“Deixar a luz da esperança acesa”: entrevista com Abdulai Sila[1]

Wellington Marçal de Carvalho[i]

Maria Nazareth Soares Fonseca[ii]

Abdulai Sila nasceu em Catió, sul da Guiné-Bissau, em 1º de abril de 1958. Após a proclamação da independência de seu país, em 24 de setembro de 1973, participou das Brigadas de Alfabetização, sob a orientação do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Formou-se em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade de Dresden (Alemanha), onde viveu por seis anos, e dedicou-se aos estudos das tecnologias de informação e comunicação, tornando-se empresário nessa área. Participou da fundação da revista Tcholona e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Inep) na Guiné-Bissau. Foi membro fundador da Associação dos Escritores da Guiné-Bissau (Aegui), instituição da qual foi presidente no período de 2013 a 2017. Recentemente foi eleito presidente do PEN Guiné-Bissau. É um dos fundadores da primeira editora privada guineense: a Ku Si Mon Editora. Seu interesse pela escrita surgiu, ainda enquanto era estudante, quando publicou seu primeiro texto em um editorial do Jornal Mural, em 1976. Já publicou vários textos nas áreas de engenharia, tecnologia e telecomunicações, tanto na imprensa guineense como na de outros países. Os romances do autor já editados são: A última tragédia (1984/1995), Eterna paixão (1994) e Mistida (1997). Em 2016, publicou novo romance, intitulado Memórias soMânticas. Além dessas obras, o autor publicou, ainda, as peças teatrais: As orações de Mansata (2007), Dois tiros e uma gargalhada (2013), Kangalutas (2018), Deih (2022) e Trilogia de padjigada (Um dia memorável; A quinta coluna; Abota) (2023). Em 2014, publicou o conto “O reencontro”, na coletânea intitulada Ema vem todos os anos, lançada por ocasião dos 20 anos de existência da Ku Si Mon Editora. Mantém o blog “Mistida” com reflexões de apurado senso crítico.

WM/MN: Tenho desenvolvido, nos últimos anos, uma pesquisa de doutorado na PUC Minas, sob a orientação da professora Nazareth, em que estudo uma parte da literatura de sua autoria e da Odete Semedo. Para mim é uma honra, desde já, conversarmos pessoalmente e, numa próxima oportunidade, irei à Guiné-Bissau. Embora naquela primeira entrevista sobre Mistida você tenha dito que o mote desse romance é o roubo da memória, penso que também este furto estaria presente nos outros romances que compõem a trilogia. Isso foi proposital?

Abdulai Sila: Eu acho que sim porque uma das batalhas que nós temos que vencer, como cidadãos, é fazer com que recuperemos aquilo que nos foi tirado: a educação, a cultura, que são duas vertentes importantes da nossa identidade. Eu penso que temos que trabalhar para atingirmos esse objetivo urgentemente, porque o cidadão, para assumir plenamente os seus deveres e exercer os seus direitos, tem que ter uma educação adequada. Tem que haver consolidação da identidade nacional e tudo isso passa por aquilo que a gente tem na cabeça. A memória coletiva é fundamental, ou seja, nós temos que ter, não só aquela memória pessoal, mas aquela memória coletiva que todos partilhamos e que é um dos pilares da identidade nacional. Então, estas batalhas para limpar os vestígios da colonização são sutis e, muitas vezes, nos levam a atitudes que não se pode dominar. Como cidadãos de um país soberano temos que por muita atenção na questão da construção da memória coletiva.

WM/MN: Construção ou reconstrução?

Abdulai Sila: Construção e reconstrução. Nós temos que ter uma memória coletiva que ajude a fortificar a identidade. A identidade da nação, a identidade africana. Porque há muita interferência de fora, há o vestígio da colonização. Então é construir algo novo a partir de uma coisa que já existia. É um processo algo complexo, onde entra muita coisa, material e imaterial. A colonização nos afeta de tal modo que nos leva a fazer coisas que acabam por nos ferir a nós mesmos. Trata-se de um trabalho sutil, por um lado e, por outro lado, um trabalho também que não pode ser adiado. É uma questão de atualidade, de acuidade também. Na vida temos que fazer sempre opções e muitas opções que a gente faz acabam por depender daquilo que a gente tem como valor. A questão dos valores sociais, valores morais, valores culturais é  fundamental se quisermos construir uma sociedade harmoniosa, equilibrada, solidária, em que tenhamos algo que partilhar, que nos una e identifique. É a questão da identidade de novo, da memória coletiva.

