A   voz dos autores: entrevista com Marcelo Panguana

    Vanessa Riambau Pinheiro[i]

Acho que através do Brasil nós podemos furar para outros horizontes geográficos, através do Brasil e através de Portugal, mas sinto que esses nossos dois irmãos não nos conhecem.

Marcelo Panguana

A entrevista que segue foi concedida pelo escritor moçambicano Marcelo Panguana, em 11 de março de 2017, nas dependências do Centro Cultural Franco-Moçambicano, sediado em Maputo, capital de Moçambique. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto,  que foi mantido. 

Vanessa Riambau Pinheiro: Você acredita que o escritor moçambicano é mais um contador de histórias do que um romancista? Por quê?

Marcelo Panguana: Em primeiro lugar, eu acho que o escritor moçambicano ainda está a tentar ser escritor, e nessa tentativa de o ser ele busca fugir das catalogações que lhe dão, se é escritor, se é romancista, se é novelista. Eu acho que o mais importante neste momento para o escritor moçambicano não são os grupos ou os lugares em  que ele é colocado, é exatamente a tentativa de criar um modelo de escrita que contextualize, digamos, a sua moçambicanidade, em primeiro lugar, e em segundo lugar, que tente dar um traço, um perfil, um estilo próprio de escrita, porque eu acho que em qualquer parte do mundo, eu acho que qualquer escrita só o é quando consegue ter uma certa individualidade, um certo estilo. E nós, moçambicanos, estamos à procura desse estilo, dessa individualidade, dessa forma muito peculiar de escrever as coisas. Por isso estamos à procura de tudo, estamos à procura de ser romancistas, estamos à procura de ser poetas, estamos à procura de ser críticos literários, estamos à procura enfim de ser.

VRP: Você acha que essa questão da moçambicanidade ainda está muito presente na literatura aqui em Moçambique?

MP: Penso que sim, penso que está porque nós somos, em primeiro lugar, somos um país que ainda está à procura de si próprio, em busca de nós próprios. E estando os moçambicanos à procura de si próprios, é evidente que os escritores também fazem parte desse país, também à procura de si próprios como escritores. Por isso é muito importante, é uma preocupação que nós temos aqui em Moçambique de ser qualquer coisa. Como sabe, nós estamos a tentar criar uma sociedade muito peculiar, digamos, com a mistura de raças, tentando criar uma sociedade mulata em termos raciais, em termos culturais, em termos políticos, estamos a tentar arranjar um modelo de ser, temos que nos buscar, temos que  conversar, temos que nos dar as mãos, temos que nos amar, fundamentalmente isso.

VRP: Em termos políticos, você acha que ainda existe uma ideologia vinculada à literatura Moçambicana? Ou isso já foi superado?

MP: Eu acho que sim. Qualquer escrita de um país emergente traz consigo uma certa ideologia, tênue ou muito profunda, mas traz. Porque é  a tal questão da busca. Os nossos políticos também andam em busca de si próprios, com todas as contradições que eles têm. Aliás, eles pensam que não têm, nós é que sentimos que eles têm. Muitas vezes os políticos africanos colocam-se acima de todas as suspeitas e de todas as maquiavelices. Então eu acho que a ideologia, do meu ponto de vista, pode estar presente na literatura que a gente faz, se considerarmos que os sistemas políticos em África muitas vezes tendem a querer se apropriar da cultura, isto é, tendem também a querer se aproprias de seus próprios escritores, e um escritor apropriado, digamos, colocado dentro do sistema, obviamente começa a fazer o jogo desse próprio sistema, escrever sobre o sistema, ou então não escreve absolutamente nada, que é outra forma de estar a favor do sistema é estar em silêncio.

VRP: Na entrevista que você deu para o livro de Ana Mafalda Leite (2002), você falou que Moçambique é um país isolado em África, porque está cercado de outros países de língua inglesa, você acha que essa questão interfere em Moçambique o fato de estar isolado de outros países de língua portuguesa ou de outros países que seriam similares?

