quer dizer: encontramos, no final dos anos 70, escritores africanos, mas escritores africanos que não nos satisfaziam, como no caso da referência  a Nzinga Mbandi, do queniano Ngũgĩ wa Thiong'o que tinha uma narrativa muito alinhada à política, ou seja, uma narrativa que reivindicava o chamado neo-colonialismo que imperava em muitos países africanos e nós estávamos à procura não de um alicerce político, mas de um alicerce cultural. E o alicerce cultural na África estava nesta narrativa meio obscuro, nesta narrativa não racional no sentido europeu do termo racionalismo, em que tudo há um aparente realismo que figura nas nossas mentes, que está dentro de nós, e que é um universo muito mais noturno, de curandeiros, etc, etc. De tal modo que, uma das coisas que à altura, nos anos 80, nós dizíamos era em relação aos brasileiros, era nossa grande admiração em relação ao Brasil. A coisa de vocês colocarem na porta das casas alho e outras coisas para afugentarem os espíritos - enquanto que nós, africanos, temos essa realidade mas nos preocupamos em a ocultar de toda gente - torna-se uma coisa muito interior e muito noturna. De dia, somos todos racionalistas, e à noite então é essa a preocupação. E quando descobrimos a literatura latino-americana, o chamado Realismo Fantástico, pensamos aqui é que é o caminho, estamos a encontrar aqui a possibilidade de trazer à luz essa realidade mágica ou não, que a outra literatura africana não foi capaz de levar à frente. Daí, provavelmente, o Brasil tenha sido secundarizado.  A influência de Jorge Amado não nos satisfazia de todo mas, por outro, tínhamos essa procura de uma literatura que pudesse ir ao encontro das nossas preocupações literárias.

VRP: Na poesia, essa influência foi um pouco mais forte.

BKK: Sim, na poesia sim. Na poesia, desde o princípio nós, em relação a Charrua, líamos autores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, e outros, para não falar do carioca de “Garota de Ipanema,” como é que ele se chama?

VRP: Vinícius de Moraes.

BKK: O Vinícius de Moraes, pra não falar de outros. Na poesia houve um casamento perfeito. Diria até que na poesia houve muita influência, mas na prosa a coisa foi muito pequena.

VRP: Você falou também de uma certa vocação moçambicana à poesia. E também acontece na geração atual, que se inclina mais à poesia do que à prosa? A que você credita isso?

BKK: Eu não diria assim. Não sei se por lapso ou não, falei em vocação poética. Mas não sei se é tanto vocação poética, se há esse lado de forma tão determinista. Mas porque a poesia teve um papel muito forte. Eu acho que a poesia educou-nos literariamente, educou-nos pela qualidade da poesia, tanto no período antes da Independência quanto depois. Alguns poetas que ficaram, como é o caso do Craveirinha e outros que emergiram nos anos 80 com força, como é o caso do Sebastião Alba, Heliodoro Batista, que são poetas com uma cultura poética muito forte. Isso se deu, digamos que para os que enveredaram pelo campo da poesia que fez-se à partida de um grande desafio: estar à altura da grande poesia que se escreveu aqui. E a proliferação da chamada poesia de combate levou a que houvesse uma grande rejeição a essa poesia circunstancial. Eu acho que este é o elemento fundamental. O outro talvez seja o elemento histórico, o facto de Moçambique ter, desde os anos 40, 50, a poesia como o grande elemento da sua literatura. Provavelmente, não encontramos muito na prosa porque o nível de escolarização, digamos, da maioria da população é relativamente menor, quer dizer, em termos de desenvolvimento humano, comparativamente, entre  Angola e Cabo Verde. Isso levou a que a grande narrativa não emergisse em abundância. Veja uma coisa: o grande domínio de Moçambique, o que é que teve? Nós não tivemos, à semelhança de Angola ou de Cabo Verde, nós não tivemos o fenômeno do “branco pobre”. Ou seja, o branco que porventura chegou aqui em Moçambique era um branco já escolarizado. Então, o enraizamento cultural não se deu da mesma forma que o branco pobre que se imiscuiu nos musseques em Angola, o que lhe permitiu entranhar-se na cultura local. Nós  fomos mais para o nível da produção literária, que é na poesia, ou seja, uma coisa mais sofisticada, etc, etc., do que a prosa. É uma hipótese, não digo que é indefensável, mas é uma hipótese que eu coloco. De certo modo, este fenômeno contribuiu muito para que a poesia fosse sempre um elemento do povo. Teve seu período de algum declínio nos anos 1990, mas a partir dos anos 2000, ela volta a emergir. Se agora você me perguntar quem emerge na poesia, terei vários nomes. Na prosa somos poucos, mas na poesia há uma força enorme.