WM/MN: Especificamente no romance A última tragédia me parece muito interessante a estratégia que permite conhecer o espaço da tabanca, a partir das vezes em que a personagem Ndani, por ter sido objeto de uma maldição, na visão do Djambakus, rompe com o lugar que seria o dela naquele espaço e vai procurar emprego num outro território. Mas, na medida em que ela vai sempre negando esse mundo, do qual ela partiu, é que o leitor pode conhecer e perceber esse espaço que é o da tradição. Isso foi feito de propósito?

Abdulai Sila: Eu acho que sim. A literatura sendo ficção, uma coisa que não aconteceu, também de certa forma é um reflexo da realidade, uma coisa que não tendo acontecido podia ter acontecido: ou seja, quando o leitor é posto diante de determinado cenário – e  aí vem a importância da leitura – adquire uma visão do mundo que não existiu, mas poderia ter existido e aumenta o leque do conhecimento, da experiência, ou digamos, da flexibilidade mental. Através da leitura é-se exposto a várias vivências, quer diretas, quer indiretas, e o cidadão acaba por ter uma mente mais flexível. Começa a ser mais tolerante, começa a ver as coisas de forma mais colorida. O cidadão tem que ter a capacidade de análise para fazer as suas opções, tomar suas próprias decisões. Ora, essa capacidade de análise, eu digo que é um leque de conhecimentos, de experiências: coisas que aconteceram, coisas que podiam ter acontecido, que deram certo, que não deram certo, não é?! E assim ele se coloca numa posição mais privilegiada para absorver os acontecimentos do dia-a-dia, os acontecimentos sociais, políticos, etc., e também uma maior oportunidade para amenizar os choques e se posicionar em função disso. Uma coisa é uma pessoa que não tem experiência, que não sabe da vida. Outra coisa é uma pessoa que sabe da vida quer por experiência própria, quer por experiência de outro. Na sociedade em que eu cresci se dá muito valor ao conhecimento, à sabedoria. Acredita-se que há basicamente duas formas de se adquirir sabedoria: ou estudando ou, então, viajando. No fundo ele adquire o conhecimento por conta própria ou, por conta de outrem. Quando se estuda, se assimila o conhecimento de outra pessoa. Agora, quando se viaja, essa escola é o mundo. Aprende-se muitas vezes com os próprios erros, vendo outras situações. Quando o meu país era uma colônia - eu sou mais velho que o meu país - quando meu país nasceu eu estava com dezesseis anos. Num contexto que não é fácil, muita coisa mistura, muita interferência, vamos dizer assim, da educação colonial, da ideologia colonial. Isso interferiu em nossa personalidade e temos que fazer um esforço enorme para distinguir o bem do mal. Então, quando a pessoa se levanta, cresce num ambiente em que reina essa situação, como foi o caso da Ndani, ela tem problemas próprios, enfrenta determinados preconceitos no seio da família dela. Quando se alarga esse ambiente do meio social, enfrenta outros tipos de problemas. Fica-se muitas vezes perdido. Se não houver uma referência, algo que a gente possa usar como sendo marco, se está sujeito a movimentação por todo lado. Tem que ter uma barra do certo e do errado, para dizer qual é a minha posição. Então, a Ndani sai desse meio, onde havia esse preconceito de que ela tinha algo que machucava. Ela tinha algum mal, era portadora de alguma maldição. Ela procura uma solução. Isto é uma artimanha que o autor arranja para regular o destino. Para se chegar ao destino, a pessoa começa por falar de seu meio que, todavia, tal como descrito, não existiu. Então essa trajetória - procurar o mundo do outro - é para mostrar o conteúdo do que de fato existiu, como o colono via a colonização, que era uma situação que eu também vivi. Eu vivi isso, embora já houvesse o movimento de libertação e o colono já estava a retirar-se, ele estava, pois, na defensiva. Mas, antes disso a situação era bem pior, era uma coisa que ninguém pode imaginar. Muita coisa que aconteceu é real, não tal como foi escrito... as personagens, a protagonista, mas são situações que de fato aconteceram. Então eu senti a necessidade de revelar e deixar alguma coisa para aqueles que vierem depois de nós, porque o que nós estamos a viver hoje, é preciso dizer isto, não é aquilo com que sonhamos (...) o nosso sonho não está a concretizar-se. Nós sonhamos com um país que ainda não temos e quando nasce essa sensação de falhanço há que procurar, obrigatoriamente, uma explicação. Eu sinto que eu não estou tendo o sucesso que julgava ser evidente e natural que eu tinha que ter como cidadão. Quando vejo que não está acontecendo o sucesso a que tinha direito, vejo-me naturalmente na obrigação de procurar uma alternativa. Ora, é a minha geração que teve um sonho. Há uma outra geração que não teve um sonho. Essa geração corre o risco de se deixar contaminar por um desânimo muito maior, por um complexo de inferioridade, e isso não pode acontecer. Hoje nós estamos a lutar, não contra o colono, o estrangeiro, o europeu. Hoje, o nosso inimigo é o nosso irmão, que muitas vezes é aquele que esteve conosco lado a lado na escola. De um momento para o outro coloca-se no outro lado… É um antigo companheiro que de repente está do outro lado da barricada e nós nos vemos na situação de termos que enfrentá-lo e isso não é fácil. Não é fácil, mas é uma batalha que tem que ser vencida. Nós temos a obrigação de promover a harmonia e o sentimento de igualdade. De igualdade em relação ao outro também. O outro sendo quem vive em outro país, quem vive no outro continente, quem quer que seja. Então, essa sensação que a minha geração tinha obriga-nos a procurar explicações e mostrar que o caminho não foi linear e que a nossa história - que é onde nós temos que buscar forças para enfrentar as batalhas futuras - tem muita, mas muita coisa positiva. Nós somos um povo vencedor. Aí é que entra este confronto com o colono. Não estamos numa posição de força, é certo, e a trajetória do nosso povo é de muita dificuldade para (…) enfrentar e vencer. É também, digamos, uma das mensagens que se pretendeu passar, fazendo uma referência a essa convivência e a esse confronto com o outro, em que se tem de partir de uma posição desfavorável. Mas, ainda assim, se mantêm o sonho vivo. O sonho de liberdade tem que ser mantido vivo e, não é por estarmos hoje em uma situação desvantajosa que temos que nos vergar, não. A nossa história é uma história de dificuldade e é preciso que as pessoas se lembrem disso. É uma história de dificuldade e é também uma história de garra.