MP: Eu acho que sim, porque penso que qualquer escrita para aquilatar o seu valor tem que entrar na fase de compressões, qualquer literatura que quer se afirmar tem que tentar transpor fronteiras, ir para o outro lado, seus escritores serem lidos pelos outros e eles também lerem as coisas dos outros. E nós, nesse aspecto estamos um pouco marginalizados. A nossa literatura não é consumida pelos nossos vizinhos, mesmo considerando o potencial de disseminação da nossa cultura, do nosso estilo literário, intelectual. Temos que considerar que estamos ao lado de um país com uma grande tradição de leitura, a África do Sul que tem  dois prêmios Nobel de Literatura. Provavelmente eles não conhecem o Panguana. Eu conheço os livros deles, inclusive tive o prazer de receber aquela moça [Nadine Gordimer] que recebeu o Prêmio Nobel da África do Sul; tive o prazer de estar com ela aqui em Moçambique durante um dia inteiro, mas ela não conhece a minha escrita. O Zimbabwe tem uma grande tradição de leitura e de produção literária, mas não temos relações absolutamente nenhuma; nem com Angola que é um país que fala a língua portuguesa, nós não temos. Então eu acho que nós estamos fechados: ou nós começamos a escrever em inglês, ou os escritores que escrevem em inglês começam a escrever em português, o que é pouco provável. Mas eu sinto que nós estamos em uma ilha e é preciso traçar estratégias para que a gente transponha fronteiras, porque nesse mundo de globalização nós temos que dar um pouco daquilo que somos aos outros... A globalização é o somatório das culturas individuais, uma das formas de ser individual, então se nós não damos aquilo que é nosso, o conceito de globalização fica esvaziado. É por aí.

VRP: E como está a sua inserção no mercado internacional? Você consegue publicar fora de Moçambique?

MP: Não, não consigo. Isto é, nem consigo publicar aqui em Moçambique.

VRP: Como é o mercado editorial em Moçambique? É muito complicado pra um autor?

MP: Extremamente complicado, muito complicado. É preciso fazer qualquer coisa, é preciso fazer aquilo que os brasileiros fizeram com o samba e o futebol. Eu penso que o Brasil é aquilo que é hoje à custa de... Primeiro, exportou aquilo que achava que fazia melhor, o carnaval, etc. E através da busca dessas coisas os estrangeiros foram descobrindo outros valores. Eu penso que para afirmarmos o nosso país, nós precisamos afirmarmo-nos através da cultura. Como dizia Samora Machel “a cultura é um solo que nunca deixa”; a cultura no meu país devia ser tomada como uma bandeira através da qual a gente pudesse abrir as portas pelo mundo. Eu conheço o Brasil através da Maria Betânia, Chico Buarque de Holanda, Djavan, Aguinaldo Timóteo, sei lá e outros tantos que andam por aí que eu gosto muito. E depois fui conhecendo os políticos, antes de conhecer o Lula eu já conhecia o Roberto Carlos, por exemplo, antes de conhecer a Dilma eu conhecia o Pelé. Então é por aí, e eu penso que o que falta no meu país é. Exatamente... Desculpa lá, esse discurso um tanto anárquico. “Anarquista graças a Deus”. Quem escreveu este livro foi a esposa do Jorge Amado, escreveu um livro assim não é?

VRP: A Zélia Gattai, sim.

MP: A Zélia Gattai, Anarquistas graças a Deus, eu recordo deste livro. Então temos esse grande problema de publicar: só publicam aqui as pessoas que têm um nome, que tem um tio ou um padrinho que é dono de alguma empresa, qualquer ministro que consegue tirar algumas coisas para publicar. Fora disso é um bocado complicado. Agora estou a imaginar o problema que têm os escritores jovens, escritores que querem se afirmar e não têm nome. O empresariado não aposta em coisas desconhecidas. E a literatura moçambicana ressente-se disso, que faz com que sobrevivam sempre os mesmos nomes,  Mia Couto, Ungulani, Paulina Chiziane, mas tem nomes aqui. Do meu ponto de vista - é uma opinião muito pessoal -,eu acho que a nível dos PALOP,  Moçambique, neste momento, está a produzir uma das melhores literaturas. O que pode acontecer é que nós não temos capacidade para tornar visível essa qualidade, mas eu tenho tenho lido um pouco do que se escreve em Angola, Cabo Verde etc etc, e eu acho que estamos a escrever muito bem. Em termos poéticos, então, eu acho que temos coisas muito interessantes.