VRP: Você falou sobre o fenômeno Rui Knopfli e eu queria lhe perguntar se você acredita que, atualmente, o autor já foi devolvido à condição de grande escritor moçambicano, apesar de ter optado pela cidadania portuguesa e também queria lhe perguntar, aproveitando o gancho, se você acredita que este critério da moçambicanidade ainda seja um critério que se leva em conta pra se analisar um texto literário aqui em Moçambique?

BKK: Em relação a Knopfli, é algo indiscutível para quem entra no mundo literário, no que se chama o cânone. Dentro disso, o Knopfli não há dúvida nenhuma que nos pertence, não precisa de passaporte nenhum. Aliás, foi algo que nós já naquela altura não falávamos tanto, da necessidade do passaporte que limita geograficamente o autor, se é moçambicano ou não, mas (considerar) o próprio texto do autor como elemento fundamental. Esta foi portanto a nossa grande defesa para aqueles que a reivindicavam. Havia, digamos, algumas limitantes, por exemplo, se Nelson Saúte é poeta ou escritor. Agora, a tua outra pergunta, eu acho que não, a moçambicanidade nunca foi um fator fundamental para nós que escrevemos, para nós que estávamos nisto, na literatura. O  que nos conta até hoje é sempre o texto como tal. E essa coisa da moçambicanidade não foi sempre um elemento transitório de afirmação nacionalista que aconteceu em um período relativamente curto na história de uma nação. Foram  6 ou 7 anos disto, não é nada, né? Quer dizer, houve naquela altura o abanar desta árvore nossa que foi no princípio dos anos 1980, quando houve um grande debate sobre nacionalidade literária. Mas foi um período de debate, e acho que foi um debate muito são. Entraram várias pessoas, desde o Margarido, esqueci o primeiro nome dele.

VRP: Alfredo.

BKK: Alfredo Margarido. Foi coisa de momento, mas nunca foi o elemento tipificador. Acho que o que conta mais para nós é o texto, e as coisas depois [se definem]  por si e o texto fica. O caso do Knopfli é um caso paradigmático, porque ele saiu do país. Mas nos últimos momentos da vida dele ele tirou um texto marcante que era  O Monhé das cobras, quer dizer, é este [o livro] reivindicante à terra. Vê-se que ele nunca saiu, nós nunca tivemos dúvida. E a questão da nação provavelmente seja uma questão dos políticos e dos serviços alfandegários (risos).

VRP: Patraquim também talvez tenha sofrido por semelhante questão ou não?

BKK: Não, Patraquim não, porque ele já nos anos 80 ele teve um papel relevante: ele coordenou uma página literária, tinha o grande papel de assinalar os novos autores que iam emergindo. Outro, provavelmente, que não teve o mesmo papel, porque emigrou cedo foi o Sebastião Alba, mas o Patraquim não teve este problema. Poderá ter tido problemas de ordem política, digamos, por não conseguir coabitar com o regime. Mas acho que não sentiu isso.