WM/MN: Eu voltei ao Memórias somânticas e peguei um trecho, quase no final, que diz: “Sei o que é acordar todos os dias de manhã e não ter ninguém ao meu lado com quem partilhar a visão e os novos desafios da construção da nação, uma nação onde depois de tantos anos de dor e esperança deve finalmente reinar a harmonia e a fraternidade.” Ela encontra com um senhor amigo dela, o tio Tunkan e conta, apesar de todos os tropeços que ela teve que superar, que ainda acredita não ser louca e, também, que tenha de continuar a lutar para não deixar morrer seu sonho de um país melhor. Qual é a sua leitura para este projeto de nação guineense?

Abdulai Sila: É, está escrito no livro. Guiné é uma nação de paz e progresso, eu acho que o melhor lugar do mundo é esse: não é só a nossa história, mas também o nosso futuro. Eu não vejo, por várias razões que depois posso explicar, o futuro do meu país como sendo um futuro só da Guiné-Bissau. Eu tive a oportunidade de conviver com muita gente que sabe distinguir, conhecendo a nossa história, como se diz (…) o alho de bugalho. Nós passamos por uma situação específica em que a nossa história, a nossa trajetória foi perturbada pela ação do colonialismo, pela situação da escravatura, tudo isso são acidentes da história e não me impede de perder de vista aquilo que é o essencial: e o essencial é que essas alterações resultantes dessa ação perturbadora externa têm que ser enfrentadas, ultrapassadas. Eu vejo uma nação africana que vá para além destas fronteiras que os europeus estabeleceram em Berlim. O meu pai (...) nasceu aproximadamente a 30 km de uma linha traçada no mapa como fronteira de duas colônias (…) mas não há fronteira nenhuma e, até hoje, não há linha fronteiriça na mente das pessoas que habitam aquele território. Estando a atravessar essa suposta linha ninguém pergunta! Se for viajar para outro país tem que ter passaporte (…), mas, se for ali, ao longo dessa suposta fronteira, naquela região que é o mesmo povo, não tem ninguém que o incomode. É a mesma língua, os mesmos costumes... Se por exemplo você disser a alguém “vou para um outro país”, vai ser ridículo… quem está do outro lado é seu parente, é seu irmão. No caso concreto do meu pai, quando faleceu o pai dele, ele saiu. Ele interrompeu tudo e foi dar uma volta por este mundo, porque aí está a experiência de vida. Como o conhecimento tem valor, uma forma de ter conhecimento é ir viajando. Você sai, chega a um local, vê coisas diferentes, aprende que as coisas não são exatamente como você faz na sua terra natal, que há outras formas de fazer as coisas… Então, ele saiu, deu umas voltas e depois quis retornar ao ponto de partida. Acontece que eclodiu a guerra da independência e ele disse que há um assunto a resolver aqui, e eu não vou voltar para minha povoação se sou útil aqui. Porque o conceito é de unidade. Evidente que há interesses, há muitos interesses. Há interesses políticos endógenos (…) mas há a vontade do povo e o povo não quer saber nada das disputas políticas. Eu, por exemplo, a minha mãe é do povo fulani

