Entrevista com Pepetela: humor e sonho na vida de um contador de histórias[1]

Maura Eustáquia de Oliveira[i]

"Criar, através da literatura, insere-se no mito unificador de Angola, no ideal de reunir etnias e ideologias em torno da construção/ reconstrução do país, de tal modo que se forme e se configure, de modo indelével, a identidade nacional dessa terra tão rica e formosa que, hoje, pena sob o peso de uma das mais dolorosas guerras civis da história moderna". Esse é o sonho de um dos maiores escritores angolanos - Pepetela - autor de obras importantes da jovem literatura africana de língua portuguesa, como A gloriosa família, que conta a passagem, pela África, de holandeses saídos do Brasil; O desejo de Kianda, um protesto pungente contra a violência da revolução e da contra-revolução, Mayombe, Lueji e tantos outros.

Grande amigo do Brasil e de intelectuais brasileiros, Pepetela esteve em Belo Horizonte a convite da Embaixada da França, e recebeu seus leitores em uma noite de autógrafos, numa livraria da Savassi. Um pouco antes, esse ex-guerrilheiro, que hoje concentra seu poder de luta na palavra, falou-nos sobre a sua experiência de vida, seus planos e da "gestação" de seus romances.

Nasce um livro

"Os livros nascem de maneira inesperada na vida da gente. Sei que há os escritores que planejam o que escrevem da primeira à ultima página, mas comigo o processo é diferente: de repente, uma ideia cruza a minha mente, uma loja me evoca uma situação especial, qualquer coisa me remete a uma nova dimensão. É assim que os meus livros surgem", explica Pepetela. E observa: "Ainda outro dia falava disso com o amigo José Saramago e concordávamos que é muito interessante e fascinante o nascimento de um livro. Comigo, só depois as coisas são organizadas e postas em ordem, na cabeça, à medida que a história e a trama vão-se desenrolando no ato da escrita".

Disse ele ainda: "a ideia, por exemplo, de escrever O desejo de Kianda surgiu quando ainda me encontrava envolvido na criação de Lueji". Ao ver a destruição de Luanda, os prédios caírem no Kinaxixi [área histórica da capital de Angola] e sentir a desilusão que se seguiu às eleições - que todos esperávamos democráticas - tive a ideia de colocar tudo isso num livro, que só vai ser escrito e publicado entre 1994 e 1995".

Maura Oliveira: E como foi escrever esse livro?

Pepetela: Escrevi O desejo de Kianda com muita raiva, com muita revolta e talvez por isso seja um dos meus livros mais violentos. Já A gloriosa família surgiu quase por acaso, quando eu, exilado na Argélia, pesquisava para escrever a história do meu país. Era a década de 60. Deparei-me com registros tão interessantes da realidade colonial - que envolviam flamengos, holandeses, nativos e portugueses - que logo pensei: isso dá um romance. Guardei o projeto por muitos anos na cabeça, até que, num determinado instante, surgiu-me a concepção geral da trama básica da história que conto no livro.

MO: E agora, quais são os seus planos mais imediatos?

P: Agora, quero dar asas ao que há de melhor na vida: o bom humor. Foi assim que escrevi o meu Jaime Bunda, agente secreto, ainda em fase de produção industrial. Trata-se de um detetive angolano, estagiário bem ruim do serviço secreto- e, como os mais atentos já devem ter percebido, de uma sátira ao fantástico James Bond da ficção cinematográfica. A personagem é conhecida por seus pares pela alcunha de Jaime Bunda, pelo fato de ter um traseiro realmente avantajado. Na verdade, este meu livro é um pretexto para uma certa análise do poder da informação de que dispõem as polícias, escrito de forma ligeira, para fazer sorrir. Mas o  livro reserva aos meus leitores algumas surpresas em termos de técnica narrativa, embora quem já tenha lido o que escrevo já esteja acostumado com os caminhos que sigo. A primeira edição sai em setembro pelas Editoras Dom Quixote, de Lisboa, e Nzila (Caminho) de Luanda.

MO: Seu livro A gloriosa família é muito apreciado entre nós. Fale um pouco sobre ele. [Para quem ainda não o leu, A gloriosa família conta a história de um flamengo com especial tino diplomático que, nos turbulentos sete anos de dominação de Angola pela Companhia das Índias Ocidentais, holandesa (a mesma que invadiu o nordeste do Brasil e ali instaurou o governo de Maurício de Nassau), consegue se dar bem com as duas facções antagônicas, protegendo sua família e fazendo fortuna com o tráfico negreiro. Os holandeses mantiveram os portugueses aquartelados e rendidos no interior do país, até que foram de lá expulsos graças à união de esforços entre portugueses e nativos e ao próprio desinteresse da Companhia por aqueles domínios.