VRP: E dessa questão política e ideológica a AEMO está desvinculada? Em algum momento esteve mais próxima  da FRELIMO e agora já não está mais?

BKK: Eu acho que...a AEMO...eu sempre digo que a AEMO foi sempre uma zona libertada, porque mesmo a chamada poesia de combate ... Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira, como membros desta casa, na altura em que nós entramos em contradição aberta com a chamada poesia de combate, fundamos a Charrua, etc., nunca houve a tentativa de um silenciar de forma vigorosa. A  Associação sempre emergiu de forma independente, e eles permitiram, de certo modo. Acho que também é uma tática, às vezes, dos regimes totalitários essa coisa de dar uma brecha. “Não, hoje em Moçambique há espaço....” Então, tivemos este nosso espaço, eu acho que sim.

VRP: Segundo a sua opinião, quais são os fatores que definiriam que determinados escritores moçambicanos serem considerados consagrados ou mesmo canônicos, como você referiu. O que influenciaria na divulgação desses escritores interna e externamente? Pergunto porque, às vezes, se observa um fenômeno de haver escritores muito conhecidos localmente mas que não têm a mesma divulgação fora, principalmente nos mercados português e brasileiro. Então eu gostaria de saber quais são os fatores, segundo a sua opinião, que condicionariam isso, e se procede essa informação de alguns escritores aqui serem considerados localmente e não terem tanta divulgação exterior.

BKK: A tua pergunta, acho, que devemos colocar em diversos patamares.  Há o patamar que eu chamaria de patamar acadêmico, das universidades; há o patamar  do campo editorial; e há o patamar, digamos, do comedimento dos países com a política cultural. Agora, entre estes três há um desnivelamento muito grande. A literatura moçambicana, no geral, é conhecida ao nível, digamos, nível acadêmico, nível das universidades, tem uma grande circulação, é matéria de autores. Ao nível editorial, a literatura moçambicana, por um lado, sofre dessa questão, digamos, da escolha, da estratégia editorial do setor privado. E depois o fato de nós termos que necessariamente passar por Portugal, quer dizer,  o Ungulani é aquele fulano que é editado na editora tal, esse é o primeiro passo para entrar no Brasil e em outros campos, portanto, há estratégia. A estratégia editorial não é a melhor para divulgação para autores de uma nação, porque a estratégia editorial tem a ver com a linha editorial. Cada editora escolhe ou aposta num autor e faz deste autor uma bandeira. Este não é o melhor espelho que possa existir para um país novo, onde os autores não chegam a 40 ou a 50, dificilmente se apreende essa realidade. E essa realidade não é contrariada pelo comedimento das nações, porque há países que fazem uma aposta, no sentido de divulgar a literatura, por exemplo, o caso do Brasil.  Quando tem uma feira Frankfurt, onde estão os autores há uma estratégia editorial, uma estratégia que vocês tenham ao nível da Biblioteca Nacional o fundo entre as editoras de todo o mundo, vem concorrendo para este fundo, na ordem de US$ 5 mil dólares. Me vem agora o caso, estava tentando divulgar isso aqui, que as editoras podem concorrer, fazer a tradução, no caso destes autores para a edição no país. Daí que a gente vê que há brasileiros que estão a ser editados na Romênia, nesse país. Há um esforço promocional, e isso é bom. A par da estratégia editorial, vocês têm o Paulo Coelho, por exemplo. Não vamos dizer que ele representa a literatura brasileira, mas em termos comerciais é um nome que ressoa. Em termos literários, há outros nomes sem grande pujança em termos comerciais, mas que valorizam a literatura. Mas vocês conseguem balancear isso. Por outro lado, estão as universidades, que pugnam por um trabalho literário de divulgação, mas que muitas das vezes não têm contrapartida comercial dos autores. Agora nós, neste momento, estamos um pouco a nível comercial, com dois, três autores... no máximo cinco, que conseguem ir ao nível comercial, ter este ou aquele livro editado. E aí, ao nível das universidades, com uma circulação restrita e nada mais. Não é? No Brasil, agora, está a emergir uma editora de São Paulo, que é a Kapulana, que está tendo a estratégia de querer divulgar a literatura moçambicana e, de certo modo, um pouco a angolana, mas no panorama brasileiro é muito pouco, porque, em termos de estratégia editorial, nós ainda não temos combinação, marketing, no sentido de fazer chegar mais autores, como Portugal e Brasil fazem. Quando falo nos grandes mercados, serviço de tradução, serviços de divulgação, pela sorte de serviços culturais que vocês têm e nós não temos, esse é um elemento. Por outro lado, isso  não nos apoquenta tanto, porque eu acho que estamos num bom caminho. Um país relativamente novo como o nosso e com uma literatura também jovem, pequena, eu acho que a existência de um ou dois autores comercialmente conhecidos faz com que haja curiosidade em relação a esse país e à literatura que se faz.