WM/MN: São nômades.

Abdulai Sila: Dizem que são nômades, mas não são assim tão nômades. São na realidade originários de regiões do norte de África, quando aquilo foi invadido pelos árabes, eles foram derrotados. Eles foram descendo e (...), foram parar na costa ocidental africana, de Mauritânia até Camarões e toda a África Ocidental. Então a minha mãe, pretendendo preservar a sua identidade, só falou comigo na língua fulani, que é uma das minhas línguas maternas. Ela podia falar com outras pessoas outra língua - ela falava muitas línguas - , mas comigo só falava essa língua. E por isso eu domino essa língua. Então estou à vontade. Eu não posso pensar, não cabe na minha cabeça, que eu indo para o Mali, por exemplo, estou em outro país. Essa sensação, que está na cabeça, fica, mantêm-se. Agora, o nosso desafio é (…) fazer com que essa tendência se generalize, se fortaleça. Então, voltando à sua pergunta sobre um projeto de nação, aquilo que eu vejo para o meu país é, digamos, voltar a reencontrar-se, é reconstruir a sua própria história num quadro que é aquele que é o mais natural: reintegração africana.

WM/MN: Ao final de cada um dos quatro romances, duas sensações são vivenciadas pelo leitor: a do completo desalento com a conjuntura guineense e, ao mesmo tempo, uma convocação da esperança. Como entender, a partir dos romances, essas duas posturas?

Abdulai Sila: Cultivar a esperança, (...) defender a esperança é missão de todo cidadão que ama o seu país e que acha que tem alguma coisa para fazer neste mundo. A vida não é, não tem, uma trajetória linear. A gente não vai dizer “eu vou aí, do ponto A ao ponto B, seguindo uma direção certa”, “eu vou entrar e sair na faculdade numa determinada idade”, “vou fazer isto, vou fazer aquilo” e ver tudo acontecer como programado... Não, não existe só isso. Na trajetória do indivíduo e das sociedades há sempre altos e baixos. O fundamental é quando tiver uma contrariedade, estiver frente a uma situação que não seja a desejada, ter a lucidez, a capacidade de fazer ver o outro lado da moeda. Os que passam a vida olhando para o umbigo, estes têm o seu lugar na história. Mas, aqueles cujo nome se projeta na história são os que marcam a diferença e adquirem a verdadeira dimensão da vida, ou seja, percebem que há momentos bons e momentos maus e conseguem manter o equilíbrio em ambos os momentos. É que nos momentos bons somos todos bons. Nos momentos menos bons é que as pessoas mostram seu verdadeiro caráter, o seu valor. Aí, uma das coisas fundamentais é fazer lembrar às pessoas daquilo que é óbvio, apesar de estarmos num momento ruim. No momento seguinte, se agirmos devidamente, podemos mudar as coisas. É ser sujeito da própria história. E para nós, africanos, isso é fundamental. Estamos sendo subjugados com uma política imperialista, eurocentrista, culturalmente muito agressiva, que faz tudo para nos dividir e manter a colonização na mente. Nós temos que fazer face a isso e como devemos fazê-lo? (…) Tem que ser ambicioso, manter a ambição é manter a esperança (…), tem que ter fé. Há alguns condimentos que, no meu ponto de vista, são fundamentais. É preservar a dignidade em todas  as circunstâncias, é preciso ter e manter a fé (…) e a esperança tem que existir sempre (…). Não se diz que a esperança é a última que morre?! Quem não acredita não vai a lado nenhum. Então, como cidadão, como escritor, sou também um vendedor de esperança. É uma tarefa complicada, mas tem que ser assumida. Como disse há bocado, isto não tem a ver com utopia! Nós temos que ser capazes de olhar para o outro como seu igual, falar com ele como ser igual. Isto é que é ser um indivíduo completo, e quem não é capaz de fazer isso tem uma deficiência. Quem vive só pelo material não é capaz de apreciar a natureza, as boas coisas, a amizade, praticar a solidariedade, não está completo. Todo ser humano naturalmente não fica indiferente quando vê uma criança chorar, mesmo sendo um desconhecido (…). Um certo sentimento de solidariedade leva você a querer fazer alguma coisa e é isto mesmo a natureza humana.

