A voz dos autores: entrevista com Suleiman Cassamo[1]
Vanessa Riambau Pinheiro[i]
Sou um escritor sem livro.
(Suleiman Cassamo)
A entrevista que segue foi concedida pelo escritor moçambicano Suleiman Cassamo, em 15 de março de 2017, nas dependências do Centro Cultural Franco-Moçambicano, sediado em Maputo, capital de Moçambique. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto, que foi mantido.
VANESSA RIAMBAU PINHEIRO: Você acredita que ainda exista uma relação entre literatura e ideologia em Moçambique?
SULEIMAN CASSAMO: Bom, não tanto. Embora essa relação seja algo subjetiva, não tanto como havia acontecido nos anos que antecederam a Independência do país. Porque nós tivemos a chamada poesia de combate, ou literatura de combate, uma literatura muito engajada, que visava mobilizar a consciência ou apelar à consciência dos moçambicanos. Incitavam-nos a lutar pela libertação do país do colonialismo, e durante a luta armada também houve poetas forjados na própria luta que produziram então a chamada poesia de combate. Mas depois disso, com o aparecimento do movimento Charrua, com um grupo de jovens que se juntou na Associação de Escritores Moçambicanos, nos anos 80, as coisas tomaram de certa forma um rumo ligeiramente diferente, com muitas propostas, muitas vozes e com muitas outras preocupações temáticas, embora a ideologia seja um conceito ele próprio ambíguo e abstrato, o próprio amor pode ser uma ideologia.
Mas, no sentido político creio que não. Não absolutamente, talvez um e outro autor. Mas isso é para se conhecer também através do próprio momento histórico, não só em Moçambique, como no mundo. Depois da queda do muro de Berlim, depois que desapareceram, talvez por algum tempo, os dois blocos: o capitalista e o socialista, a questão das ideologias ficou um bocadinho fluida. Não só em Moçambique, mas no mundo todo. E parece que as preocupações econômicas, que passaram a ser dominantes com o liberalismo econômico e os posicionamentos também, a nível político dos países, deixaram de ser muito agarrados a uma certa corrente ideológica, e as preocupações passaram desse nível, aparentemente. E isso pode ser visto como positivo, mas também podia ser visto como falta de algum norte. Sente-se que falta algum norte ideológico mesmo na construção dos próprios países, em algum momento.
VRP: Na sua opinião, a questão da identidade moçambicana, a moçambicanidade, já está superada na literatura? Ou ainda não?
SC: Creio que sim e creio que não, porque é uma discussão que sempre ocorreu e continuará a ocorrer por algum tempo. O que é realmente a moçambicanidade, o que é que se pode definir como literatura moçambicana e qual é a matriz dessa literatura. É uma questão teórica para qual, se calhar, nem eu próprio estou muito preparado para comentar...
VRP: Na sua literatura, você percebe que houve uma mudança? No estilo ou na temática?
SC: Na minha própria escrita não, os temas permanecem os mesmos, recorrentes. O dia a dia, os hábitos, os costumes, o apelo à memória da terra, o retorno à infância. Aquilo que foi a cultura do chão, de onde partir. São esses os referenciais, portanto, não há propriamente uma mudança. Agora, é claro que em algum momento aquele aspecto a que você se referiu, o da ideologia, terá estado mais presente nos anos que seguiram a Independência do país, com aquele fervor libertário. Ainda isso nos marcava muito, mas com o tempo as preocupações passaram mais para o plano meramente cultural.
VRP: A imprensa teve algum papel na divulgação da literatura moçambicana nesse período?
SC: Sim, eu creio que sim. Porque a imprensa, alguns jornais abriram espaço aos escritores, como colunas de crônicas publicadas regularmente. Nas crônicas eram tratados aspectos sociais e culturais do país, no nosso caso de Maputo, mas também não só, no país todo. Então eu creio que sim, a imprensa tem tido ou teve um papel importante na afirmação dos escritores que surgem após a independência. Porque sem esses espaços de experimentação literária talvez não tivéssemos atingido o nível que hoje se vê.