VRP: Segundo sua opinião, esses autores que conseguem essa promoção, o fazem por terem uma estratégia de marketing mais eficiente ou pelo interesse em relação ao texto, por ser um texto mais palatável e fácil aos leitores, ou, ainda, por outras questões de divulgação?

BKK: A tua pergunta é sempre suspeita (risos). Pronto, no caso moçambicano eu acho que, por um lado, há uma estratégia de marketing que se monta nisso. Eu dou-te o exemplo da Editora Caminho que nos anos 1990 começou a editar tantos autores africanos. No caso, angolanos, moçambicanos e guineenses teve uma estratégia. Mas, a partir de um certo momento, essa editora viu que tinha um filão e esse filão chamava-se Mia Couto. Então ela apostou grandemente neste autor. Isso foi uma estratégia editorial. Apostou e deu certo. Então eu acho que, neste caso, digamos, há este lado. A estratégia editorial montada para este autor e a editora trabalhou pra este autor, como trabalhou. De certo modo, quando apareceu Saramago, trabalhou no Saramago como autor. E nos autores africanos apostou numa estratégia comercial/editorial em Mia Couto. E neste momento, a editora está a tentar retornar, porque o problema dessas estratégias comerciais é o seu tempo de uso. Quando chega seu tempo de uso, os leitores passam a querer mais em relação a esses países e não querem só uma narrativa. Então o país tem que se abrir. E aí (se firma) essa obrigatoriedade de se andar à procura de outras narrativas afins que possam sustentar a sua própria estratégia editorial. Portanto, eu acho que há, sim, estratégias editoriais que fazem isso e são benéficas por um lado e não são por outro lado. Por outro lado, ocultam uma certa literatura, não dão uma visibilidade, mas por outro lado essa ocultação, talvez subconscientemente, levanta a curiosidade sobre este determinado país, há sempre esta coisa, né? Mas eu acho que, sim, em termos comerciais há um setor privado quer-se vender livros, é normal. Agora, há outras intenções por detrás, são muitos subjetivas.

VRP: Em relação a isso, você considera que uma dessas estratégias, se não do mercado editorial, por parte da receptividade dos leitores, seria a manutenção de uma certa literatura de cunho essencialista, que isso possa ser considerado algo mais autêntico?