WM/MN: Para isso a gente precisa da literatura e por isso a gente precisa dos seus livros, por exemplo. Eu vou pedir licença para ler os dois últimos parágrafos do “Epílogo” de Mistida: “Não tenho dúvidas que ainda haja alguém que acredite em mim, muito menos ainda no que escrevo... Por isso, o melhor mesmo é não dizer mais nada, pelo menos por agora. Mas talvez seja possível que o que eu não possa revelar-lhe agora venha a ser detectado no Sol e Suor ou, quem sabe, no Memórias SOMânticas. Depende... Seja como for, para ser honesto, a única coisa de que estou plenamente convicto neste é que quando a Djiba Mané e as suas companheiras resgatarem a esperança, alguém, que certamente não será um mero djidiu de caneta, terá que ouvir a passada da boca de Mama Sabel, aliás, perdão Mbubi e escrever uma outra Mistida, que não será como esta que acabou de ler.” Eu me lembrei de um trecho de um dos textos do Amílcar Cabral, na Arma da teoria, muito em função desse final do Epílogo. Eu gostaria de ler também essa passagem bem específica do Amílcar, para saber qual que é a sua opinião a respeito. O Amílcar dizia assim: “No nosso caso concreto, a luta é o seguinte: os colonialistas portugueses ocuparam a nossa terra, como estrangeiros e, como ocupantes, exerceram uma força sobre a nossa sociedade, sobre o nosso povo. Força que fez com que eles tomassem o nosso destino nas suas mãos, que fez com que parassem a nossa história para ficarmos ligados à história de Portugal, como se fôssemos a carroça do seu comboio.” O que você pensa a esse respeito, ainda mais tendo feito a luta de libertação, a luta pela independência da Guiné-Bissau?

Abdulai Sila: É isso. Eu acho que todos nós humanos temos um futuro comum, independentemente do lugar onde possamos estar. Há conceitos, há mais do que conceitos… Há valores dos quais ninguém prescinde, um deles é liberdade. A liberdade, a sensação de não se sentir subjugado, constrangido, a sensação de ser um/uma sujeito da sua história. Os últimos acontecimentos do mundo têm, de forma assim menos evidente, vindo a revelar isso, ou seja, hoje em dia ninguém pode pensar em dominar nenhum povo. Liberdade é um valor imprescindível, ninguém pode dominar ninguém eternamente, não dá! Nem como indivíduo, nem como um povo, nada! A liberdade é fundamental. Então, quando há a sensação de falta de liberdade, de dominação, seja essa dominação estrangeira ou não, como há pouco comentávamos, há sempre esses valores que vem à tona e que mobilizam as pessoas. Neste contexto, torna-se natural que surjam coisas que podemos aceitar e outras não. O colonialismo foi isso. O colonialismo foi muito violento não só fisicamente… Até hoje, quarenta, cinquenta anos depois da independência, nós ainda temos sequelas do colonialismo. Há certas pessoas que estão no poder que se comportam pior do que os colonos. Nós temos isso ainda, e  isso faz mal à sociedade, faz mal a todo povo guineense e africano porque a nossa luta é comum. Portanto, quando se fala em libertação, de dar às massas, ao cidadão a liberdade de escolha, liberdade de ter, de ver algum progresso na sua vida, isto é o que o Amílcar Cabral disse, eu acho que é importante. Penso que ele foi uma pessoa muito feliz, que viveu a sua época de uma forma interessante. Como ele próprio dizia “pagou seu quinhão”. Não sei se vocês usam a expressão aqui, mas é como alguém que tem uma dívida, pagou a dívida que tinha para com o seu povo. E essa dívida contribuiu para que o povo tenha um futuro melhor, tenha a liberdade, sonhe com o progresso. Em relação às outras personagens do Mistida, nessa parte final, o escritor, eu, não importa quem haverá de contar aquela velha história. Aquilo tem que acontecer. Há de se deixar a luz da esperança acesa.