VRP: Atualmente a imprensa já não tem o mesmo papel?
SC: Atualmente, sinto que regredimos um pouco, já não há tantos espaços abertos para as crônicas literárias. Há algum retrocesso nesse aspecto. Eu poderia pegar como um caso de estudo o jornal Notícias, hoje já não tem aquelas colunas de crônicas. É verdade que tem, mas não tem uma coluna de cronistas no sentido mais do jornalismo opinativo. Aquelas colunas onde participaram os escritores já não existem. Havíamos tido muito antes o jornal irmão do Notícias, o Jornal de Domingo, tinha colunas dedicadas à literatura. Tínhamos também a revista Tempo, que desapareceu, tinha a Gazeta de Artes e Letras que foi um espaço muito importante de afirmação também dos jovens escritores, e que também deu referências a esta geração, porque nela eram publicados textos clássicos. Eu lembro de ter lido, por exemplo, na Gazeta de Artes e Letras , na revista Tempo, um conto fabuloso do escritor Jorge Luís Borges, argentino, creio que é “Episódio do inimigo”. Então, esses textos clássicos publicados nesses espaços também ajudaram na nossa formação. Agora há um outro papel da imprensa que é o papel de informar, o jornalismo cultural. Esse continua de certa forma presente, a questão é a qualidade. Hoje temos muitos jovens a fazer jornalismo cultural, mas pode-se colocar a questão da qualidade. Mas de qualquer forma é uma contribuição que a imprensa dá, quando reporta os eventos culturais, não só a produção, mas também às notícias sobre a cultura e a literatura em particular. Isso tem acontecido.
VRP: Como você se vê inserido hoje no mercado editorial moçambicano? Você acredita que exista esse mercado, que suas obras estão disponíveis para serem vendidas?
SC: Infelizmente, as minhas obras são esgotadas aqui no mercado. Sou um escritor sem livro.
VRP: Eu mesma andei à procura de suas obras aqui e não encontrei.
SC: E é uma pena, porque tenho ido a entrevista, falo com a televisão. Isso desperta a curiosidade das pessoas, mas elas não encontram (os meus livros). Temos alguma dificuldade ainda em termos editoriais. Porque as edições dependem (de patrocínio), os próprios editores dependem de patrocínio. E nos últimos anos passamos por uma época de alguma crise, então os patrocínios reduziram bastante, fica um pouco difícil, complicado.
VRP: E no mercado internacional? Em Portugal e Brasil, você é publicado suficientemente?
SC: Sou publicado, vamos dizer assim. Em Portugal pela Caminho, agora no Brasil pela primeira vez pela Kapulana, mas também é a minha obra mais conhecida O Regresso do Morto, que também já havia saído em França e Espanha, mas são publicações um pouco episódicas. Entretanto, há um fenômeno pouco percebido por nós como escritores, por mim particularmente, que não conheço esse fenômeno, não sei como funciona isso, que são as publicações ou a disponibilidade das obras via internet, no sistema digital. Por exemplo, eu entro na internet, vejo meus livros à venda pela Amazon, com preço e tudo. E não tenho conhecimento de nada.
VRP: Esse retorno não chega ao autor?
SC: Não chega ao autor. É algo que precisamos realmente de aprender a lidar, é uma coisa que não é nova, porque já faz alguns anos que isso já vem acontecendo. Precisamos de aprender a lidar com essa situação. Não são publicações físicas, os livros estão lá na internet, estão à venda. Mas também aconteceu fisicamente, com um livro físico meu que foi publicado na Itália, não tive nenhuma satisfação.
VRP: Direitos autorais? Nada?
SC: Nem exemplares pra conhecer o livro.
VRP: O escritor perde o domínio da sua obra.