BKK: Não! Em termos de estratégia comercial, para o universo de língua portuguesa, e não anglo-saxônica, o texto que vinga essencialmente é aquele que está muito próximo, digamos, do universo, no caso de Portugal, do nosso ex-colonizador branco. Eu noto isso tanto nos textos angolanos quanto nos moçambicanos. Dou-lhe um exemplo que é o caso do João Paulo Borges Coelho, cujo texto é marcado por uma narrativa... o texto dele assenta muito, digamos, na vida do colono branco aqui em Moçambique. O colono branco que esteve aqui. É um universo que ele conhece. Mas é um universo que não encontra eco em Portugal. Eles não estão muito preocupados em se ver ao espelho, [em se ver] como eles se comportavam no tempo colonial. É um texto que lhes causa mal e, de certo modo, lhes dói. Mas por outro lado há o texto do Mia [Couto] que brinca com a língua, com o  lado formal da língua. Eles [portugueses] encantam-se. Sentem-se deslumbrados com isso, quer dizer, há algo que você como estudiosa pode tocar, outras sociologias sobre as quais, talvez, eu não tenha ciência. Por outro lado, outros de nós que enfocamos outros universos culturais muito mais segmentados em outro nível; provavelmente são códigos. Por exemplo, eu escrevo sem glossários, mas a minha editora agora em Portugal, quando eu lancei o Choriro, eles tiveram que fazer um glossário. Quer dizer, eu tenho uma estratégia em termos de escrita, mas que eles [a editora] não gostaram. “Não, não; vamos tentar fazer um glossário, porque, pronto, queremos isso”. É o tipo de texto que lhes cria curiosidade, mas não é o grande universo do leitor português, é diferente do mundo anglo-saxônico. Para o mundo anglo-saxônico, pela estratégia de colonização que tiveram, há a abertura para que as culturas locais pudessem florescer, quer em termos de escolarização etc. Há uma maior permissividade para que esse mundo cultural muito mais profundo avance. É difícil para o grande público brasileiro entrar no meu universo de texto. Tu notas que há qualquer coisa, um patamar que ainda não se atingiu em linha geral da literatura africana. Talvez outros códigos que as pessoas não entendem, eu diria mais que o universo crioulo que é um universo muito mais apetecível em países como Portugal, porque tem códigos facilmente decifráveis. É nesse sentido, e não porque haja uma rejeição a esse tipo de literatura. Agora, aí é que está a grande ratoeira para o autor. Se tu és um autor e vês que o tipo de texto que faz transigir ao nível da tua atividade, querendo ir de encontro à língua, e não tem nada contra, a moda é esta... Cada autor deve ser fiel ao seu DNA, àquilo que eu chamo de seu código pulsar;

VRP: E como você vê a sua evolução literária neste percurso em relação à temática, à linguagem, estilo?...

