A voz dos autores: entrevista com Ana Mafalda Leite[1]
Vanessa Riambau Pinheiro[i]
[...] Há propostas do modelo canônico de certa maneira, que são estabelecidas pelo norte editorial, que leva a que as outras zonas periféricas do cânone mundial de certa maneira sejam profundamente subalternas.
(Ana Mafalda Leite)
A entrevista que se segue foi concedida pela pesquisadora e poeta luso-moçambicana Ana Mafalda Leite em 17 de julho de 2017 em Portimão, região do Algarve, em Portugal. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto, que foi mantido.
VANESSA RIAMBAU PINHEIRO: Eu gostaria de perguntar inicialmente algumas questões sobre a formação da nação moçambicana e sua relação com a narrativa. Como você vê o papel social dos escritores na construção da nacionalidade moçambicana?
ANA MAFALDA LEITE: Bom, a nação moçambicana nasce, antes de ser politicamente instituída, com a literatura, uma vez que os escritores, nomeadamente os poetas, fazem uma denúncia crítica ao regime colonial e inspiram a ideia de independência. Desde o início do século XX há um percurso colonial que vai ruindo, com mais intensidade a partir dos anos 40, com vozes propicitórias à nação, “que ainda não existe”, como diz o poeta José Craveirinha, e que um dia virá a acontecer. E que acontece em 1975. Ou seja, a nação está a ser construída, pensada em termos de imaginário e de projeção poética antes da independência; com a independência dá-se a consolidação do sistema político, mas isso não quer dizer que a nação esteja construída ou esteja consolidada, porque Moçambique é um espaço de muitas identidades étnicas diferentes e com culturas diversificadas, que de certa maneira espelham diferenças nessa ideia de uma nação homogênea. E nós podemos dizer que o colonialismo contribuiu, perversamente, para a formação da nação, na medida em que a escrita numa língua, que é a língua portuguesa, que foi uma herança colonial de que os moçambicanos se apoderaram, veio dar corpo a uma nação literária que é Moçambique.
VRP: Nesse sentido você vê, principalmente nessa literatura antes da independência, uma relação muito forte entre literatura e ideologia. E hoje ela existe?
AML: A relação é sempre muito forte entre literatura e ideologia, porque o processo histórico é muito recente, e é um processo marcado por dependências e subalternidades provocadas pelo sistema colonial. No pós-independência há um movimento panegírico de exaltação da libertação, da luta, da guerra, que teve um lugar para essa independência e a dimensão política e ideológica também se revela através do partido que lutou pela independência, que era um partido de base Marxista, que é a FRELIMO; então a ideologia está intimamente ligada à literatura numa primeira fase, e ainda hoje, de certa maneira. Porque se nós pensarmos que uma das atividades da literatura é no fundo revelar aquilo que é a nação Moçambique, o que é o país, a sua História, então a narrativa histórica vai, de forma mais ou menos empenhadamente ideológica, (des)construindo mitos e histórias ocultadas, esquecidas pelo peso da presença colonial, histórias que se situam antes da presença colonial, ou seja, que têm a ver com a fixação e a história dos povos que habitavam o Norte e o Sul de Moçambique, e que constituem, por assim dizer, uma “pré-história” daquilo que é a atual história de Moçambique.
VRP: Em que medida você considera que essa formação histórica influencia os costumes culturais do Norte e do Sul de Moçambique?
AML: Naturalmente que Moçambique é um país muito diversificado, e a herança histórica do Norte é uma herança ligada a uma presença colonial mais forte no século XIX, porque o Sul de Moçambique, nomeadamente Maputo, que na altura se chamava Lourenço Marques, só se torna capital da então colônia no final do século XIX, praticamente no dealbar do século XX, e a expansão econômica do Sul também se torna mais evidente a partir dessa época. Então nós temos, do século XVI até o século XIX, uma forte presença do Norte em termos de relação colonial com os portugueses e com outros povos, e muito antes da chegada dos portugueses também com outros povos que vinham da Índia, da China, da Arábia, enfim, contatos culturais que marcaram a costa moçambicana e a costa do Índico até praticamente a Índia. O Sul, a relação histórica com o sul é relativamente recente.
VRP: Como você vê o papel da imprensa na definição da literatura no período colonial, e como se dá hoje esse papel?