SC: A partir de um texto meu, uma crônica minha, foi organizada uma coletânea de crônicas na Itália com o título de uma delas, “Nigéria, Campeã do Mundo”, “Nigeria campione del mondo”, e fui alertado até por algumas pessoas, uma cidadã italiana que esteve em Maputo durante um tempo, e conviveu conosco algumas vezes: “O seu livro saiu na Itália”, e na internet é possível ver esse livro. Então, pronto, são coisas que a gente não conhece. E mesmo na linha do esquema tradicional de edição, a relação com os editores é sempre ambígua, porque eles fazem uma edição, depois não se sabe mais nada, se há uma reedição, uma tradução. Então fica tudo assim. Mas bom, de qualquer forma creio eu que, para o escritor, o importante seria a divulgação de sua obra. Esse seria o primeiro desejo: ver a obra divulgada. Se esses meios informáticos, esse sistema digital permite a difusão das obras, isso tem o seu lado bom, tem o seu mérito. Agora a outra parte, a parte material do processo, vamos ver mais à frente.
VRP: Como foi que se deu a sua inserção do mercado internacional?
SC: A primeira vez que fui traduzido foi na França, em 1994, com a obra O Regresso do Morto, Le retour du mort e ainda não havia ganho nenhum prêmio. Foi por força da simpatia que a obra gerou a nível local e a aceitação também a partir do meio universitário. Naquelas cátedras, não sei se é assim que se pode dizer, de literaturas africanas e de amigas da própria França. A partir da Universidade Poitiers, então houve algum interesse de algumas professoras de fazerem a tradução da minha obra para o francês, e então tudo foi conjugado com o interesse de uma editora em Paris, as Edições Chandeigne, e o livro apareceu lá, e só então é que fui premiado. Até não muito por conta direta desse livro, na mesma ocasião publiquei um texto interessante, que digamos, foi a placa giratória para construir a obra Palestra de um morto que foi o conto “Caminhos de Phati”. Com esse texto ganhei um concurso internacional, a partir de França, organizado pela Casa da América Latina em Paris, da Rádio France Internacionale. E esse foi o primeiro prêmio internacional.
VRP: E há autores moçambicanos que são muito mais conhecidos do que outros no mercado internacional. Na sua opinião, quais os fatores que podiam influenciar para isso?
SC: Bom, acho que os contatos pessoais, o mérito também conta, dos próprios autores. Tenho o sentimento de que há sempre correntes, correntes de apoio a esse ou aquele autor, que acabam por se criar e funcionam, acabam dando nisso. Mas creio que o mérito é importante também ser destacado.
VRP: Você acredita que o escritor tenha um papel social?
SC: Não no sentido premeditado, não no sentido intencional. Pode ser que sim, pode ser que aquilo que os escritores fizeram ou produziram possa ter reflexos a esse nível, mas o escritor não pensa nisso como uma missão, não pensa imediatamente nisso. Aliás, a leitura da obra muitas vezes nos surpreende a nós, como autores. Então pode ser que tenha esse papel social, incluindo até o papel de fixar o tempo histórico, determinados tempos históricos, e fixar até aspectos da própria cultura, aspectos em extinção. Por exemplo, se eu tenho relação com a cultura ronga, é natural que alguns elementos dessa cultura serão, não digo imortalizados porque seria um pouco pretensioso, mas serão registados pela minha escrita, então isso é importante nesse sentido. O papel social seria o lado interventivo. Eu falei das crônicas que eram regulares naquela época nos jornais, creio que isso é um papel de crítica, crítica em todos os sentidos incluindo o sentido social, crítica social. Tal como fazem os músicos, não só os escritores, mas os músicos, provavelmente outros artistas também como aqueles que fazem teatro.
VRP: Quais são os autores que o influenciaram na sua trajetória literária?
