A voz dos autores: entrevista com Lucílio Manjate[1]

Vanessa Riambau Pinheiro[i]

                                                                                            Não sei muito bem o que está a acontecer. Mas a questão da distribuição, a questão da   divulgação, questão da promoção do livro são temas que temos que debater hoje em Moçambique.

(Lucílio Manjate)

A entrevista que segue foi concedida pelo escritor moçambicano Lucílio Manjate, em 10 de março de 2017, nas dependências da Associação dos Escritores Moçambicanos, sediado em Maputo, capital de Moçambique. Tal entrevista foi realizada como atividade integrante da minha pesquisa de Pós-Doutorado realizada na Faculdade de Letras de Lisboa, sob orientação da Professora Doutora Ana Mafalda Leite.  A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto, que foi mantido. 

VANESSA RIAMBAU PINHEIRO: Como foi seu percurso literário?

LUCÍLIO MANJATE: Meu percurso literário começa em casa. Com meu pai; com os seus livros. Eu conto muito essa história, porque é assim que começa. Lendo os livros que meu pai lia e lendo, sobretudo, a poesia de combate. Engraçado porque eu desperto para a literatura com a poesia de combate. Porque lendo-a, percebi a força interior que aquela poesia nos obrigava a produzir – vamos dizer assim –, e acho que foi este impulso que depois despertou-me para o fazer literário. Então começa resumidamente assim. Começa em 1996, sim, e, dois anos depois, em 1998, eu dirijo a Associação de Escritores Moçambicanos, onde conheci os colegas de estrada, Aurélio Furdela, Sangare Okapi e outros... e continuei a escrever. Eu recordo-me que de 1996 a 2006, que, é o ano em que publico meu primeiro livro, Manifesto, produto do Concurso Literário TDM (da empresa de Telecomunicações de Moçambique), uma coisa de três projetos, que depois submeti ao TDM. Eram contos. Portanto, de 1996 a 2006, tiro meu primeiro trabalho. Digamos que, em termos de escrita, no ano passado (2016) fiz vinte anos. Mas, em termos de publicação, são dez anos (de 2006 para cá). Portanto, meu primeiro livro é de narrativas, meu primeiro livro é de contos, o Manifesto; depois, em 2010, publiquei  Os silêncios do narrador, que é uma novela; em 2012, publiquei um outro livro de contos, que é O contador de palavras, logo a seguir, em 2013, publiquei  uma outra novela, que é A legítima dor da Dona Sebastião; em 2015, publiquei um livro infantil, que é O jovem caçador e a velha dentuça. Portanto, do ponto de vista da ficção, é essa minha produção. Tenho agora dois livros que vão sair ainda este ano, um dos quais, A triste história de Barcolino, o homem que não sabia morrer, em co-autoria com o Mbate Pedro, pela [Editora] Cavalo do Mar. Portanto, eu tenho estado a produzir ficção nos últimos tempos, com alguma constância, e, de certa forma, com alguma agressividade. Tento respeitar as circunstâncias de criar e de escrever que eu atravesso agora, né? Depois, co-organizei algumas antologias. Duas saíram pela Associação dos Escritores Moçambicanos, eu e outros escritores. A última antologia que merece algum destaque é a que organizei com Sangare Okapi – Antologia inédita: outras vozes de Moçambique, em que a gente tenta fazer uma recolha desde o momento em que se colocou um debate sobre a morte da literatura, em 2003, até... Recordo-me que nós organizamos essa antologia em 2011 e ela só saiu em 2015. Tentamos abarcar dez anos de publicação de poesia, rastreando aquilo que tinha sido publicado dez anos depois de 2003, quando surgiu o debate sobre a morte da literatura. Portanto, essa antologia saiu em 2015, ano em que também saiu um livro sobre literatura moçambicana, mas na perspectiva de um ensaio, que é Literatura moçambicana – da ameaça do esquecimento à urgência do resgate. O livro  é uma ideia minha e dos colegas, porque todos nós falamos da contemporaneidade da literatura moçambicana. Percebemos que há muita coisa nessa literatura que é ignorada ou esquecida. Então tiramos o primeiro volume  desse projeto, cujo intuito é, numa perspectiva comparatista, resgatar, entre o passado e o presente, vozes que nós consideramos importantes da literatura moçambicana, que são as de  autores como Isaac Zita, (autor de Os Molwenes), Anibal Aleluia (autor de Mbelele e outros contos), o próprio Luís Bernardo Honwana, cuja obra anda um pouco, digamos, esquecida, a nível de educação, a nível, enfim, das livrarias e tudo o mais. Portanto, temos esse projeto de resgate, que é para ilustrar. São textos que foram escritos em determinado tempo, mas também foram lidos de uma determinada forma. E essa forma de lê-los muita das vezes acabou confinando estes textos a um certo tipo de abordagem, quer temática, quer ideológica. O esforço que estamos a fazer agora com a ideia do resgate é mostrar e atualizar estes textos; lançar novos olhares. Portanto, digamos que o meu percurso nessa coisa que é a literatura tem essa bifurcação: por um lado, meu exercício enquanto artista; por outro, esta coisa de andar atrás daquilo que é a nossa literatura. Eu, inclusive, estou neste momento a organizar um livro que resulta um pouco das minhas incursões sobre a literatura moçambicana. Interessa-me olhar para a nova geração de autores moçambicanos. Terei muito gosto em partilhar quando achar que a coisa já está minimamente apresentável. Poderei partilhar consigo porque eu lanço um olhar sobre aquilo que tem sido a produção da nova geração de autores moçambicanos. Mas vendo também por uma perspectiva, digamos, dialogante, quer com a geração de Ungulani (Baka Khosa) do Mia (Couto), da Paulina (Chiziane), quer com a nossa geração.