WM/MN: No exterior seu livro mais conhecido é o Mistida ou os outros? Fora da Guiné-Bissau?

Abdulai Sila: O mais lido é A última tragédia. Eu escrevo, e digo isso sem nenhum problema, eu escrevo para a minha gente. A minha gente. Não faço questão do outro que está lá longe a criticar, geralmente com uma atitude e visão sempre eurocentrista. Eu tive muitos problemas com gente que falava comigo assim, (...) não gosto disso ou daquilo. Eu não me importo com isso. Eu tenho uma mensagem atrás do texto. A literatura é também uma forma de diálogo entre gerações. Porque o que é hoje a minha mensagem pode até não ser recebida ou recepcionada pelos meus concidadãos contemporâneos. Mas pode ser uma mensagem válida para o amanhã. Eu não me preocupo com isto e, depois, eu tomo a liberdade de dizer as coisas como eu as sinto, não me submeto a essa ditadura das editoras e dos críticos literários. “Eu posso publicar isso, mas você tem que mudar isto aqui.” Eu não faço isso. Eu não faço isso. O livro, quando a gente lê um livro, não é só a história que importa, não é o aspecto lúdico, alguma outra coisa existe na narrativa. E isso é fundamental. E o essencial da mensagem que eu tenho não é para alguém que está sentado não sei onde (...) na Europa ou América, para avaliar. Pouco me importa. Mas, faço questão de considerar os juízos dos meus concidadãos, daqueles que se interessam por esse tipo de narrativa da nação.

WM/MN: Quando observamos a galeria de personagens femininas nos seus romances, pode-se notar também a complexidade do lugar ocupado pela mulher na Guiné-Bissau, como por exemplo, Mama Sabel, em Mistida, a Rute de Eterna paixão, ou ainda, a personagem principal de Memórias somânticas, que me lembra muito a trajetória de uma guerrilheira angolana, a Deolinda Rodrigues, a Langidila – que era o nome de guerra dela. Na sua visão, a partir do que as personagens retratam, o que é ser mulher no universo guineense?

Abdulai Sila: A mulher no universo guineense e africano em geral é, digamos, o alicerce. É aquela pessoa que a gente procura quando tem dificuldades e precisa fazer subir a moral. É aquela pessoa que, adotando quase sempre um perfil baixo, acaba por ter uma influência enorme naquilo que acontece no seio da família, no seio da sociedade. É aquela pessoa que é heroína sem o saber e sem se preocupar com isso. As mulheres, tradicionalmente, tiveram um papel, digamos, “secundário”, visto de fora. Na Guiné são raras as vezes em que a mulher chega a exercer o poder político, excepto no arquipélago dos Bijagós. Geralmente elas estão colocadas na hierarquia social a um nível mais baixo; mas, na verdade, elas têm muito mais poder, têm muito mais autoridade, incluindo autoridade moral, do que os homens. Regra geral, então, é isto que é preciso ver, é isto que eu procuro fazer ver nos meus escritos. É que, apesar da história falar dos homens como heróis, verdadeiros heróis, no caso, as heroínas são as mulheres. Elas é que sustentam, elas é que tradicionalmente acabam por decidir sobre as questões mais delicadas da comunidade, da sociedade. Mas é sempre numa perspectiva de certa forma machista. Mas os homens sabem que as mulheres, como eu disse há bocado, assumem sempre um perfil baixo, mais baixo e, mesmo assim, elas fazem acontecer as coisas, para o bem ou para o mal.

WM/MN: Agora vou mudar de rumo. Como bibliotecário que sou, convivendo e observando as bibliotecas universitárias brasileiras, percebo a dificuldade da cadeia produtiva do livro e, em decorrência disso, a dificuldade em se ter acesso a produções específicas de determinados locais do mundo. Neste sentido, eu te pergunto como um fundador e dono da Ku Si Mon, que é a primeira editora privada da Guiné-Bissau, quais seriam os seus projetos futuros para a sua editora?