BKK: É difícil conseguir olhar para mim e conseguir classificar-me assim. Mas pronto, eu assumo-me como aquele tipo de autor que leu com profundidade, quer dizer, estou aqui, e acho que a literatura é que me está a puxar, mas eu preciso de me exercitar, me conhecer, etc, etc. Comecei com a chamada geração perdida americana, com Hemingway, na procura da construção do diálogo no texto, ou seja, como é que o diálogo pode aparecer; descobri Faulkner e os latino-americanos, eu vi que, “há, afinal, o universo latino-americano.” As pessoas dizem: “Ah, não, você viu no Saramago a grande frase, a frase longa”, afinal, a frase longa já eu vi no Outono do Patriarca, do García [Marquez], etc. Toda uma estratégia narrativa no estilo muito próximo desse escritor. Na altura em que a minha geração começou com as leituras, houve um momento em que o que existia nas próprias livrarias eram as obras escolhidas de Lenini, do Marx, etc, etc, etc. Portanto, não era a literatura enquanto tal, por isso nós cultivamos muito as bibliotecas; então havia o estilo “agora vamos à literatura russa”, então íamos aos livros todos do  Dostoievski, e na literatura russa eu apaixonei-me naquela altura pela escrita de um autor que era o Gógol das Almas Mortas, aquela coisa no texto me fascinava, mas fui parar num mundo, como muitos, como o Suleiman Cassamo e muitos da minha geração pararam na América Latina de língua castelhana. Paramos lá e encontramos um universo que se casava com o nosso universo cultural, muito disso. E às vezes dizem que tenho esse pendor para narrativa histórica. Eu não diria tanto, mas é provavelmente uma estratégia. Estou a terminar agora este livro que é das mulheres do Gungunhane. Foi uma coisa que eu anunciei pouco antes de terminar Entre  memórias silenciadas. Eu tenho isto, mas acho que isso é uma espécie de tributo. Não que eu queira voltar no tempo, é um tributo. Pronto, anunciei e fiquei quase três anos nisso, às voltas com o texto, por uma questão simples: eu não sabia o nome das mulheres que viveram cá. Eu não tinha isso, então fiquei travado. Então fui para Lisboa, fui para não-sei-onde; em finais de 2015 é que uma editora em Portugal me disse “pá, eu já descobri os nomes delas são tal, tal e tal.” Eu já tinha me comprometido, eu já queria arrumar, mas pronto, já está aí, provavelmente finais deste ano sai. Mas pronto, era uma questão de tributo, mas eu olho muito para o país, para este país enorme, porque eu tive a felicidade de crescer em vários pontos desta nação, e de beber um pouco destes universos culturais distintos que são nossos e de entrar nisso. Talvez eu tenha isso de olhar essa realidade e não tanto a realidade política, eu não sou muito disso. Provavelmente eu esteja mais sereno agora, em termos de texto e considero-me até como um autor bissexto, porque eu publico  livros de 3 em 3 anos, e gosto muito de olhar para a realidade. E agora que estou a caminhar para os [anos] 60. Provavelmente me tornarei uma pessoa mais rápida, talvez até passe a ver o horizonte depurado, “epa! Nem sei se vou-me embora amanhã”, e a gente corre. Eu sinto que a estratégia que eu adotei é de tentar introduzir sempre no texto o universo linguístico, porque eu acho que este universo linguístico carrega em si uma série de significados. Ora, a língua portuguesa é um contributo fundamental, é uma coisa muito mais forte. Apesar de eu seguir aquela formalidade toda da sintaxe portuguesa, eu acho que este universo é muito significativo, e um pouco esta oralidade: em vez de ter-se um texto corrido, tem-se um texto corrido e narrado pessoa a pessoa, é um pouco a busca que nós temos desta nossa tradição oral, de contar a história como é que passou, puxar essa maneira para o texto, tornar o texto altivo, um texto muito mais altivo, com alguma poesia, com alguma doçura. Eu acho que é isto que me fascina em termos de forma. Em termos de conteúdo, é esta pesquisa, esta procura sempre em busca deste universo, que é o universo que provavelmente não encante o grande público, mas o que me fascina é esta procura por elementos culturais que eu acho que em algum aspecto vão enformando, vão engrossando o universo da língua portuguesa. Digo-te uma coisa: eu não sou daqueles que andam aí a batalhar sobre o acordo ortográfico; a edição de Camões do século XIX é totalmente, em termos de ortografia, diferente da edição de Os Lusíadas, por exemplo, do século XXI. Quer dizer, a ortografia vai mudando, mas os significados mantêm-se. Agora, trazer à língua portuguesa outros significados, isso pra mim é fundamental, é tão fundamental que eu até disse, por exemplo, que tu tens que olhar para a cidade onde tu estás. Eu fiquei fascinado por São Paulo, às vezes as pessoas olham para o continente africano e dizem: “Ah, mas vocês têm tradição, etc.” Olha, há muito mais celulares aí do que este conceito de tradição ou não tradição, e vocês aqui  em São Paulo têm muito mais tradição  do que nós. Vejam os nomes dos vossos bairros: Guarujá, não sei quê, você está vendo, aqueles nomes todos indígenas estão incorporados naquela cidade, estão ali nas paredes das ruas, tu chegas ali e encontras este universo, a cultura. Aqui na tua própria cidade é uma cidade muito ocidentalizada, tem os nomes, podes botar o nome de um herói, mas não encontras uma rua de Itapué. O que é Itapué? Quer dizer, invocam uma cultura, invocam um momento. É isso que eu acho que nós necessitamos de trazer algum dia.