VRP: Você acha que há uma influência desses autores na geração de vocês?

LM: Com certeza! Há uma influência. E por isso que trabalho com o tema da memória nesse meu projeto, para mostrar que, quer do ponto de vista de abordagens temáticas, quer do ponto de vista, enfim, de questões ideológicas, quer do ponto de vista de forma, há influências como em todos os períodos que nós podemos assumir quando falamos de influência. Portanto, a influência pode ser também do meio, e, se estamos todos imersos no mesmo meio, ainda que os autores apresentem elementos dialogantes, a influência pode ser sobretudo desse meio e não apenas entre autores. Em alguns pontos é visível que este [determinando] autor foi beber do Ungulani, do Mia, do Suleiman Cassamo, enfim... Eu assumo, portanto, que há influências, mas esse projeto não termina por aí, porque o que me interessa é tentar traçar um quadro que dê consistência à própria literatura moçambicana. Mostrar que estamos a construir aqui um edifício que se chama literatura moçambicana, esse trabalho da memória do sistema. Interessa-me, sobretudo, trazer essa geração, que durante algum tempo foi, não diria negada, mas dizia-se muito que não havia qualidade. E tal afirmação pode até ter alguma razão, porque qualidade também é uma coisa que se constrói. Refiro-me à qualidade literária. Nós zangávamos muito com estudiosos na Europa. Mas hoje eu percebo que há textos que falam por si, e começo a ver também discursos do ponto de vista de estudiosos mais abalizados nessas matérias, começo a ouvir outro tipo de pronunciamento. Portanto isso encoraja-me, também, a trazer este projeto. Penso eu que vai poder, enfim, contribuir de alguma forma para o entendimento que nós queremos.

VRP: Você falou algumas vezes de ideologia. Acha que essa questão é ainda premente em Moçambique?

LM: Eu acho que não. Mas ela acaba parecendo uma questão de herança. Se calhar, suspeito até um pouco inconscientemente, do ponto de vista dos autores. Sendo copistas, acabam trazendo tudo o que é praga, digamos, dos mais velhos. Estou a recordar-me agora, por exemplo, de um debate que houve, já na década de 1980, na Revista Tipo, quando, penso que foi a Professora Irene Mendes, [que]aborda o livro de Isaac Zita, Os Molwenes, e mostra que ele fez uma espécie de decalque de Luís Bernardo Honwana. E ela mostra, para fazer os flagrantes, até. É por isso que eu digo: se do ponto de vista ideológico a coisa acaba passando, é um pouco nesse processo de aprendizagem do autor. Entende que há por um lado essa coisa. Na verdade, nessa altura, sobre o texto de Isaac Zita, depois apareceu quem rebateu um pouco essa ideia, mostrando que o meio também pode influenciar, mas acho que as duas opiniões têm suas razões, os dois argumentos são válidos. Mas o argumento pode parecer até um pouco sem controle, se calhar até sobre quem escreve, na medida que estamos a falar de autores que estão a começar. Ou quando se refere a alguns que não são tão inexperientes assim, porque estamos a falar de autores que têm alguma estrada, uma estrada até maior que a minha, eu tenho 10 anos de publicação em ficção. Posso pensar num Aurélio Furdela, que também já tem mais tempo, portanto eles já não escrevem muito isso. Da forma que percebo, há alguns primeiros textos que aparecem um pouco dessa forma, mas já há algumas incursões trazendo outras questões ligadas ao contemporâneo até..