Abdulai Sila: A editora foi criada com um objetivo específico, bem claro, desde o início: esse objetivo é colocar o livro no seu lugar. Nós dizemos banalizar o livro. Banalizar o livro no sentido positivo, quebrar este mito que existe em torno do livro, esta percepção de que o livro e a leitura são para a elite, quebrar toda essa mística ao redor do livro e fazer com que o livro seja um veículo de comunicação intrageracional e intergeracional. É esse o papel que eu acho que deve caber a nossa editora. Nós não temos fins lucrativos, não temos fins outros que não sejam de fato contribuir para que o conhecimento circule, que a literatura tenha uma maior expressão e que a cultura floresça. É esse o nosso maior projeto, atual e futuro, usando sempre o livro como veículo.

WM/MN: Mudando um pouquinho de rumo, já terminando quase. Qual é, atualmente, sua relação com o Inep da Guiné-Bissau e, se for possível também abordar, especificamente, com um setor do Inep, a biblioteca?

Abdulai Sila: Bem, eu fiz parte do núcleo que criou o Inep. Tive o privilégio de integrar uma equipe de quatro pessoas, que era coordenada pelo nosso colega Carlos Lopes e da qual eu participei desde o primeiro momento e fui responsável pela parte que tinha a ver com tecnologia. É nesse contexto que eu participei também na criação e implementação de projetos para a biblioteca, nomeadamente a sua informatização. É preciso falar e deixar claro que esse processo se iniciou quando o computador não era muito comum, estou a falar dos anos 80. O Inep foi criado em 84 e assumiu como um dos seus objetivos principais fazer com que os livros fossem mais acessíveis através da biblioteca. A Biblioteca Pública do Inep faz o papel de Biblioteca Nacional, portanto, como estudiosos nós entendemos sempre que uma biblioteca era fundamental e que os livros deviam ser devidamente catalogados, disponibilizados e conservados. É preciso dizer que na altura também não havia internet. Não é como hoje, até recentemente não existiam os meios, que hoje existem, de acesso à informação a distância, Google... tudo isso não existia na altura. Quem queria estudar tinha que ir à biblioteca consultar livros lá. Então a biblioteca teve sempre um papel fundamental no âmbito das atividades do Inep. O Inep também sempre prestou atenção não só ao consumo ou à transmissão do conhecimento produzido mas, também, atuou como produtor do conhecimento, ou seja, havia desde o início a consciência de que era preciso promover a publicação e a difusão do conhecimento endógeno. Então foram criadas na altura quatro coleções de publicações diferentes, uma era a revista Soronda, que era semestral e que começou pequenina, mas depois evoluiu. Havia uma coleção de monografias que se chamava Catchu-Martelo - é uma ave, é o pica-pau, em crioulo, Soronda também em crioulo significa desabrochar, crescer. E havia na altura também duas revistas especializadas, dois boletins de informação, um se chamava Boletim de Informação Socioeconômica que era o Bise e o outro Boletim de Informação de Ciência e Tecnologia. Portanto, havia uma preocupação clara, uma intenção deliberada de fazer com que o livro fosse disponibilizado para um maior número de utentes possível, como uma forma de facilitar o acesso ao conhecimento que era, no fundo, um dos objetivos principais do Inep.

WM/MN: Qual a sua posição em relação a uma publicação específica, que teve 110 números, o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa?

Abdulai Sila: O Boletim Cultural da Guiné Portuguesa é, de uma maneira geral, uma fonte importante de acesso a informação, dados, acontecimentos. O registro de muita coisa que aconteceu naquela altura. Havia o suplemento do Boletim, que tinha sobretudo assuntos de uma maneira geral menos oficiais, menos visível do ponto de vista do regime fascista que vigorava na altura. O regime colonial era também um regime fascista, portanto, como tal controlava muito e praticava a censura. Mas, apesar de tudo isso, há muita coisa, muita informação útil para a historiografia do país que, analisadas no seu contexto, pode ser aproveitada e utilizada na procura de informações sobre aquilo que efetivamente aconteceu naquela altura e que conseguiu passar ou quebrar a barreira da censura. Portanto, o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa é uma coleção que deve ser preservada e que deve ser utilizada pelos historiadores e não só, porque este periódico publicava literatura. Houve vários contos. Contos bonitos claro, que tinham sempre aquele toque típico de quem defendia a ideologia colonialista, que via o africano como uma coisa exótica. Mas, no meio de tudo, aí também havia alguns trabalhos que são muito interessantes e deviam provavelmente merecer, hoje, um outro tratamento.