VRP: Você tocou num ponto importante, a poesia. Você acha que Moçambique está mais vocacionada à poesia, há uma tradição literária mais forte na poesia do que na prosa?

MP: Sim, eu penso que sim. Eu penso que o desejo de um moçambicano, quando quer ser escritor, é ser poeta. Primeiro, porque os grandes nomes da literatura em língua portuguesa são  poetas, Camões, Craveirinha, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira... São poetas... E mais tarde veio o romance, o romance eu acho que começou a ganhar seu espaço somente agora... Agora não, eu sou exagerado porque já com o romance latino-americano, o romance começou a ganhar o seu espaço. Mesmo assim, a poesia foi sempre um espaço  muito privilegiado aqui em Moçambique. Também durante a guerra colonial nós escritores moçambicanos sentimos a necessidade de passar algumas mensagens de uma forma muito fugidia, muito metafórica, para que o sistema colonial não se apercebesse da mensagem que nós tínhamos que dar. Nós, nessa altura, durante o tempo colonial e um pouco depois, sempre utilizamos a metáfora para passarmos as nossas mensagens, isto é, sempre utilizamos a poesia. Então a poesia, ao longo dos últimos 25 a 30 anos,  foi sempre a mátria da nossa literatura.

VRP: Você acha que o escritor tem alguma função? Um papel a cumprir?

MP: Eu acho que sim, eu acho que o escritor tem um papel a cumprir, desde que tenha a coragem pra dizer aquilo que ele pensa que deva ser dito, isso é o fundamental. Desde que tenha coragem, desde que tenha uma mensagem a transmitir, desde que não entre no discurso banal, igual, dos políticos, porque o escritor no meu país é posto num lugar muito privilegiado na sociedade, as suas ideias são escutadas com respeito e suas propostas são seguidas com respeito também. Então eu acho que nós, escritores, temos uma grande responsabilidade, assim como em outras áreas profissionais. O pensador, o escritor, aquele que sonha, aquele que ajuda a sonhar, a criar um mundo novo, uma sociedade nova, palavras novas, têm muita responsabilidade.  Precisamos ser apartidários, embora seja isso  discutível.  Precisamos não nos deixar levar pela política, mas fazer com que a política venha atrás de nós, venha atrás dos nossos anseios, porque afinal somos seres do povo, o anseio do escritor é o anseio do povo, a pureza do escritor é a pureza do povo, em ultima instância, é a pureza desse país.

VRP: Como você considera que se relacionam os temas culturais do país na sua literatura? Você traz à tona aspectos da cultura, do local, de alguma tradição... Na sua literatura isso aparece com bastante força?

MP: Eu não sei... Você talvez possa dizer, mas eu não sei... O que sei é que eu tenho um grande dilema: primeiro porque eu escrevo muito mal, escrevo com muita dificuldade, a minha escrita é a reescrita, então, quando escrevo, primeiro tento escrever bem, sou um cultor da palavra. Acho que é um grande preconceito que os escritores africanos ex-colonizados têm quando escrevem: tentarem ser muito perfeitos na escrita, serem iguais ou superiores ao colonizador; o que faz muitas vezes que nessa tentativa de sermos, como o outro, muitas vezes deixamos de ser nós mesmos. A realidade do colonizador e a realidade moçambicana são diferentes; as formas como se expressam as duas culturas, a do colonizador e a do colonizado, são completamente diferentes; a cultura do colonizado, neste caso, Moçambique, é uma cultura que se faz, é muito espontânea, é muito oral, é muito simples. E essa simplicidade, no meu ponto de vista, deve se refletir na escrita, e muitas vezes não reflete. Às vezes eu leio poemas dos meus  contemporâneos, dos meus confrades, e não os compreendo. Penso que em alguns casos há uma utilização excessiva da metáfora, eu acho que a metáfora é interessante porque ela dá beleza à escrita, mas muitas vezes ela afasta o leitor da mensagem principal. Muitas vezes, "escanteia" a a própria beleza, o próprio texto. Porque a escrita é uma forma de comunicação, e quando não se  consegue comunicar, todo esse desejo se perde, e quando se perde a capacidade de comunicação, perde-se o objetivo da literatura.