SC: São muitos, mas eu poderia destacar primeiro os escritores portugueses. Sem nomes muito em concreto, mas os autores portugueses dos livros de leitura do meu tempo de escola primária. São esses que despertaram a minha atenção para a literatura: Guerra Junqueiro, Sophia Mello de Breyner Andresen, Alexandre Herculano, Miguel Torga e tantos outros que nós encontrávamos nos livros de leitura. Lembro-me de alguns títulos dos livros de leitura como Esta é a Ditosa Pátria Minha Amada (de José Braz Pereira da Cruz). Os autores que apareciam nos textos de cunho literário, nestes manuais escolares, acho que me influenciaram, despertaram meu gosto para a leitura. Mas depois descobri os autores brasileiros, senti alguma proximidade com a realidade brasileira, o caso do Jorge Amado. Quando li Jubiabá, para mim foi uma luz tremenda, algo fantástico, o encontro com o Jubiabá de Jorge Amado, Gabriela Cravo e Canela e tantas obras lindíssimas que o Jorge Amado escreveu. Uma vez no Brasil senti que não havia tanta unanimidade, talvez do mundo acadêmico, por parte da crítica, em torno do Jorge Amado, mas a nós aqui, como artistas, como escritores, ele influenciou-nos bastante. Mas também temos o caso do Guimarães Rosa. Aliás, eu ganhei o prêmio Guimarães Rosa organizado pela rádio França Internacional em Paris. Naquela época foi o prêmio Guimarães Rosa. E os cronistas brasileiros também me marcaram, como o Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e tantos outros que não me vêm assim imediatamente à memória, pelo trato simples e direto com a realidade. Mas também um pouco para o Norte, América do Norte, os contistas americanos, Edgar Allan Poe, o próprio Hemingway, contista mas também romancista, essa descoberta destes campos, William Saroyan, o seu jeito de compor as crônicas também me fascinou e influenciou em minha formação como escritor. E numa última fase, mas sempre com a América Latina, sobretudo a América Latina como chão de inspiração, descobri narradores como Gabriel Garcia Márquez e com o fascínio total, e uma identificação total com Juan Rulfo, que é no fundo precursor do próprio Gabriel Garcia Márquez, Juan Rulfo mexicano, que teve apenas duas obras, o conjunto de contos El llano en llamas, O Planalto em Chamas, e o romance Pedro Páramo, fabuloso.
VRP: Como você tomou conhecimento de Juan Rulfo?
SC: Não lembro exatamente como foi a descoberta do Rulfo, pode ter sido a partir de uma coletânea que chamava Os Primeiros Contos de Dez Mestres da Narrativa Latino-americana ( 1978), que tinha lá incluído, entre outros, o do Rulfo. “Ouvem os cães latindo” (“Não Ouves ladrar os cães?”) de um personagem que levava o filho às costas à procura de socorro, o filho estava em perigo de vida. Creio que foi a partir dessa coletânea que descobri o Juan Rulfo e mais tarde o texto completo de Pedro Páramo, não me lembro exatamente, e mais tarde o texto do próprio García Marquez que havia lido ainda na fase da sua formação decisiva o Rulfo, que, de uma forma decisiva, o marcaria decisivamente, e a partir daí tornou-se o grande escritor que foi, depois de ter lido justamente Pedro Páramo, do Rulfo.
VRP: Eu percebo que o Juan Rulfo é uma influência comum aqui em Moçambique, por isso a minha curiosidade de como chegou até aqui. E em relação à literatura aqui em Moçambique, algum autor que lhe chame a atenção?
SC: Bom, para a nossa geração, naquela época quando nós começamos a fazer literatura, é verdade que tínhamos ao lado o boom da literatura angolana, com aqueles escritores mais velhos como o Uanhenga Xitu, o Boaventura Cardoso... Então, aquele modelo também foi importante para nós, porque nós sentimos que devíamos fazer a mesma coisa, isso é, usar o barro do nosso chão para construir a literatura, e respondemos à nossa maneira, a partir daí, o que sucedeu em Angola ou que sucedia em Angola. Mas havia também autores publicados muito antes em Angola, como Luandino Vieira, de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, e nós liamos isso. Ao nível de Moçambique, temos o Nós Matamos o Cão Tinhoso, do Luís Bernardo Honwana. Para nós, os trovadores e contistas, creio que é também algo marcante; e também o romance Portagem, de Orlando Mendes. Essas foram referências, que, sem dúvidas nos guiaram.