VRP: Como se articula essa tensão entre modernidade e tradição aqui em Moçambique?

LM: Eu acho que vem e vai. Eu acho uma temática importante e que se discute. Eu não acho que é uma temática importante em si. Mas percebo que alguns autores, mesmo da minha geração, ainda olham para essa questão como princípio e fim de seus exercícios. Pessoalmente, acho que tem que ser um meio para discutir outras questões. Pessoalmente, acho que ela ainda está presente, mas acho que há outras incursões importantes. A esse respeito, há um livro que vale a pena citar: A Bíblia dos pretos, de Midó das Dores. Penso que, claramente, a obra mostra uma nova forma de olhar para a relação entre tradição e modernidade. Neste livro, percebemos que a única coisa que nos deve guiar ou conduzir, seja lá por onde for, é a nossa capacidade de pensar, a nossa lógica, a nossa razão.  É uma perspectiva mais reflexiva, sem nenhum tipo de âncora nem nos valores tradicionais nem nos valores modernos. Quer dizer, a bandeira ali é a bandeira do intelectual, daquele que pensa, daquele que não veste nem uma camisa nem outra. Eu percebo que aos poucos vamos saindo desse debate, que penso já ter sido muito bem escrito. Basta olhar para as obras do Ungulani Ba Ka Khosa, do Mia Couto e da Paulina Chiziane que a gente percebe isso. A impressão que eu tenho é que nós começamos a caminhar para um outro espaço, até porque esta é uma geração que tem uma potência para a internacionalização. Não que eles também não se prestem na (?) Mas estamos a beber em outras tantas literaturas e queremos mostrar que trazemos algo novo, e trazer algo novo significa de alguma forma romper com temáticas e abordagens já cristalizadas, como é o caso.

VRP: Existem autores moçambicanos que são muito conhecidos no exterior e outros completamente desconhecidos. A que você atribui a preferência por alguns autores em detrimento de outros ou pelo menos a divulgação de alguns e não de outros?

LM: Esse tem sido um debate de tempos em tempos recorrente entre autores da minha geração. Uma vez eu disse aos meus amigos que a internacionalização de um escritor cabe, em primeira medida, ao próprio escritor. Os nomes que são chamados para mostrar essa questão da internacionalização são nomes que produziram, têm obra feita, têm anos de estrada. Portanto, fazer literatura é, primeiro, um compromisso com a arte, e esse compromisso requer trabalho, publicação e exposição. Portanto, para mim, a primeira questão é essa. Depois, é produzindo e produzindo com qualidade que todo o resto vem por arrasto. Nós dizemos, por exemplo, que a crítica não fala.  Mas a crítica vai falar de quê se não estamos a produzir? A crítica vai lançar um olhar para quem produz. Não vai lançar um olhar para um autor que em dez anos publicou apenas um livro. É difícil fazer isso. E aqui estou a chamar um pouco da minha postura também de analista. Do ponto de vista da crítica, nós ficamos sem saber. Ok, em dez anos lançou um livro; em cinco anos lançou um livro. A gente tenta perceber o que é que se passa com esse autor, se desiste, se vai arrancar, se está a escrever... ainda que nasça um segundo livro, será que o traço se mantém, a mão está firme? Quer dizer, há muitas questões que são levadas, da forma que a internacionalização do autor depende de sua produção, primeiro, porque é ela que vai dar o sinal para a mídia, para a crítica, enfim, para o livreiro, é ela que vai arrastar todo esse meio. Eu olho as coisas nesses termos. É verdade que é preciso chamar atenção também dos professores de literatura, dos estudiosos de literatura, dos críticos... é preciso também dizer que a coisa está mal. O autor também depende um pouco disso. Se eu lancei um livro,  se ele não foi bem feito ou se foi feita uma crítica com um olhar sobre o livro que não o abona, essas coisas todas... e isto que é importante. E a crítica no mínimo  tem que dizer o que está bom e o que está mal. Porque a crítica também funciona para a promoção do livro. Nós sabemos que a crítica de alguma forma determina se o autor continua ou não.