VRP: Você falou há pouco sobre alguns autores que são conhecidos mais do que outros, e que isso pode se dever, entre outros fatores, a contatos. A que mais você atribui alguns autores conseguirem projeção internacional e outros não?

MP: Ao discurso individual, à capacidade de furar, como a gente diz aqui, de fazer lobbies, e também, é bom que se diga essa verdade, ao próprio talento. Porque não há sistema nenhum, não há dificuldades absolutamente nenhuma, capazes de ofuscar um grande talento. É o o caso do Mia Couto, o caso do Ungulani, o caso da Paulina, do Eduardo White, e mesmo do Suleiman Cassamo, são valores que as dificuldades do país não conseguem ofuscar; há uma mensagem tão forte que o exterior sente a necessidade de conhecer e divulgar essa beleza literária, então eles furam. Mas não outros, como eu, que precisam  lutar muito, precisam batalhar, precisam fazer das tripas coração. É preciso que cheguem pessoas como a Vanessa, que conversem conosco e que transmitam esse nosso pensamento e esse nosso sentimento lá fora. E é necessário que nós fiquemos conhecidos lá fora. Mesmo no Brasil. Quando fui participar do segundo perfil da literatura afro-brasileira no Brasil, eu senti o total desconhecimento dos escritores brasileiros em relação ao que se fazia em Moçambique. Fiquei profundamente desolado, e eu que conheço até os nomes dos atores todos de novelas que aparecem aqui, e eles não conhecem o Marcelo Panguana, não conheciam Eduardo White. Eu viajei com o Eduardo White e com o Orlando Mendes. Então esse total desconhecimento é muito constrangedor, porque nós gostaríamos de ter o Brasil como o nosso cavalo de batalha. Acho que através do Brasil nós podemos furar para outros horizontes geográficos, através do Brasil e através de Portugal, mas sinto que esses nossos dois irmãos não nos conhecem. E há poucos esforços que estão a ser feitos para sermos conhecidos, tirando o grande esforço que se faz, que está sendo feito através das universidades. Os escritores que estão saindo daqui são os  convidados pelas universidades, vão falar lá, vão fazer um lançamento. Não é o sistema, digamos sócio-cultural brasileiro, que os convida. São enforços individuais de um reitor que esteve cá, gostou da Rinkel, uma poetiza nossa que é secretária-geral adjunta da Associação dos Escritores. Gostou da Rinkel, gostou da Márcia dos Santos, gostou da Hirondina. Hirondina [Joshua]  que não é conhecida nem em Angola, mas é um valor que não é conhecido, nem em Angola, nem em Portugal, no Brasil, ninguém fala. Eu fico muito triste por causa dessas coisas, como é que nós todos os dias somos obrigados a acompanhar e a absorver tudo que se mostra a nível literário no Brasil e em Portugal, mas os nossos amigos da CPLP não.... Isso levanta outra questão: até que ponto podemos dar mérito a essas instituições que nossos governos criaram, como a CPLP, como os PALOP, qual é a função deles a nível da cultura, o que deveriam fazer e aquilo que não fizeram, entende? Então se não fizeram nada, é bom fazer uma revolução em nível de estratégias culturais que a CPLP e os PALOP definiram a princípio no Rio de Janeiro...

VRP: Você acha que a imprensa já foi uma aliada na divulgação da literatura? E como é hoje?