AML: A imprensa sempre teve um papel relevante em todas as ex-colônias portuguesas, das quais Moçambique faz parte, porque é com a imprensa que se começam a publicar os primeiros jornais, primeiro a legislação portuguesa através dos boletins oficiais, foi por isso que foi criada a imprensa. Mas a imprensa vai permitir a circulação do livro, do jornal e vai promover, de forma indireta, a alfabetização, porque as pessoas para poderem ler e escrever têm que aprender a ler e a escrever. No caso de Moçambique a imprensa teve um papel fundamental, uma vez que, estando os escritores moçambicanos debaixo do jugo da presença portuguesa, não tinham facilidade de publicarem em livro, e publicavam em folhas literárias ou em espaços literários da imprensa, assim como escreviam crônicas e outros artigos que tinham a ver com uma denúncia velada, mas crítica, ao regime colonial. Então a imprensa, de certa maneira, fomentou ou fez a iniciação a alguns nomes fundamentais para a literatura moçambicana, nomeadamente nos anos 40 com o Brado Africano e com várias outras folhas literárias, a folha literária do Diário de Notícias, da Tribuna, anos mais tarde pequenas revistas que surgiram mais para o fim da época colonial, e que permitiram surgir um ramo, ou um conjunto de autores que se tornaram referências para a literatura moçambicana.
VRP: Falando um pouco sobre a construção do cânone, você acredita que já se possa falar em cânone literário moçambicano na contemporaneidade?
AML: Eu acho que, sem querer ser peremptória ou de alguma maneira afirmativa, eu acho que é um cânone em formação mais do que um cânone formado, porque o cânone está sempre em formação. Penso que a ausência de uma história da literatura moçambicana, de certa maneira, prejudica essa formação do cânone. Porque, apesar de tudo, qualquer literatura tem uma relação muito estreita com o passado, e essa ausência de conhecimento e de divulgação, da presença de uma história literária, leva por vezes a uma certa confusão. A Literatura não tem apenas 40 anos, que é o tempo da Independência do país, ou digamos, a literatura tem de tomar em linha de conta com o seu momento de formação, em que há várias tendências que se cruzam, e que tem autores, inclusive alguns de descendência portuguesa, que tiveram um papel importante. Também a memória do século XIX, embora não seja um momento que tenha a ver ainda com a literatura nacional propriamente dita, é aquilo que o Antonio Cândido chama um momento de formação do sistema literário, em que a capital situava na Ilha de Moçambique, em que há a presença de um importante poeta que é o Campos D’Oliveira, e outras figuras que não estão suficientemente estudadas ainda. Ou seja, acho fundamental a realização de uma história literária ampla, e quero salientar aqui um esforço grande dos meus colegas da área da literatura moçambicana, nomeadamente de Almiro Lobo, que fez uma tese muito interessante sobre a narrativa de viagem no século XVIII, em que pela primeira vez faz referência a Moçambique, embora Moçambique ainda não existisse como nação, mas como projeto, diria como espaço de designação. É necessário andar um pouco para trás, e perceber quais os momentos de fundação desta literatura e tentar encontrar, tal como se tenta fazer no século XX entre as várias épocas, até aos períodos pós-coloniais, os momentos de passagem do testemunho, seja este testemunho aparentemente mais ideológico ou menos; uma literatura começa com seus primeiros escritos, independentemente de haver uma relação ao autor, obra e crítica. A formação do sistema literário só se estabelece de fato no século XX.
VRP: Que fatores você considera que interferem na definição desse cânone que está em formação?
AML: Penso que há vários fatores que interferem: um deles tem a ver com uma certa ideia de pertença à terra, a dimensão de um certo nativismo necessário e perfeitamente compreensível. A dimensão também da relação com a luta pela Independência, ou seja, a dimensão ideológica e política. De certa maneira a nação constrói-se através das armas, através da luta da libertação, através da denúncia das vozes críticas que antecedem a guerra, e digamos que esse empenhamento pela libertação da terra, um empenhamento telúrico, um empenhamento da reivindicação das raízes culturais e de pertença à terra é um elemento fundamental. No entanto, penso que Moçambique é um pouco mais amplo que o Sul, porque nós verificamos que em grande parte do século XX, que é o século onde a literatura de fato se afirma, é um século do Sul, e Moçambique culturalmente tem outras pertenças e tem outros passados. Nós podemos pensar que esses passados são ou estão embrenhados numa certa nebulosa colonial, uma vez que a história colonial vem desde a viagem de Vasco da Gama em direção à Índia; mas apesar de tudo, convém sempre referir, que para além do Sul de Maputo, que é actualmente o centro cultural por excelência, o país tem outras afinidades culturais, tem outras dimensões, que também têm esse cariz nativista, mas que tem aspectos religiosos e culturais diferentes, e que é preciso explorar, além da presença de outras línguas e outras atividades e práticas que são diferentes do Sul.