VRP: Mas essa crítica, de onde vem? É de Moçambique? É de fora?

LM: Há muita crítica que vem de fora!

VRP: Há críticos moçambicanos também que se pronunciam?

LM: Há críticos moçambicanos que se pronunciam, palestras em lançamentos de livros, apresentações desses livros, nós temos isso. O que nos falta, penso, é a publicação desses textos de forma mais ou menos sistematizada, compilar os textos e publicá-los. Esse é um dos grandes problemas.

VRP: E a distribuição dos livros, como é?

LM: A distribuição é um cancro! Nós publicamos livros em Maputo. Por ser a capital, acaba sendo o centro de tudo. O autor moçambicano por vezes não se importa em publicar em Maputo, prefere fazer o lançamento na Beira, em Nampula. Mas nós sabemos que é de Maputo pra Lisboa, São Paulo, Rio de Janeiro, por aí, e já estamos satisfeitos por isso. No nosso país não há distribuição de livros. Alguma coisa grave está a acontecer agora: as livrarias estão a fechar. É um fenômeno estranho. Porque essas livrarias, há três anos, estavam abertas. Mas há uma série de livrarias a fechar. Não sei muito bem o que está a acontecer. Mas a questão da distribuição, a questão da divulgação, a questão da promoção do livro são temas que temos que debater hoje em Moçambique. Gostaria muito que isso acontecesse.

VRP: Você acredita que haja um sistema literário moçambicano bem constituído?

LM: Acredito que sim.

VRP: Mais vocacionado à prosa ou à poesia? Ou está equilibrado?

LM: Eu penso que está equilibrado. Nós pegamos os poetas, pegamos um poeta como o Mbate Pedro, pra quem acompanha a obra do Mbate, exposta no primeiro e no segundo livro, por exemplo, no terceiro ele está fazendo outros textos. Pegamos um poeta como Sangare Okapi, pegamos um poeta como Léo Cote... a gente percebe (Luís  Carlos) Patraquim, Rui Knopfli, Craveirinha, quer dizer, eu acho que existe um sistema constituído. Na prosa, igualmente.  Eu próprio sou produto de autores como Mia (Couto), como Ungulani Ba Ka Khosa.

VRP: E que outros autores o influenciaram, em Moçambique e fora?

LM: Em Moçambique, olho mais para esses dois [últimos]. Fora, fico-me mais nos latino-americanos: Garcia Marques, Juan Julfo.  Latinos são a minha praia. Mas gosto muito também do Pepetela. Gosto muito do texto dele. Basicamente é isso.

VRP: O que você acha que diferencia a literatura moçambicana de outras literaturas africanas?

LM: É uma pergunta difícil. Muito difícil. Confesso que não tenho uma opinião muito bem formada. Do ponto de vista de estudos, não sou capaz realmente de responder. Mas, do ponto de vista daquilo que a gente vê, eu tenho a veleidade de dizer que penso que, no quadro das nossas literaturas africanas de língua portuguesa, acho que a moçambicana, quer no ponto de vista de qualidade, quer no ponto de vista de projeção, está no bom caminho. Tem dado, embora esteja sempre presente essa questão de quem é visto, quais são os autores que vão lá pra fora, eu acho que nossa literatura tem dado sinais de renovação. Costumo brincar com os meus colegas e digo que nós temos autores de qualidade para os próximos cem anos à vontade. Estamos a falar dos jovens que são premiados, internacionalmente inclusive. E que têm mostrado trabalhos muito bons. Eu privilegio muito a literatura moçambicana quando olho para as demais literaturas.

NOTA

1 Entrevista originalmente publicada no livro Cânones e perspectivas literárias em Moçambique, pela Editora da UFPB (2021). Publicado em 2019 também pela Editora Alcance, em Moçambique.


[i] Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

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