MP: Olha, no tempo colonial havia uma grande tradição das páginas literárias, porque também havia aqui em Moçambique uma grande... primeiro que havia uma elite intelectual muito forte. Em Lisboa, Rui Knopfli, Ascêncio de Freitas..., não recordo agora os nomes, eram muitos, que nós tínhamos aqui, e depois havia muita sessão de leitura, e havia muita tradição de discussão, de polêmica entre os escritores. E os jornais da época, as revistas da época, tinham uma política cultural bem definida. Assim sendo eles faziam questão de convidar alguns escritores proeminentes da época, para regerem esses suplementos: eram suplementos muito exigentes, onde só era publicado aquilo que tinha qualidade e havia muita discussão sobre a coisa literária, vários debates sobre como o escritor devia escrever ou devia saber estar, e então houve isso, ao longo dos tempos. Uma parte dos escritores, muito mais tarde, depois da independência, cresceu, bebeu um pouco dessa cultura que foi  transmitida nestes suplementos culturais. Com a fuga ou com o fim do colonialismo, com a criação de uma outra inteligência, a criação de um novo formato em termos de informação, as páginas literárias e os suplementos culturais deixaram um pouco de ser uma prioridade nas políticas editoriais, que começaram a priorizar outras coisas, outras agendas políticas, outras agendas econômicas que não tinham nada a ver com isso. Então investir num bom coordenador do mercado literário deixou de ser interessante; apanhou-se uma pessoa qualquer ao lado: “tu ficas a dirigir um espaço cultural”. Podia até ser um bom coordenador, mas podia não ser, então aí começou a haver a decadência em termos de qualidade dos espaços culturais. Em alguns casos, até alguns jornais começaram a não publicar os suplementos culturais. Primeiro passou de duas vezes por semana a uma vez por semana, depois começou a vir uma vez de quinze em quinze dias até que deixaram de existir. Isso é muito mal, porque num país onde há muita dificuldade de edição de livros, os suplementos culturais podiam ocupar, do meu ponto de vista, um espaço extremamente importante para as pessoas terem onde começar a escrever, tinham um espaço para publicar, e hoje não têm. E digamos que nos sentimos um pouco órfãos com a ausência dos suplementos culturais.

VRP: Quais são os autores que o influenciaram na sua produção literária?

MP: Todos, eu fui influenciado por tudo aquilo que li. Primeiramente, eu comecei a me influenciar por grandes livros, grandes escritores religiosos. Eu faço parte de uma família religiosa, onde na minha casa as estantes eram ocupadas pela Bíblia e pelos escritos de São Paulo e São Pedro, e, mais tarde, por uma revista de Paris e  Cruzeiro do Sul do Brasil, onde vinha o amigo-da-onça, recorda-se dele? Eu lia coisas, via as revistas que me influenciaram, mais tarde fui influenciado pelo Luís Bernardo Honwana, que foi o primeiro escritor negro a afirmar-se em Moçambique com aquele célebre livro dele que  tu conheces. Nós Matamos o Cão Tinhoso influenciou toda uma geração de escritores pós- independência. Depois, com a criação da Associação dos Escritores Moçambicanos, houve um grupo que conquistou, digamos que se apropriou da Associação dos Escritores Moçambicanos através da [Revista] Charrua. Então, nós nos encontrávamos lá na Associação dos Escritores e falávamos sobre a coisa literária, trocávamos livros, e através dessa troca nós fomos conhecendo, por exemplo, os escritores brasileiros, que nós não conhecíamos; fomos conhecendo o Vargas Llosa, o Hemingway, o Gabriel Garcia Marquez, enfim esses escritores que influenciaram o romance universal. Fomos conhecendo eles e de certa forma, todos eles nos influenciaram naquilo que tem  um pouco a ver comigo, porque eu acho que as influências de um escritor tem um pouco a ver com aquilo que teve aquele afeto em termos da forma como porta determinados assuntos, como podem influenciar um certo público. Eu andei à procura de um tipo de literatura que tivesse a ver um pouco comigo e com o meu país, e descobri isso na literatura da América Latina. Foi quando então eu deixei de escrever poesia, porque eu escrevia poesia, mas nunca publiquei, escrevi três livros de poesia que estão arrumados lá em casa.

VRP: Não pretende publicá-los?

MP: Quando eu completar 90 anos.

VRP: Está muito longe.