VRP: Você acredita que o país tenha mais vocação à prosa ou à poesia, atualmente?
SC: Numa certa fase havia algum destaque da poesia, isso vem do tempo da poesia de combate, mas também influência de grandes poetas como José Craveirinha, Noémia de Sousa. Mas eu creio que a partir da geração da Charrua, há também um taco a taco entre prosa e poesia, e os dois campos têm regulado fertilidade suficiente, tanto a esfera da prosa como da poesia tem pujança, não se pode dizer que logo à partida que há muito mais inclinação para a prosa ou para a poesia. Agora, uma coisa é certa, a nossa prosa, a minha em particular, muitas vezes é devedora da poesia. É prosa sim, mas com laivos poéticos, a poesia está lá presente, muitas vezes a poesia é colocada a serviço da prosa. A prosa tem essa vantagem. A propósito disso, eu poderia lembrar também um encontro interessante, encontro, no sentido de leitura, com o escritor cubano José Lezama Lima: é um excelente modelo quando falamos de colocar a poesia a serviço da prosa.
VRP: Quais são os autores contemporâneos que você vê despontarem no cenário literário moçambicano?
SC: Bom, tem os da minha geração ou de uma geração um pouco mais à frente, o caso do Mia Couto, que é inquestionável, Paulina Chiziane, o Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White. Não vou falar só de prosadores, de poetas também não é? Eduardo White, Armando Artur, Aldino Muianga, essa geração. Faltam ainda alguns nomes por mencionar, mas há também uma geração que vem um pouco atrás da nossa, como o Lucílio Manjate.
VRP: Que acabou de ser premiado.
SC: Sim, acaba de ser premiado agora. O Aurélio Furdela, o Sangare Okapi, o Mbate Pedro, há nomes que poderão ficar. A literatura leva tempo a sedimentar, sedimenta à mesma velocidade das rochas, se calhar, então é um pouco difícil fazer a avaliação dentro mesmo tempo de vida de uma geração, mas creio que sim, há autores que hão de se consagrar. Felizmente, apesar das dificuldades a que me referi, estão a sair, tem saído livros. Tem havido publicações muito mais agora do que no passado, duma ou doutra forma, alguns até conseguem publicar fora do país pela primeira vez.
VRP: Você mencionou anteriormente que traz, até de forma inconsciente, elementos culturais em sua narrativa. Que elementos da sua cultura ou do país aparecem representados na sua narrativa?
SC: O Regresso do Morto foi considerado pela UNESCO. Justamente no ano em que foi traduzido O Regresso do Morto para o francês, 1994, a UNESCO homenageou a minha obra, classificando-a como obra representativa da literatura moçambicana no panorama universal. Representativa justamente por captar e projetar aspectos culturais, por representar não o mosaico todo, mas parte do mosaico cultural moçambicano. Então teve esse mérito de ser considerada a obra como um tijolo do edifício literário universal, então isso foi sempre uma constante. Há pouco tempo consegui o Grande Prêmio Sonangol de Literatura, em 2015, atribuído aos autores africanos de língua portuguesa, com a obra A Carta de Mbonga. Com essa obra e com as outras que são vizinhas e que vão acompanhar essa obra, procuro resgatar a memória do lugar que é Marracuene, os elementos culturais de Marracuene estão lá, e até históricos, incluindo mesmo a história do Caminho de Ferro, o impacto que teve o caminho de ferro, pois a história desta obra, deste livro editado em Luanda, decorre justamente na estação de Marracuene. Mas no livro eu mantenho o nome antigo pelo sabor da nostalgia, pela carga nostálgica: “A Estação de Vila Luísa de Marracuene era a mesma dos tempos em que tropeçou no amor...” é assim que abre o livro, chamava-se assim: Estação de Vila Luísa de Marracuene, então é aqui onde ocorre a história, mas há toda uma valorização dos aspectos paisagísticos também, culturais de Marracuene como tal, como lugar.