WM/MN: Fechando mesmo essa nossa conversa, eu poderia pensar que a sua grande mistida a safar seria algo como que agenciar a esperança? Principalmente através da “banalização do livro”?

Abdulai Sila: Nós temos – e quando digo nós digo toda a gente da minha geração – nós temos várias mistidas, umas mais importantes que as outras, mais urgentes que as outras. Mas não deve haver dúvida nenhuma que uma das maiores mistidas que nós temos a safar é, de fato, a promoção do desenvolvimento do cidadão em toda a sua dimensão, é essa procura incessante da felicidade. Temos desafios, primeiro e acima de tudo, do domínio cultural. Acho que é na cultura que as coisas começam e é lá que elas terminam. Portanto, um cidadão culto é um cidadão que assume os seus desafios e contribui para que esta tal mistida comum seja safada e, para isso, o livro, como veículo de comunicação de aspirações, sonhos, valores, etc tem um papel fundamental. O livro vai permitir com que o diálogo intrageracional prevaleça para além do tempo imediato. Então, se o livro serve também para isto, o livro também é uma ferramenta indispensável nas outras batalhas que temos pela frente. Nós temos que promover o bem-estar. O livro é uma ferramenta preciosa, que pode influenciar o nosso conceito de bem-estar, de conforto, de realização, as nossas opções de vida. O livro também é um objeto de arte. Eu gosto muito de ter livros em minha casa, no meu escritório, me faz sentir bem. Eu aprecio ter livros comigo... Mas, voltando ao ponto de partida, o livro tem que ser acessível para todo mundo. O livro tem que ser visto como aquilo que de fato é, um veículo de comunicação que pode transportar tudo que nós podemos designar como sendo conhecimento ou legado. Indo mais além, o livro é esse instrumento que deve ser sentido por todo cidadão como algo que não tem nada a ver com elitismo, não tem nada a ver com - infelizmente na prática tem - a elite. O cidadão deve ter um relacionamento, digamos, aberto, simples, com o livro. Ter a coragem, ter a necessidade de pegar um livro e ler, não só o livro científico, mas também o livro que é do domínio da cultura, de diferentes aspectos da cultura, da literatura, sobretudo. Resumindo: Há que se promover o hábito de leitura; tornar o livro acessível; promover de uma maneira geral todo esse processo que permita que o cidadão assuma o seu papel de ator e não de mero objeto da história. É esta a função fundamental do livro.

WM/MN: Muito bem, mais uma vez muito obrigado. Agradecemos muito e agradeceremos sempre!

Abdulai Sila: Não tem de que. Eu é que agradeço. Nós estamos juntos nisso. O que acontece no Brasil pode ter impacto na África e vice-versa. As nossas questões estão interligadas. Se um for bem sucedido, pode ter impacto no outro lado também.

WM/MN: ...e essa conversa a gente vai continuar sempre!

Abdulai Sila: Sempre!

NOTAS

1 Concedida em Belo Horizonte, Minas Gerais, nos dias 8 e 9 de novembro de 2016, durante a IV Jornada do Centro de Estudos Africanos da UFMG. Transcrição feita por Anália das Graças Gandini Pontelo. Publicada originalmente como anexo no livro resultante da tese de doutorado de Wellington Marçal de Carvalho, intitulado A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2. ed., Brazil Publishing, 2019). Em 2023 passou a integrar a Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade – Igarapé, Porto Velho – RO, v. 16, n. 2, p. 41-53, 2023.

Referências

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria: unidade e luta. Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2013. 299 p. (Obras escolhidas de Amílcar Cabral, 1).


[i] Doutor em Letras / Literaturas de Língua Portuguesa. Pós-doutor em Estudos Literários (FALE/UFMG). Bibliotecário. Coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (EV/UFMG). Integrada os grupos de pesquisa GEED/CNPq e NERSI/ECI/UFMG. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[ii] Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).  A partir de 2021, coordena a seção literÁfricas, no literafro/UFMG, que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos literários de escritores(as) africanos(as) e afro-diaspóricos(as). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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