MP: Faltam 30 anos. Eu acho isso é imprevisível... Mas isso quer dizer que tudo que aquilo foi bom e me influenciou. Por exemplo influenciou-me também o José Craveirinha, influenciou-me muito o Baptista Bastos, e alguns livros do Saramago, porque nem todos os livros do Saramago são bons no meu ponto de vista. Acho que alguns escritores afirmam-se em três obras e depois o resto é pra cumprir os contratos com as editoras, todos os grandes escritores têm isso: ciclo alto e baixo, e eu acho que o Saramago também teve esse percurso muito estreito. Há coisas muito bonitas, O ano da morte de Ricardo Reis é um livro fantástico; Memorial do Convento, é um dos melhores romances publicados nos últimos anos. E conheço muito pouco da literatura brasileira porque tem havido pouco barulho entre os livros brasileiros e os moçambicanos, tem havido muita pouco relacionamento entre os escritores brasileiros e os moçambicanos, há um silêncio profundo, que faz com que de certa maneira haja um desconhecimento, um afastamento muito grande, não só entre as literaturas, mas também entre as pessoas que fazem estas literaturas.

VRP: Você falou do Luís Bernardo Honwana como o primeiro prosador negro moçambicano, é um fato; você acha que essa questão racial ainda está em voga na literatura moçambicana?

MP: Eu acho que não, e acho que temos três escritores brancos bons que nós consideramos os nossos ícones. Estás a falar da raça? Em ser condição fundamental para se afirmar? Eu acho que não, em Moçambique acho que não.

VRP: E quais são os escritores?

MP: Eu estou a falar primeiro do Mia [Couto], do Borges [Coelho], estou a falar do Carlos dos Santos, estou a falar da... sei lá... Há vários. Mulatos são brancos, não são?

VRP: Mestiços.

MP: Então, eu acho que o que se coloca é a qualidade. Nós temos sido muito violentos entre nós, quando a qualidade da escrita tem sido muito dúbia, e isso muitas vezes, em  se tratando de um escritor que é branco, pode levar a algumas pessoas a pensarem que o fulano de x está sendo vítima de alguma perseguição, quando não é. Aquilo que escreveu é que está sendo vítima de perseguição, não ele. Porque eu acho que nós em Moçambique crescemos o suficiente para sabermos diferenciar aquilo que nos interessa, e nesse momento o que nos interessa é uma escrita de qualidade, não quem o faz, não a raça de quem faz essa escrita.

VRP: Quem são os seus leitores moçambicanos? Você tem acesso a este feedback?

MP: Eu acho que é um leque bastante vasto, desde alunos, cidadãos de classe média, alguns acadêmicos, têm sido pessoas que me abordam na rua e dizem que estão a gostar daquilo que estou a escrever. Não é um leque tão grande como eu gostaria que fosse, porque, como sabe, a aquisição do livro em Moçambique tem sido outra dor de cabeça, o livro não sendo muito caro como muitas vezes se diz, chega a  ser, porque o comprador com custo de vida prefere muitas vezes utilizar este dinheiro para comprar comida, para comprar um quilo de arroz, de batata, um saco de tomate. O livro é a última opção, quando depois das compras do mês sobra algum metical, pode-se comprar um livro. Fora disso é muito complicado. O mesmo livro em Moçambique é lido por 10 pessoas, 15 pessoas, passa de mão em mão, exatamente porque é muito difícil para um Moçambicano levar 2000 Meticais, 1500 Meticais, comprar uma obra, uma antologia poética por exemplos. O que faz com que ao fim e ao cabo todos nós tenhamos o mesmo leque de leitores:  o grupo de leitores que vão aos lançamentos, às cerimônias de aparição pública dos livros é o mesmo público, depois são os professores da universidade, são alguns estudiosos que vêm do Brasil ou Portugal chegam cá e compram alguma coisa, e algumas instituições como o Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa, que fazem esforços em distribuir o livro pelas escolas do país e pelas bibliotecas municipais, mas ainda continuamos a ter grandes problemas na aquisição. Quer dizer, o poder de compra do livro continua a ser um dos grandes fantasmas que o escritor moçambicano tem.

VRP: E gostaria que você falasse um pouco da forma que você retrata Moçambique nas suas obras, você acha que consegue mostrar um pouco da sua identidade moçambicana na obra de que forma?