P: Os fatos que narro são verdadeiros. Os governadores das Índias Ocidentais são históricos. Entretanto, a visão atual desses fatos, que pertencem ao passado remoto, é dada por um narrador angolano, na voz de um escravo mulato, símbolo ele mesmo das misturas de raças, religiões, visões de homem e de mundo que estão no romance. O narrador não escreveu o livro, contou essa história para mim que, por meu lado, com o meu fascínio pela história, fascínio de historiador frustrado, misturei verdade com ficção, imaginação e rememorações e produzi o romance. A gloriosa família pode ser visto como um romance de fundação. Quando as nações como Angola estão a viver uma fase de formação e afirmação de sua identidade, a literatura tem uma certa intenção de explicar suas raízes, de encontrar respostas a questões fundamentais como: quem somos? Onde estamos? Nesse momento, a referência histórica torna-se importante no contexto da literatura. Isso explica, talvez, por que o meu tema principal e recorrente é sempre a nação. Esse é o meu leitmotiv. Os mitos que povoam Angola são preservados pelos grupos étnicos que ocupam as diferentes regiões do nosso território. Conheço-os da experiência que tenho junto à população rural e ando à procura do mito que reconstrua Angola, pois tem de haver um mito para construir uma identidade nacional e é nessa busca que me perco ou me encontro, agora, para escrever meu próximo livro. Nele, quero identificar e falar desse mito refundador, que contenha algo em que todos e cada um dos angolanos se reconheçam. Angola precisa desse mito refundador capaz de inspirara construção coletiva da nação. Antes, havia a guerra a unir todos num mesmo ideal libertário e a luta pela independência gerava a desejável solidariedade nacional. O mito de construção deve ter a mesma força da guerra de independência para reconstituir a solidariedade interna perdida.

MO: No romance, a figura de Thor seria uma representação simbólica, poética e desesperançada desse mito inspirador de nova postura do povo angolano?

P: Quem sabe? Para compor esse personagem inspirei-me num serviçal de minha família, um nativo que foi meu pajem e a quem me ligava afetivamente e que perdi de vista no turbilhão da guerra.

MO: Como você vê o interesse dos brasileiros pela literatura africana de língua portuguesa?

P: Lamento que o interesse, no Brasil, se restrinja à esfera universitária, pois há muita proximidade entre as produções de Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé com as coisas do Brasil. Porém, percebo que, no nível do público em geral, o interesse vem crescendo à medida que várias instituições culturais deste país abrem espaço aos escritores e poetas africanos. Vejo isso por mim mesmo. Antes, eu fazia conferências no circuito Rio, Belo Horizonte, São Paulo. Hoje, ando por Curitiba, Porto Alegre e já existem convites de universidades do interior de Minas e de outros Estados para conferências. É pena que o interesse crescente do público não seja devidamente acompanhado pelas editoras brasileiras, que precisam acordar e publicar aqui o que por lá se produz, para baratear o preço dos livros para os leitores.

MO: A seu ver, como estão as relações culturais entre o Brasil e a África de língua portuguesa?

P: O governo brasileiro tem, no momento, um intercâmbio cultural interessante com a África, mas seria importante, além disso, criar elos dos Estados como Minas Gerais, Bahia e outros com regiões afins de Angola e com outros países africanos para intensificar e dar nova dimensão a esse relacionamento. Acho também que as entidades privadas podem ajudar muito nessa aproximação, pois muitas empresas têm negócios e interesses nos países africanos e esse intercâmbio tem tudo para ser produtivo para os dois lados.

Comunidade lusófona

Uma das iniciativas oficiais bem-vistas por Pepetela é a criação da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, hoje presidida por uma brasileira, mas prejudicada por problemas financeiros, já que se trata de uma instituição política e cultural. Sobre essa entidade, disse o escritor:

P: Sua maior importância é mesmo cultural. Só mais tarde é que outro tipo de retorno vai aparecer. Mas é difícil "vender" essa ideia aos governos. Acho que seria maravilhoso um acordo cultural Minas Gerais/Benguela, região angolana que mais forneceu escravos para Ouro Preto. Fico pensando que bela tese não daria o estudo das relações Benguela/Minas, recuperando tradições, costumes que subsistem aqui ou lá, que mostram as íntimas ligações do planalto central de Angola com a terra mineira. Entre elas, lembro a culinária: foram os negros de Benguela que ensinaram aos mineiros o tutu de feijão, comida que, antes, era exclusiva daquela região angolana. Fico fascinado pela descoberta e revelação dessas influências mútuas que nos fazem a africanos e brasileiros irmãos. Acho que é preciso ir "escavando", procurando esses traços culturais antes que morram. Temos bem presente o exemplo curioso da capoeira, que desapareceu totalmente em Angola, onde, hoje, mestres brasileiros ensinam jovens nativos a resgatar a luta/ dança de seus antepassados.