VRP: Há escritores do Norte do país que não conseguem a devida projeção? Ou mesmo os escritores do Sul também não tem interesse em retratar os costumes do Norte? A que se deve essa falta de representação do Norte do país na literatura?
AML: Começa já a haver, há núcleos de escritores em várias cidades do país para além do Sul, mas isso é um fenômeno relativamente recente. Começa a surgir na narrativa também uma deslocação de cenários que não estão necessariamente associados ao sul de Moçambique, e uma tentativa de trazer essas memórias silenciadas, e julgo que com o tempo isso vai ser cada vez mais evidente. Eu penso que não é desinteresse, é muito difícil viajar por Moçambique, é muito caro, e grande parte dos escritores estão situados em Maputo, ou nos arredores, em Gaza, por exemplo. Isso leva a que haja uma concentração muito grande de temas mais relacionados com o Sul; há episódios da ordem histórica que são marcados na presença colonial efetiva, que têm um lugar no Sul e no começo do século. Isso tudo são fatores que de certa maneira levaram a que o Norte fosse esquecido; por outro lado, com a guerra civil no pós-independência, o Norte foi completamente obliterado. Só nos anos mais recentes, devido às descobertas da ordem econômica como o gás e outros fatores que têm a ver com uma potencial riqueza do Norte, é que leva o Sul a olhar para o Norte com mais atenção. De que isso serve? Quando os estudantes queriam estudar, para onde é que eles vinham? Onde é que estavam as universidades há 20 anos? Estavam no Sul, não estavam no Norte. As atuais universidades do Centro e do Norte do país não foram criadas há tantos anos assim. Então o grupo de estudantes e potenciais intelectuais e escritores está a começar agora a afirmar-se, eu estou crendo que, sendo Moçambique tão grande e tão rico, que vão surgir muitas obras que vão contemplar essas outras facetas do país, porque 40 e poucos anos de independência não é nada na história de um país.
VRP: Essa questão que você referiu agora sobre uma certa preferência e obliteração do Sul em relação ao Norte, que interfere também nos temas, isso faz com que a literatura moçambicana seja uma literatura por excelência continental? E que despreze de alguma forma o ilhéu?
AML: A literatura moçambicana está mais situada no continente, e de certa maneira um pouco de costas voltadas para o mar, com um certo desconhecimento da sua relação com o oceano índico, por exemplo. Nós podemos falar em culturas do oceano índico, comuns em países francófonos e anglófonos até à Índia, que têm a ver com cidades litorâneas, com mistura de vários séculos, de gente de procedências muito diversificadas. E essas culturas índicas de certa maneira existem também no norte de Moçambique, nomeadamente na Ilha de Moçambique, a Ilha do Ibo, nas Ilhas Quirimbas, em toda a costa norte e a costa litorânea. O que acontece é houve alguns poetas que trabalharam um pouco dessas temáticas, e, nos jovens escritores começa a surgir também este tema, autores como por exemplo o Adelino Timóteo, Sangare Okapi, Chagas Levene e outros em que o tratamento do mar e do Índico é, simultaneamente, um testemunho de memória de outros escritores, de passagem da palavra, que é também importante descobrir e conhecer. Porque julgo que não é falta de interesse, é provavelmente a não existência de um contato muito direto com essas culturas que ficam longínquas do Sul, a grandes distâncias. Hoje em dia, penso que os escritores, até para promoverem e lançarem os seus livros, já começam a deslocar-se mais, já começam a trocar contatos entre os vários núcleos que existem pelo Norte do país, e provavelmente o Índico virá a ser uma área contemplada. João Borges Coelho, por exemplo, escreveu uma obra que se intitula Índicos Indícios, cuja ação é passada no norte e no sul, no fundo tratando de temas que têm a ver com essas zonas litorâneas e com as questões culturais que se relacionam com o Índico. Mas o título “Indícios” mostra como é fragmentária a referência.