MP: De todas as formas possíveis. Eu sou uma pessoa que vive na periferia da cidade, eu tenho carro mas viajo de machimbombo, ônibus, escuto muitas conversas, passo por todo tipo de situações que se passam quando se viaja num transporte público. Eu gosto de beber cerveja, aliás, gosto de beber cerveja não, eu gosto de beber cerveja, whisky, vinho, e eu bebo isso no bairro, no sítio onde há muita folia, há muita música, há muito grito, muitas mulheres bonitas, muito barulho, as pessoas falam alto e eu gosto de estar nesses lugares, e eu falo sobre esses lugares, esses lugares são Moçambique, eu falo sobre isso. Entretanto  eu também falo muito do outro lado, o lado do poder, eu, pela inerência das funções que eu tenho,  - eu sou Presidente da Associação dos Escritores Moçambicanos, sou o Secretário-Geral de uma associação de cultura, sou o Secretário-Geral de uma instituição ligada à saúde, enfim, sou um pouco crítico literário também. Então eu, por causa dessas coisas, tenho tido o privilégio de estar com o outro lado das pessoas, políticos etc etc. Converso com eles e aproprio-me  das verdades que eles contam, e essas verdades também são retratadas nos meus livros. Posso dizer que tenho um pouco o privilégio de conhecer um pouco do meu país através de seus personagens políticos, de seus personagens marginais, e do mundo suburbano, eu falo sobre isso. Por outro lado, também eu tenho trabalhado durante muitos anos no Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, como diretor da PROLER. A PROLER é uma revista de cultura, a única que existe em Moçambique, produzida pelo Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, com o patrocínio da Gulbenkian em Portugal. É uma revista trimestral, sou o diretor dessa revista há cinco anos, e essa revista permitiu-me viajar pelos distritos do país, falar muito com os alunos desses lugares longínquos onde ninguém vai, lá onde o sol castiga mais. Eu fui lá nessas escolas onde os alunos andam quase meio dia para chegar na escola, alunos de 5, 6, 7 a 8 anos andam 6h de tempo à pé para ir para uma escola estudar, mais 6h horas para voltar pra casa. Esses são os grandes heróis que esse país tem. Uma criança com 10 anos, 12 anos correr 12km a pé, para estudar, voltar à noite, atravessar lugares onde há cobras. E então tenho que conhecer um pouco esse país, e falo destas coisas também. A escrita não é só para falar do próprio país, também escrevo um pouco sobre a relação que tem, por exemplo, a minha cultura e a cultura dos outros. Há um texto que escrevi, "Os afetos da língua" que tem neste livro, Conversas de fim do mundo, que é exatamente um grande fato que existiu em determinado momento aqui em Moçambique em que se tentava, digamos, em nome de uma pureza política, fazer com que houvesse o afastamento entre o ex-colonizador e  o ex-colonizado, e eu penso que isso é extremamente complicado. Não se faz isso através de um decreto político, isso é um processo: o mesmo processo que o colonialismo teve pra se inserir neste país, tem que ser feito de uma forma diferente. Nós não temos que nos afastar do colonizador, temos que nos aproximar culturalmente do colonizador, porque eu penso que durante 500 anos criou-se "Os afetos da língua" um afeto bastante particular, e segmentou-se essa língua de afeto que é o português. Nós, os moçambicanos, aprendemos a pensar, a idealizar os nossos projetos em português, escrever em português, formamos nas academias em português, fomos induzidos a conhecer a cultura universal através da língua portuguesa, os escritos, os livros que trouxeram a civilização para Moçambique, foi a língua portuguesa. Então não é um decreto político que acaba com isso tudo, isso nunca vai acabar. Além disso nós temos uma relação muito grande com Portugal, assim como temos com o Brasil. Quando joga o Brasil, Moçambique pára, como se todos fôssemos Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Neymar, sentimos como se Neymar fosse jogador de Moçambique. É o afeto da língua: quando joga Portugal Moçambique para, por quê? Justamente por causa da língua, isso não se mata, isso no meu ponto de vista deve ser potencializado para criarmos um espaço afetivo, linguístico, cada vez muito mais forte. Então é exatamente isso que eu falo em alguns dos meus títulos também, eu falo sobre Moçambique como um espaço de substrato cultural, uma coisa muito mais vasta que é a forma como Moçambique se complementa e pode se situar.



[i] Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

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