VRP: E para si é importante fazer essa representação, esse resgate cultural na sua obra?
SC: Sim, sim. Porque esse foi sempre o meu sentimento, o sentimento de que o escrito não precisa dizer “eu sou escritor moçambicano” a obra em si deve falar por ele, pelo escritor. Então eu tive sempre essa preocupação, a partir daquele modelo angolano, daqueles primeiros anos, daquelas publicações, eu entendi que nós também deveríamos procurar chegar ao universal, mas partindo do local. E isso é importante, não é propriamente uma missão, mas eu creio que é uma condição.
VRP: E como se chega ao universal?
SC: Quando eu digo universal, é nos seguintes termos: por exemplo com A Carta de Mbonga, uma história que percorre aquela estação do caminho de ferro. Aquela estação do caminho de ferro é sim de Marracuene, mas qualquer outro leitor no mundo, um leitor angolano pode reconhecer naquela estação a estação de Benguela; o leitor português pode reconhecer uma estação por exemplo que eu vi, e até com características arquitetônicas muito idênticas que eu vi no norte de Portugal, na região do Rio Douro. Pode reconhecer aquela estação, até na descrição.
VRP: A estação de São Bento? Do Porto, será?
SC: Pode ser, mas é lá no Trás-os-Montes e Alto Douro. Então aquela é uma estação como qualquer outra estação no mundo. É esse o universal, tal como a aldeia de Macondo, do Gabriel Garcia Márquez. Torna-se uma aldeia de qualquer outra paisagem no mundo, de qualquer outra cultura no mundo.
VRP: Então o escritor fala da sua vivência, do seu particular, mas o leitor pode identificar com qualquer experiência sua?
SC: Justamente. Essa que é a universalização, esse que é o universal. Há quem diz que quanto mais local, quanto mais localizada a obra for, mais possibilidade tem de ser reconhecida por um leitor de qualquer parte do mundo como se fosse o seu próprio lugar. O mérito está mesmo na capacidade artística, na qualidade artística.
VRP: E quem são seus principais leitores aqui em Moçambique?
SC: Eu creio que (são) de todas as idades. É um pouco difícil ter o feedback, sobretudo no campo daqueles que escrevem; quando converso com os mais novos sinto que parte deles se sentiram, ou sentem alguma simpatia, ou procuraram também fazer o mesmo percurso. Pois a escrita também tem famílias, famílias literárias; eu bem disse há pouco que sentia alguma afinidade relativamente ao Juan Rulfo. É um conceito de escrita, uma forma de tratar a prosa que aposta muito na imagem e não na abundância do verbo, mas na criação de imagens muito fortes. Aqueles outros também, mais novos, que se sentem fascinados por esse processo criativo, podem ir por aí. Mas a propósito disso, se nós lemos Juan Rulfo, podemos perceber que ele é aquele autor com a escrita muito seca, muito direta, em que cada palavra é como um diamante lapidado, dá a impressão de que não era possível encontrar outra palavra melhor para aquele lugar da frase. Mas também quando lemos William Faulkner, de O Homem e o rio, sentimos no próprio texto a enchente do Rio Mississippi. Aqui há também um outro trabalho, uma outra linha duma escrita abundante, caudalosa. Eu também trabalhei em livros como Palestra para um morto essa escrita caudalosa que temos em William Faulkner. Há esse jogo de cintura entre dois extremos, entre a secura absoluta e o caudaloso controlado, é um pouco isso. Mas eu sinto alguma simpatia, mas a literatura não é música, é verdade, não é? Um escritor não mobiliza público de modo tão visível como mobiliza a música. O músico pode ver isso pela afluência ao seu espetáculo, enquanto que a literatura é algo solitário, tanto na produção da escrita como no momento da própria leitura. A gente não sabe exatamente quem nos leu. Encontramos por acaso alguém no caminho que diz “Ah, eu gostei”, então é um feedback muito fragmentado no caso da escrita, não tem os mesmos processos que a música.