VRP: Ainda sobre a definição desse cânone, eu queria só saber sua opinião sobre a influência do mercado externo, e de que forma funciona a crítica editorial em Moçambique.
AML: A crítica literária em Moçambique, e acontece um pouco hoje em dia por todo o mundo, não está muito desenvolvida, apesar de haver um grupo de estudiosos e de críticos de grande valor, muitos deles provenientes da Universidade Eduardo Mondlane e de outras universidades estrangeiras, e também da área da sociologia e da área da História. No entanto, nós verificamos cada vez mais que a dimensão crítica sobre a literatura é fragmentária e pulverizada hoje em dia. Talvez na televisão, por exemplo, nas entrevistas com escritores, ou nas notícias dos lançamentos, haja uma forma de aproximação às obras. Por outro lado, o nível de leitores potenciais de Moçambique é relativamente diminuto, não porque a alfabetização não tenha progredido, progrediu muito e aumentou muitíssimo, mas porque a leitura, e nomeadamente a leitura literária, hoje em dia disputa outros mercados, como a internet, o vídeo, o cinema, as séries, a música; e a música é nomeadamente em Moçambique um elemento importantíssimo, que faz quase a ponte entre uma certa oralidade e a mensagem escrita. Então não se pode dizer que haja uma grande vertente de recepção crítica, mas ela não é inexistente, existem vozes e existe interesse. O que talvez neste momento esteja a acontecer, e que era mais episódico há uns anos, é que há alguns anos se publicavam meia dúzia de autores ao ano, e agora aparecem vinte, trinta, quarenta autores a publicar. É necessário perceber e distinguir através doutras publicações futuras desses autores as novas vozes que se estão a afirmar em termos literários. Porque não é o fato de publicar um livro que faz um escritor, um escritor é feito através daquilo que ele vai lhe mostrando ao longo dos anos com as publicações inovadoras e com as propostas literárias.
É claro que o mercado externo joga em todas as literaturas, e não é só na moçambicana, nas africanas. Se nós formos analisar, verificamos que há um cânone eleito que ainda hoje tem uma supremacia mundial, que é o cânone da literatura norte americana ou de língua inglesa. Aquele livro que foi um grande bestseller, sobre as histórias ocultas do Vaticano, O Código da Vinci, deu origem a reproduções e duplicatas em todas línguas, em todas as literaturas, de histórias similares com fundo religioso: descobrir se Cristo tinha uma irmã, se tinha uma filha, se tinha uma mulher etc., os crimes, o que é que o Vaticano esconde. Em termos de cinema, quantos filmes já se fizeram? Então, há propostas do modelo canônico de certa maneira, que são estabelecidas pelo norte editorial, que leva a que as outras zonas periféricas do cânone mundial de certa maneira sejam profundamente subalternas.
Apesar de tudo, o que nós verificamos no mercado mundial é uma invasão do centro pela periferia através da afirmação dos escritores da Índia, dos escritores da China, dos escritores do Irã, dos escritores de língua árabe, da Palestina e dos escritores africanos. Nós começamos a ter no século XX os primeiros Prêmios Nobel atribuídos a escritores africanos, já lá vão quatro.
Eu estou convencida que atualmente há uma maior diversificação de propostas literárias que vêm de zonas muito diversas; no entanto, há uma língua que acaba por ser uma língua franca, que é a língua que de certa maneira promove o modelo mundial, que é a língua inglesa. Se um autor não é traduzido para a língua inglesa, não tem acesso nem possibilidade de ter um Prêmio Nobel. Isto nos leva a pensar que o escritor em seu pequeno país, ou no seu grande país, vai tentar motivar-se não apenas por suas propostas indigenistas ou locais, mas também por tópicos que levam a este contato, a esta itinerância com o mundo, a esta troca de ideias, de imaginários.
VRP: E Portugal e Brasil? De que forma influenciam na definição desse cânone das literaturas africanas de língua portuguesa?
