A voz dos autores: entrevista com Sónia Sultuane[1]
Vanessa Riambau Pinheiro[i]
As editoras vão se ligando e promovendo mais os autores que já têm um nome forte no mercado e que também sejam comercialmente rentáveis, o que é “compreensível”.
(Sónia Sultuane)
A entrevista que segue foi concedida pela escritora Sónia Sultuane, por e-mail, em 04 de abril de 2018. A escrita foi mantida tal qual como foi enviada pela autora.
VANESSA RIAMBAU PINHEIRO: Na época da Literatura de Combate, a ideologia esteve atrelada à literatura. Como você vê essa relação literatura x ideologia nos dias de hoje?
SÓNIA SULTUANE: A Literatura continua a ser um espaço de combate, de militância em outras frentes servindo outras ideologias e outros diálogos e propósitos deste tempo presente. Talvez não tão enraizada em ideologias de combate político ou do colonialismo, mas continua a ser também um espaço de reivindicação por ela ser um permanente desafio aos criadores.
VRP: Você acredita que o escritor tenha uma função social? Por quê?
SS: Sim, claro que tem, ele acaba por ser um influenciador de pensamentos de acções de emoções e sonhos. Por vezes, numa sociedade demasiadamente preconceituosa, de valores morais, sociais, culturais muito enraizados e, numa sociedade que se torna cada vez mais individualista, o desafio colectivo precisa ser construído para nos tornarmos um colectivo mais unido e próximo.
VRP: Em seus poemas, você relata as múltiplas influências culturais que existem em seu país. De que forma você acredita que essas influências influenciam na sua escrita e na sua maneira de ser?
SS: O meu pai é de Inhambane, a minha mãe é de Tete; eu nasci em Maputo, fui crescer para Nampula. E depois regressei a Maputo numa idade que nem era uma coisa ou outra, acho que sou influenciada quase por um país inteiro. Todas as histórias que ouvi, todas as memórias que tenho, todas as vivências que tive, sinceramente, acho que sempre me influenciaram, até porque nunca me senti parte integrante de sítio algum.
VRP: Você acredita que a diversidade cultural moçambicana é bem representada literariamente?
SS: Temos escritores, cujas raízes, tradições e vivências são diversificadas e de diferentes províncias com culturas tão distintas que acabam por representar bem essa diversidade cultural moçambicana. Mas também há aqueles que acumularam esse mosaico de vivências estando num lugar só e têm em si um misto de identidades.
VRP: Você acredita que já exista a constituição de um cânone literário em Moçambique?
SS: Sim, existe. Aconselho-a a ler a Tese de Doutoramento da Dra. Sara Jona[2].
VRP: Quem, segundo sua opinião, define este cânone? Ele é definido interna ou externamente?
SS: Penso que o mesmo tem sido definido internamente, mas acho que é um tema bastante académico para eu responder-lhe.
VRP: Você publicou o seu primeiro livro no Brasil em 2017. Por que, segundo sua opinião, alguns escritores são mais reconhecidos do que outros no mercado externo?
SS: Parece-me que o circuito passa pelos “críticos literários” existentes e depois pelos académicos ligados às Academias internacionais. Se um autor tiver a sorte de cair no agrado de alguma, rapidamente o trabalho chega lá fora. Ou então, quando vem cá algum académico e tem contacto com as nossas obras. As editoras vão promovendo mais os autores que já têm um nome forte no mercado e que também sejam comercialmente rentáveis, o que é “compreensível”.
VRP: Quem é seu público leitor em Moçambique?
SS: Gente que gosta de ler, pessoas ligadas à literatura, estudantes, homens, mulheres. Tenho um público diversificado.
VRP: Quais são os incentivos culturais que se dispõem dentro do país?
SS: A nível do Ministério da Cultura não conheço, honestamente. Há as instituições públicas e privadas que dão os patrocínios para que a literatura e arte continuem a ser feitas.
VRP: No Brasil, já existem artigos e dissertações sobre sua obra. Há crítica atuante dentro de Moçambique? Algum pesquisador já escreveu sobre suas obras?
SS: Que eu tenha conhecimento não; os únicos trabalhos que conheço mais aprofundados sobre o meu trabalho são do Professor Aurélio Ginja, Mestre de Educação, mas, que eu saiba, ele não é crítico literário, nem pesquisador de literatura.