VRP: E você tem outros projetos para escrita?
SC: Sim, tive então o livro premiado há pouco, publicado em Luanda, A Carta de Mbonga. Reformulei até em 360º aquela obra, não sei se vou manter o título. Preenchi alguns vazios no meu sentimento que era preciso preencher no texto original que ganhou o Prêmio Sonangol, e acho que a obra, não vou dizer que ficou transfigurada porque ela começa e termina da mesma forma, mas ganhou mais recheio, mais continuidade interior. Meu projeto é escrever: já estou escrevendo mais duas obras. No início eu queria chamar isso de trilogia, compor uma trilogia acompanhando A Carta de Mbonga, mas vou abandonar essa estratégia de trilogia pelo momento, mas são duas obras vizinhas daquela porque as três procuram resgatar a memória do lugar, de Marracuene. Só depois disso vou partir para outras ideias, depois de completar esse ciclo. Então tem essa A Carta de Mbonga, do personagem que vai à estação e a partir da estação ele faz uma trajetória para o passado, evoca o amor do único dia que viveu nessa estação, cuja carta não é carta. Mbonga é o nome da amada, cuja carta ele esperou ao longo dos anos naquela estação, a ver se chegava pelo comboio, desde o momento em que o correio ainda chegava pelo comboio, ainda não havia o correio eletrônico nesse tempo. Mas tem também uma outra ideia que é resgatar um pouco a história familiar. Já construí um outro romance em torno do retorno, é um personagem que volta a Jafar. Jafar é o nome de um dos meus avôs que acabou dando o nome ao lugar, então ele (o personagem) volta e nesse retorno há um reavivar, um reviver daquilo que foi o lugar que foi Jafar, que foi um império, que teve o seu apogeu, a sua ascensão e queda. Jafar é mais para o sul de Marracuene. E tenho uma outra história que estou a tentar escrever. É sempre a história do regresso, no fundo o meu tema é sempre o regresso.
VRP: Os mortos e os vivos sempre regressam, como naquele conto de James Joyce (“Os mortos”, Dublinenses).
SC: Duma ou doutra maneira. (Risos) O fio condutor é sempre o regresso. Num outro caso há o outro lado da bacia do rio, da bacia de Incomati. A história que percorre do outro lado, a última caravana de hipopótamos. É um personagem que também volta às suas raízes, mas num aspecto mais aberto, mais geral, enquanto o Jafar é um pouco mais íntimo, é claro que acaba por apelar também àquilo que foi o contexto da região, mas tudo isso para resgatar essa memória do lugar que é Marracuene, que é minha terra natal, com essas três obras, uma já construída, vamos dizer, e duas em construção. Este é o projeto imediato, depois disso outras ideias podem acontecer.
VRP: De alguma forma você se sente sempre voltando pra casa? O retorno é um tema recorrente na literatura de modo geral?
SC: Sem dúvida, a imagem do regresso do morto. Aliás os meus colegas me chamam de “regresso do morto”, os meus confrades me tratam assim. Sim, sim, o tema do retorno não é só comigo, acho que toda a literatura universal bebe muito disso, e até pela facilidade esquemática do processo de construção, pelo choque do reencontro com o lugar, pelo passado...Sim, eu creio que no fundo boa parte da literatura é sempre o regresso a alguma coisa, é o retorno, o tema do regresso... é sair e espreitar e revelar que lá está, o que tinha sido, o que havia ficado.
NOTA
1 Entrevista originalmente publicada no livro Cânones e perspectivas literárias em Moçambique, pela Editora da UFPB (2021). Publicado em 2019 também pela Editora Alcance, em Moçambique.
i Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.