VRP: E como pode um escritor dar conta ou os escritores darem conta deste complexo universo cultural que é Moçambique, norte/sul completamente diferentes? Você acha que a literatura moçambicana tem seu universo cultural representado?

BKK: Eu não diria universo cultural representado. Eu acho que é uma coisa boa, por exemplo, o que encontramos na narrativa em Moçambique são linhas que se abrem para uma literatura jovem, o que é muito bom. Há linhas narrativas. Por exemplo, a minha linha é totalmente diferente de uma Paulina [Chiziane], totalmente diferente de um Suleiman [Cassamo], totalmente diferente do João Paulo Borges Coelho, totalmente diferente do Mia {Couto]. Neste universo cultural moçambicano há campo para todos. E há linhas que se abrem. Agora, é difícil responder a tua pergunta por uma questão muito simples: a parte cosmopolita está aqui em Maputo, e um pouco na Beira. É aqui onde nós todos nos encontramos, e muitos de nós nos formamos na universidade aqui, em Maputo, e várias pessoas de diferentes regiões do país vieram para cá. Na poesia, tu podes encontrar um número elevado de zambezianos, por exemplo, naturais da Zambézia. Na prosa tu podes encontrar naturais da província Sofala. Eles podem, digamos, trazer-te um universo cultural, mesmo que muitos de nós não tenhamos tido a oportunidade de viver aquele mundo, por quê? Porque somos filhos de assimilados, não é? Muitos de nós tivemos a língua portuguesa como a primeira língua, como a língua materna. Muitos de nós aprendemos as línguas nacionais na rua com os amigos, num esforço, quase fase da adolescência, por conhecer. Muitos de nós andamos até hoje à busca de significados, por um lado, por uma aprendizagem teórica e depois confrontando com a realidade. Então, todo este mundo é um mundo muito de pesquisa e de encontro, sempre de encontro. Dificilmente, como no Brasil, tu podes encontrar uma literatura gaúcha ou carioca ou nordestina. Ainda não se sedimentou, a região não deu isto, está longe. Ainda tens o étnico que não se urbanizou. É preciso que este étnico se urbanize para que depois possa implodir o texto que se conforme com essa realidade. Tu ainda não tens isso. Ainda não está, ainda não entrou na cidade, neste momento urbano. Nós vamos buscando que cada região possa emergir. Nós estamos, por exemplo, aqui na Associação dos Escritores [Moçambicanos]. Estivemos agora a falar com os municípios no segundo concurso da Zambézia, na capital Quelimane, para tentar ver os textos das pessoas que estão lá, mas os textos são muito fracos, porque as pessoas migram muito, e ficam aqui em Maputo. A matéria-prima não se fixa muito no local pra poder implodir, então é difícil.

VRP: Para terminar, eu gostaria que você falasse se considera que o país [Moçambique] tenha contribuído para a divulgação dos seus escritores, de que forma acontece a distribuição de livros, quais seriam os principais empecilhos e problemas a serem superados, quais são os pontos fortes, enfim.