VRP: Existe força no mercado editorial local? Adequada distribuição de livros?
SS: Não, não existe. Há necessidade de se pôr em prática a política do livro.
VRP: Você já encontrou dificuldades para publicar?
SS: Nunca, graças a Deus. Os livros que quis publicar sempre consegui publicá-los, até porque não espero propriamente de terceiros ou editoras para continuar a publicar as minhas obras.
VRP: Como foi seu percurso literário?
SS: Por razões não tão românticas, foi num processo de grande sofrimento e muita solidão que floriu a poesia em mim e depois foi acontecendo. Editei Sonhos em 2001 e depois surgiu Imaginar o poetizado, o No Colo da Lua. Pensei que ficaria por aí, pois gostei muito do resultado final dessa obra e até das críticas que recebi, mas como a poesia faz parte do meu DNA e é parte integrante do que sou, veio o Roda das Encarnações.
VRP: Nos seus poemas (cito aqui os de A roda das encarnações), você revela um eu-lírico consciente de sua própria sexualidade e que, não raro, domina a cena amorosa. Entretanto, o sexo geralmente aparece associado ao amor. Esta não seria uma contradição deste eu-lírico empoderado?
SS: O sexo é algo carnal sem o sentimento, como tempero, o amor é algo espiritual, carregado de muitos sentimentos, e é verdade que muitas vezes esses dois mundos se roçam, mas todos sabemos, no fundo, distingui-los. O lírico empoderado vem de ser EU, de ser amor e sexo de ser liberdade dos meus sentimentos e do meu sentir.
VRP: Que autores dentro e fora de Moçambique mais influenciaram você ao longo de sua trajetória?
SS: Florbela Espanca, Eduardo White, Pablo Neruda, Rabindranath Tagore, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Kabir, Rumi e tantos outros.
VRP: Dentre estes autores que a influenciaram, há algum africano fora de Moçambique? Qual?
SS: Gosto de alguns escritores africanos, mas não tive propriamente influências que resultassem como tal.
VRP: O seu poema "Africana" traz à tona a questão identitária em África. Você acredita que ainda há na literatura a necessidade de recorrer a temas essencialistas?
SS: Sim, acho que sim. Às vezes, “temos que nos afirmar ou reafirmar” como moçambicanos e sim também reafirmar ou afirmar a nossa identidade. Eu escrevi esse poema na altura como uma “resposta” a algumas vozes que, independentemente de outras questões que se colocavam, e de que independentemente da origem dos meus antepassados, eu era africana até ao meu último fio de cabelo.
VRP: Como você vê este embate tradição x modernidade?
SS: Eu não vejo como um embate mas sim mais como um complemento. A tradição é do que somos feitos, as nossas raízes, aquelas marcas de que não fugimos mesmo que tentemos. Doutro lado, a modernidade é a adaptação, a aceitação ao nosso quotidiano, das nossas vivências actuais que nos possibilitam a sermos escritores globais e universais.
VRP: Como você se definiria literária e identitariamente?
SS: Esse não é o meu papel, de definir-me, até porque a minha escrita é diversificada, é tão africana, como indiana, árabe, europeia, e a minha identidade essa não tem fronteiras geográficas.
VRP: Como você vê a produção literária moçambicana na atualidade?
SS: Estamos no bom caminho, temos muita produção literária, estão a surgir muitos autores novos, o que é fantástico, num país com mais de 20 milhões de habitantes, é de se esperar muito mais escritores que os já existentes, e quem sabe um dia também a descentralização da produção literária para outras regiões, trazendo à tona maior diversidade.
NOTAS
1 Entrevista originalmente publicada no livro Cânones e perspectivas literárias em Moçambique, pela Editora da UFPB (2021). Publicado em 2019 também pela Editora Alcance, em Moçambique.
2 A autora se refere à tese “Moçambique, Surge et Ambula: a interculturalidade no corpus literário obrigatório no Ensino Secundário Geral entre 2004 e 2011”, defendida em 2015 por Sara Antónia Jona Laisse, na Universidade Nova de Lisboa, sob orientação da Profª Drª Ana Maria Mão-de-Ferro Martinho.
i Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.