AML: Penso que, de certa maneira, tanto o Brasil quanto Portugal. O Brasil atualmente funciona também quase como um papel da ex-metrópole, porque o Brasil é o país capital da língua portuguesa, com o maior número de falantes da língua. Não sei se em maior número de leitores, mas é um espaço onde há a possibilidade de divulgar um autor, e de o projetar de forma muito significativa. E há laços históricos entre Brasil e África, nomeadamente em especial com Angola; esses laços históricos que passam por exemplo pela história da escravatura revelam um conjunto propício de condições para que o mercado brasileiro possa dar maior visibilidade à literatura moçambicana, à angolana, à portuguesa. O mercado português é um mercado muito mais pequeno, todavia com uma forte influência, uma vez que é a ex-metrópole, por onde circulam muitos autores e obras que vem de vários países, que vem do Brasil, que vem de Angola, Guiné-Bissau, de São Tomé. Então cria-se assim um mercado dos autores de língua portuguesa: a designada “literatura lusófona”, autores de língua portuguesa, que leva a que haja uma espécie de aparato literário, em que há um conjunto de várias nações que tem novos laços de solidariedade que são fechados ou abertos por um idioma semelhante. Ou seja, a língua é a mesma, mas cada um escreve de diferentes formas, e isso leva a que haja conexões e trocas, e até obras de partilha de autoria com autores de diferentes países de língua portuguesa, o que me parece muito enriquecedor. Agora, o que podemos dizer é que o Brasil e Portugal funcionam com mercados que projetam? Sem dúvida. Através de prêmios, por exemplo o prêmio Oceanos, o prêmio Camões, são prêmios da língua portuguesa, não são prêmios de literatura nacional, e através de outros pequenos prêmios que vão surgindo tanto no Brasil como em Portugal, e que dão uma dimensão transnacional a um autor nacional, a um autor moçambicano, por exemplo o Lucílio Manjate ganhou o prêmio Eduardo White, ganhou um prêmio, curiosamente instituído em Portugal através da Gulbenkian. Naturalmente, isso dá uma projeção ao Manjate para além das fronteiras do seu país, e isso é muito positivo, penso eu. Há pessoas que acham essa prática uma espécie de recuperação simbólica do Império, não é? mas não me parece de modo algum. Esse fenômeno acontece, porque nós vivemos num mundo de grandes blocos econômicos e linguísticos, e é bom que o bloco linguístico de língua portuguesa ganhe força. Há o bloco de língua espanhola, de língua inglesa, de língua francesa. Os autores de língua francesa, por exemplo, são de diversos continentes, de diversas partes do mundo, e há prêmios que não estabelecem a diferença nacional, ou seja, não é para a nação, mas é para uma língua que que também é dessa nação, ou que essa nação de certa maneira representa de uma forma diferenciada. Porque é sempre bom não esquecer, aparentemente somos todos falantes e escreventes duma mesma língua, mas essa língua é diferente em cada um dos países.
VRP: Há escritores que são muito conhecidos do mercado externo, e que tiveram uma ascensão muito forte, e outros não. Na sua opinião, quais são os fatores que interferem na promoção de determinados autores em detrimento de outros?
AML: Olha, eu não lhe sei responder bem essa pergunta, isso é um fenômeno comum, resultante da instituição literária. Se nós formos ver o caso da literatura portuguesa, a literatura portuguesa projeta determinados autores em França: só alguns são traduzidos, outros não. Mas digamos que no panorama editorial Português saem 50 romances por ano, e as vezes só é traduzido um. Quais são os fenômenos que influenciam além da qualidade? Penso eu que um dos maiores fenômenos, ou digamos daquilo que poderá a ser uma ajuda, é a instituição literária, ou seja a televisão, a recepção, a entrevista, o prêmio literário, um conjunto de elementos que fazem com que aquela obra se torne diferente e relevante, de forma mais significativa e atrativa para os leitores. E digamos que esse é um processo de bola de neve, porque quanto mais acesso à crítica há, maior o número de leitores ou de compradores de livros (que as vezes não são leitores), para fazer da obra uma edição, duas edições, três edições, e tornar um autor ou autora de público potencialmente transnacional e daí vir a tradução, de língua inglesa, em língua francesa, em chinesa, em árabe...