BKK: Em termos políticos, não. Porque nós saímos de uma situação em que o Estado era praticamente o dono em termos de produção, distribuição, comercialização do livro. Eu trabalho nesta instituição, que é o Instituto do Livro e do Disco, mas para uma outra situação em que se dá ao privado a autonomia de produzir. Na área do livro, quer dizer, quando se abriu isso, emergiram – nós, neste momento, posso dizer que estamos à ordem de 33 ou 35 editoras – dessas 35, provavelmente, no mercado não chega uma dúzia. Agora, qual é o problema? O problema é na cadeia do livro. Não tem distribuidoras neste país. Ninguém ainda se aventurou a ter uma cadeia de distribuição de livro ou de qualquer outro produto cultural. Um texto que é lançado pode demorar 3 meses para chegar ao ponto mais norte do país. Por outro lado, em termos de produção, para o exterior, muito pouco, não há nenhum valor disponibilizado para tal, e isto é muito por conta do autor e muito por conta da descoberta exterior ao que se faz aqui. É muito por pessoas como tu, que vens aqui e ficas um mês e recolhes e, de repente, lanças um SOS lá fora. Epa! E isso, por exemplo, nota-se, nós da narrativa, a prosa, porque é um gênero apetecível comercialmente, há sempre alguém que assinala “olha, há o autor tal, o livro tal.” Na poesia, somos conhecidos lá fora graças, eu repito, aos professores das universidades. O caso vertente na geração dos poetas dos anos 90 e de 2000 para cá, os professores de literatura do Brasil tiveram um papel fundamental na sistematização dessas gerações que emergiram a partir dos anos 80. Porque os professores e críticos nossos cá adormeceram muito com os autores já enraizados, aquele autor que foi convidado para ir a uma Universidade e tal; muitos deles sentem-se ou disseram que já se sentiram envergonhados em muitos destes convites, porque, quando chegam lá, encontram outro professor que faz análise de um poeta que ele nunca teve a oportunidade de pelo menos ler um livro. Portanto, há muito disso, então eu acho que, por um lado, na poesia estamos a ser conhecidos.

VRP: Quais são os escritores moçambicanos novos que falta o mundo conhecer?

BKK: Eu diria que na poesia é muito difícil, porque se deveria dizer: no grupo Kuphaluxa, há este. No outro grupo, há outro. Tem o Mbate [Pedro] e tem outro, que tirou um livro há umas duas semanas que é o Andes, que são da mesma geração. Nesta geração do Kuphaluxa estão aí o Amosse [Mucavele], o [Eduardo] Quive. Também está Leo [Cote]. Depois há o grupo do Mbate [Pedro], e tu encontras outros anteriores. Na prosa, não chegamos a 10 ou 12, há este grupo dos jovens onde está agora o [Lucílio] Manjate, para além dele está o [Hélder] Faife, quer dizer, há um grupo aqui que está o Jorge de Oliveira, que tirou o livro dele agora, está o Aurélio Furdela, que teve uma tentativa no teatro e que tem crônicas, muito à escola brasileira dos cronistas/contistas. São jovens, e eu sempre digo a eles que não precisam correr, porque nós, autores, só com mais de 20 anos de estrada é que começamos a ser um pouco conhecidos lá fora. Portanto, eu acho que o tempo agora, os meios de comunicação – nós estamos na era digital - , esses autores já começam a ser conhecidos. Fizemos um percurso de 20 anos e estes em 5, 7 anos já são conhecidos. Então, eu acho que neste momento as portas de fora estão abertas, estão acessíveis, mas o que nós temos que fazer é entranharmos muito mais na realidade nacional, fazer com que o nosso texto tenha um sentimento, que consiga perdurar. Passados vinte anos, é engraçado às vezes apanhares um aluno do secundário, pede para o abraçares, quer dizer, eu não sou futebolista, né? Mas porque é um texto que tu escreveste há 15 anos mas que encanta essa geração. Isso satisfaz o autor porque, afinal, o texto não morreu, você está ali. Um jovem de 13 anos, ainda não havia nascido [quando o texto foi escrito], e o texto está ali. Isso é o que eu digo às vezes aos meus companheiros: se a gente consegue isso, a satisfação com o texto... Porque às vezes a escola pode levar à rejeição total, “que livro chato, não vou lê-lo”, mas outras vezes é isso, as pessoas estão na rua, são crianças que leram, e gostaram de um parágrafo, de um conto, etc. Isso é o que conta.

NOTA

1 Entrevista originalmente publicada no livro Cânones e perspectivas literárias em Moçambique, pela Editora da UFPB (2021). Publicado em 2019 também pela Editora Alcance, em Moçambique.


 i Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

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