MO: E em Angola, qual é o nível de curiosidade e interesse pelo Brasil?

P: É lamentável que a grande curiosidade de crianças e jovens angolanos pelas coisas do Brasil - despertada pelas telenovelas brasileiras - não possa ser saciada, pois, praticamente, inexistem livros disponíveis de literatura brasileira nas poucas bibliotecas do país. Tampouco há cursos regulares sobre o tema nas nossas universidades. Após a revolução e a independência, tentamos descolonizar o ensino no país, mas o que se lê, ainda hoje, é muito mais autores portugueses. Dos brasileiros mais modernos pouco se sabe e, na verdade, só os intelectuais têm acesso às produções de mestres como Jorge Amado, José Lins do Rego, Machado de Assis, João Ubaldo, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade. Para mim, ninguém que fale português pode deixar de ler a obra maior de nossa língua que, em minha opinião, se produziu no Brasil: Vidas secas, de Graciliano Ramos, assim como todos os demais escritos dele: São Bernardo, Memórias do cárcere e outros.

MO: Existem iniciativas visando a mudar essa situação?

P: Para tentar mudar um pouco as coisas, nós, escritores e intelectuais angolanos, acabamos de criar a Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde.2 A associação promove festas com danças tradicionais do centro-sul do país (semelhantes à gafieira brasileira) e possui uma editora, que já publicou vinte títulos, uma livraria, uma biblioteca e um grupo carnavalesco que tenta resgatar e renovar esse festejo antigo. A associação funciona em Luanda, no antigo Teatro Nacional de Angola, que, por iniciativa da própria sociedade local, foi parcialmente restaurado e adaptado às novas funções. Nosso grande problema é a escassez de livros.

Sonho de paz

Pepetela vê o Brasil como um exemplo da possibilidade real de convivência não agressiva entre diferentes etnias, embora saiba que temos ainda que superar o disfarçado preconceito de cor.

MO: Depois da independência, como está sendo trabalhada a unidade nacional em Angola?

P: Em Angola temos etnias múltiplas e muita gente clara que vem do sul. Nas festas e farras, às vezes questões raciais ameaçam emergir. Não as sufocamos: há que se expor as contradições e diferenças, pois isso nos obriga a discuti-las e a aprender o caminho da convivência harmoniosa, via conhecimento, o grande inimigo do preconceito.

MO: Como você analisa a situação política atual de Angola?

P: Vejo, neste momento, grande possibilidade de uma união internacional de forças conseguir a tão almejada paz em Angola. Jonas Savimbi,3 líder da Unita, sofreu reveses militares frente às tropas do MPLA (governo) e o nível de guerra baixou. Há uma certa paz. O momento ideal, porém, podia ter chegado em 2000, quando a Igreja Católica promoveu o Congresso da Paz, em julho. Certo radicalismo do governo frustrou essa expectativa. Hoje, há sinais animadores de que a paz pode acontecer brevemente: há mais liberdade de expressão, a sociedade começa a se organizar, há mais empenho das igrejas na política, controle da hiperinflação (o dólar não sobe mais todo dia e com a mesma voracidade), começa a haver investimentos externos - inclusive de empresas brasileiras de petróleo, construção civil e pedras preciosas (diamantes), incremento do comércio de petróleo com os Estados Unidos e o partido no poder já se abre a discussões críticas. Ponho muita fé nas eleições gerais previstas para 2002.

MO: Em sua opinião, qual é o grande problema, hoje, de Angola?

P: Creio que é a falta daquele mito a que me referi, capaz de unir os angolanos. Hoje esse papel poderia ser desempenhado pelas igrejas que, de modo geral, aglutinaram a população em torno de si, mas não sei se seria bastante.

NOTAS

1 Entrevista concedida um ano antes da morte de Jonas Savimbi e da assinatura do acordo que pôs fim à guerra civil de Angola, em abril de 2002. Originalmente publicada na obra Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, organizada pela Professora Dra. Ângela Vaz Leão, em 2004, pela Editora da PUC Minas.

2 O nome da associação foi tirado de planta aromática angolana, semelhante à nossa erva cidreira.

3 Jonas Savimbi morreu no início de 2002, numa batalha entre guerrilheiros da Unita e forças governamentais.


[i] Maura Eustáquia de Oliveira possui graduação em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1972), especialização em Metodologia de Ensino Superior Lato Sensu pela Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Belo Horizonte (1985), especialização em Educação Ambiental Lato Sensu pelo Centro de Estudos e Pesquisas do Estado de Minas Gerais (1995), mestrado em Programa de Pós Graduação Em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2000) e doutorado em Programa de Pós Graduação Em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004). Atualmente é Professora adjunta III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Diretora Geral do Ponto de Vista Comunicação e Educação Ambiental, Assessora da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais.

Texto para download