VRP: E como funciona num país que recém começou a definir seus conflitos de moçambicanidade, se é que já os definiu, essa relação entre o nacional e o transnacional?
AML: Ainda de forma deficitária penso eu, porque a prioridade é o nacional, porque a Independência é muito recente. No entanto, os jovens autores de uma forma geral, que já nasceram no pós-independência, já têm outra relação com o além das fronteiras e curiosidades normais em termos culturais de conhecer outros espaços; a dimensão do nacional não se põe com a mesma pertinência ideológica com o que se punha com os “fundadores da nação”.
VRP: E em relação à influência das literaturas de outras ex-colônias portuguesas, você acredita que Moçambique seja influenciada por outras literaturas de língua portuguesa? Ou que outras de mais proximidade - como a sul-africana, ou mesmo a brasileira ou a latino-americana - tenham influenciado mais?
AML: Bom, houve um modelo fortemente marcado da literatura brasileira, porque o Brasil representa a primeira colônia que se desvincula do império, então o Brasil é uma alternativa para os escritores dos anos 40 e 50, do século passado, muito importante. Autores como Jorge Amado, Érico Veríssimo, muitos outros autores que circularam na década de 40, 50 e 60 em Moçambique e em outros países de língua portuguesa. Havia uma coleção chamada “Livros do Brasil”, que era do conhecimento de muitos dos autores que nessa época escreviam. Depois o modelo latino-americano, do romance maravilhoso, García Marquez e enfim, a geração dos autores do García Marquez, vai influenciar muito os autores pós-coloniais, nomeadamente que surgiram no pós-Independência. E alguns autores africanos traduzidos, porque muitos dos autores não tem necessariamente acesso à língua francesa ou inglesa, inglesa mais, porque Moçambique é rodeado por países de língua inglesa e hoje em dia há um contato maior, mas sobretudo econômico; cultural não há muito, curiosamente a literatura sul-africana é relativamente desconhecida em Moçambique. Talvez hoje os mais jovens já conheçam um pouco mais. Portanto, a literatura africana é modelo também através de Chinua Achebe, mas penso eu que veiculada através da tradução em língua portuguesa em grande parte. Há outros autores mais recentes como Salman Rushdie, um conjunto de autores que vêm de outras áreas do mundo e que representam outras culturas que também são conhecidos através da tradução, chegam aos autores moçambicanos. Os mais jovens já conhecem mais e já dominam mais a língua inglesa e talvez conheçam mais a literatura zimbabuana e sul-africana, coisa que até agora não me pareceu acontecer. Curiosamente é um pouco, como Portugal está de costas para a Espanha, Moçambique está um pouco de costas para a África do Sul, para Zimbabwe, para o Malawi, em termos de contatos diretos daquilo que nós podemos chamar “influências literárias”.
VRP: E Angola?
AML: Angola. O problema é de circulação dos livros, mas nos últimos anos tem havido mais contato, até por razões da ordem editorial e por relações conjuntas entre as associações dos escritores, mas digamos que é exceção, porque entre os vários países de língua portuguesa o livro não circula muito.
VRP: Sobre a literatura contemporânea, você acredita que haja atualmente uma certa tendência a temas autóctones e essencialistas e por quê?
AML: Acho que há essa tendência, que é natural que haja, essencialista não direi, mas de reflexão sobre aspectos da cultura ignorados ou não escritos, é necessário tratá-los. Há autores que os tratam, e com carinho, mas estão muito radicados no Sul, nas culturas do Sul. Isso é que eu acho ainda um pouco estranho, mas não totalmente estranho, estranho não é palavra adequada, é porque ainda não há um conjunto socialmente diversificado e grande de escritores para poder tratar todas as culturas do país.
VRP: Na sua opinião, a questão racial influencia de algum modo na divulgação da literatura de Moçambique?
AML: Aparentemente, não. Não sou eu que o poderei dizer, mas é claro que uma presença colonial que durou tantos anos leva a que naturalmente haja uma demarcação da maioria da população que é negra. Isto, todavia, daquilo que eu conheço dos moçambicanos, os moçambicanos não são racistas, são extremamente abertos a outras - não direi raças -, mas outras culturas, porque como diria o escritor Mia Couto, “cada homem é uma raça”.
VRP: Você como escritora, onde você se situa dentro dessa transnacionalidade e de que forma você se situa e como procura trabalhar seus temas?
AML: Bom, eu sou um caso de alguém que surge do processo histórico na transição da colônia para a pós-colônia. Digamos que começo a escrever mais ou menos em simultâneo à primeira geração pós-colonial, que é a geração da Charrua. Eu publico meu primeiro livro em 1984, mas em Portugal. No entanto, toda a minha formação foi, desde de tenra idade, em Moçambique, e culturalmente me identifico em Moçambique, cultural e literariamente. Mas não posso, até por razões da ordem de nascimento e de passaporte civil, negar a minha ascendência portuguesa. E honestamente para não dizerem que faço um uso indevido duma pertença, eu julgo-me pertencente a duas culturas, e a dois países, de certa maneira. Um em que eu nasci, e outro em que cresci, que me formou, que é Moçambique. A literatura com que eu me identifico e na qual eu me situo afetivamente e literariamente, e em termo de testemunho de passagem, é a moçambicana. Mas com a postura de uma abertura muito grande; um dos temas que eu trabalho é o tema da identidade, ou seja, destas pertenças múltiplas, e desses espaços que vão para além do espaço telúrico e que passam também pelo espaço da língua. Porque é através de uma língua que eu no fundo partilho diferentes literaturas. Mas eu me situo como autora moçambicana em termos de pertença afetiva.
VRP: Em relação a Angola. Angola situa o cenário literário em Luanda, e Maputo dificilmente é um cenário literário de preferência na literatura. A que você credita isso? E também, em relação aos temas, a gente pode ver que os temas angolanos são, sobretudo, urbanos e parecem de certa forma um pouco mais modernos ou globalizados, ao que você credita também esse fator?
AML: Ao próprio processo colonial. Luanda é uma cidade com uma comunidade urbana muito maior que Maputo. Lourenço Marques essencialmente foi uma cidade branca até as vésperas da independência, e o moçambicano é de origem suburbana ou camponesa, o moçambicano não é essencialmente urbano, enquanto em Luanda nós encontramos um operariado africano, digamos uma dimensão proletária que é evidente nos livros do Luandino [Vieira], Boaventura Cardoso, uma burguesia africana. Em Moçambique, encontramos talvez uma pequena burguesia, um conjunto de assimilados recente, e uma história da cidade da cidade, muito recente, Lourenço Marques virou capital quase em princípio do século XX, e a preponderância da presença colonial e inglesa era maioritária. A experiência da urbanidade em Luanda e em Angola é muito maior em qualquer cidade do país e no caso, de Lourenço Marques, hoje Maputo, é uma experiência que os moçambicanos só mais recentemente começam a presenciar. Então, se nós formos ler as narrativas moçambicanas, nós observamos que elas se passam entre três zonas fundamentais: uma que é vila, a aldeia e a cidade. E a cidade muitas vezes nas zonas suburbanas e não nos centros urbanos. Então é uma experiência de cruzamento entre uma mentalidade camponesa, em que a língua é outra que não o português, e de certa maneira o confronto de culturas locais com a modernidade da cidade, e com um conjunto de aspectos em que as culturas se chocam, e isso é extremamente produtivo e enriquecedor nas temáticas da literatura moçambicana, o que a torna muito original relativamente à angolana.
VRP: Há uma tensão entre literatura e modernidade, que se precisa resolver em Moçambique? O não tem que se resolver? Como você vê isso?
AML: Quem somos nós para ditar leis, não é? Ela vai se resolvendo, mas eu acho que em Moçambique vai ser sempre muito particular, porque digamos a própria história do país é uma história diferente. A diversidade das culturas existentes no país de norte a sul, nas zonas litorâneas e continentais, a forma como as pessoas pensam as suas religiões, como enquadram seus imaginários com o transcendente, como percepcionam a relação com a viagem, com o local e com o universal. Moçambique é essencialmente um país ainda muito ligado à ruralidade, mas simultaneamente muitíssimo moderno nas suas escolhas formais e estéticas no campo cultural (literário, cinemático, das artes plásticas, fotográfico).
NOTA
1 Entrevista originalmente publicada no livro Cânones e perspectivas literárias em Moçambique, pela Editora da UFPB (2021). Publicado em 2019 também pela Editora Alcance, em Moçambique.
i Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.