Breves notas sobre poéticas das literaturas africanas de língua portuguesa:
entrevista com Luciana Brandão Leal[1]

Cláudio Fortuna[i]

Esta entrevista foi realizada oralmente pelo antropólogo e jornalista Cláudio Fortuna, no dia 04/05/2023, na Universidade de Lisboa, Portugal, após conferência proferida pela Dra. Luciana Brandão Leal, professora da Universidade Federal de Viçosa – campus Florestal, para os alunos da graduação e pós-graduação da Faculdade de Letras da ULisboa, em projeto de pesquisas e extensão coordenado pela Dra. Ana Mafalda Leite, poeta, pesquisadora e professora associada nessa Instituição. A sua primeira versão foi publicada no Caderno Diálogo Intercultural, do Jornal Angolano de Artes e Letras, em 27 de setembro de 2023.

Cláudio - Boa tarde, gostaria que se identificasse para que saibamos de quem se trata.

Luciana – Olá, Cláudio, boa tarde! Meu nome é Luciana Brandão Leal, sou leitora, professora e pesquisadora das literaturas africanas de língua portuguesa; atuo, no Brasil, na Universidade Federal de Viçosa, no campus Florestal, em Minas Gerais. Estou vinculada aos programas de pós-graduação em Letras da UFV da UNEMAT. Atualmente, sou pesquisadora do CNPq (2022-2025) e cientista da FAPEMIG (2022-2025), com projetos de pesquisas financiados sobre poesias das literaturas africanas de língua portuguesa. Também sou membro do corpo editorial do literÁfricas, projeto de divulgação de textos acadêmicos que nos dá muito orgulho e nos traz bons resultados.

Cláudio – Como é que nesta altura a sua Universidade, soa, em princípio, como novidade em termos de conhecimento no que diz respeito aos estudos das literaturas africanas?

Luciana – Bom, Cláudio, no Brasil há núcleos muito importantes de estudos das literaturas africanas, com destaque para a Universidade Federal Fluminense, para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, para a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e para a Universidade de São Paulo. Há pesquisadores que são referências nos centros de pesquisas nacionais e internacionais, como Benjamin Abdala Jr., Carmen Lucia Tindó Secco, Laura Cavalcante Padilha, Maria Nazareth Soares Fonseca, Maria Teresa Salgado, Mário César Lugarinho, Rita Chaves, Sílvio Renato Jorge, Simone Caputo Gomes, Simone Pereira Schmidt e outros pesquisadores que iniciaram e sedimentaram os estudos sobre as literaturas africanas no Brasil.  Inclusive, neste semestre, participo como editora da Revista Mulemba (UFRJ), que será lançada em agosto/2023, e faz uma homenagem à crítica literária das literaturas africanas de língua portuguesa, com registros expressivos de pesquisadores que construíram e constroem esse campo de estudos no Brasil.

A Universidade Federal de Viçosa, onde eu atuo, não possui um núcleo tão expressivo sobre esses estudos, por esse motivo, busco sempre estabelecer diálogos e parcerias com outras Universidades e grupos de pesquisas, a fim de viabilizar minhas propostas e projetos interinstitucionais.

Cláudio - O que que lhe encanta mais nas literaturas africanas de língua portuguesa?

Luciana - É difícil determinar “o quê” me encanta mais, porque há vários fatores muito fascinantes nessas literaturas. Destaco o resgate de memórias, de experiências, a revisão crítica socio-histórica, o trabalho com a oralidade, com as oralidades... Há um conto do Boaventura Cardoso, “Gavião veio do sul e pum!”, que é um exemplo belíssimo da cadência poética e do trabalho com a oralidade no texto narrativo. Aprecio também a dimensão militante e combativa dos escritores da década de 1950, como nos poemas de Agostinho Neto, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Duarte Galvão (heterônimo de Virgílio de Lemos), Dona Alda Espírito Santo... Além da elaboração estética de textos tanto narrativos quanto poéticos... aqui, destaco Paulina Chiziane, Mia Couto, Boaventura Cardoso, Luandino Vieira (na prosa); Rui Knopfli, Alda Lara, Francisco José Tenreiro, Virgílio de Lemos (na poesia) e tantos outros nomes incontornáveis... portanto, há diversos aspectos que são encantadores nos projetos literários dos países africanos.

Cláudio- No que tem um encanto em particular pela poesia. O que  lhe encanta exatamente na poesia e por que tem Moçambique como um dos campos privilegiados de estudo?

Luciana - Cláudio, posso lhe dizer com segurança que minha formação como leitora de textos literários ocorreu, fundamentalmente, pelo contato com o texto poético. Eu tive a sorte de ter duas professoras de literatura muito marcantes, inesquecíveis: Silvana e Carla. Tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, elas incentivavam e valorizavam a experiência literária, desde as pesquisas nas prateleiras das bibliotecas públicas, até a performance em sala de aula. Eu sou uma leitora de poesias desde muito jovem, sempre adorei ler poemas em voz alta e me emocionava com essas experiências. Li e sabia “de cor” muitos sonetos de Vinicius de Moraes. Meus amores da adolescência foram embalados pelo “Soneto de Fidelidade”, “Soneto de Amor Total” e, também, pelo “Soneto da Separação” (rsrsrs!). Li Drummond com encanto e com espanto. Li os modernistas, os tropicalistas, os “marginais”... Li e leio poesias concretas em diversas plataformas, tentando percorrer e decodificar os deslocamentos dos signos, dos sons, das imagens e dos sentidos. Li e leio Adélia Prado, minha conterrânea, que foi professora de minha tia no ensino primário, poeta que traz a estética e a beleza do cotidiano, com profundas reflexões sobre o homem e sobre a vida.

O texto poético desafia o leitor para o embate com a palavra. Sempre me lembro dos versos de Drummond: “Ai, palavras! Ai, palavras! Se me desafias, aceito o combate!..." Além disso, é um gênero textual que suscita emoções e provoca catarse nos leitores, como já assegurava Fernando Pessoa em “Autopsicografia”. Não que isso falte à narrativa, de forma alguma, mas, como leitora, sou apreciadora dos textos poéticos. Eu me sinto privilegiada por trabalhar com algo que me causa reflexão e emoção. Leio e escrevo com emoção, embora sempre esteja pautada pelos parâmetros críticos. Estudar poesias é algo muito importante, sobretudo na atualidade, uma vez que esse gênero continua na “periferia” dos estudos literários e, especialmente, dos estudos das literaturas africanas de língua portuguesa. É um gênero pouco estudado, ao qual se dá pouca atenção, embora haja diversas expressões belíssimas e incontornáveis.

Por exemplo: quando a gente lê “Quero ser tambor”, do Craveirinha, essas batidas ressoam em nossos corações, o que é um movimento muito bonito da literatura, do “direito à literatura”, como nos diz Antonio Candido, considerando sua função “humanizadora”, além de nos transportar e nos colocar em lugares em que possivelmente não estaríamos.

Sobre a focalização inicial nas poesias produzidas em Moçambique, estudei o poeta Virgílio de Lemos e seus heterônimos em minha tese de Doutorado. Não considero que seja meu campo “privilegiado” de estudos, mas foram os iniciais, que resultaram nas primeiras publicações. Atualmente, tenho me dedicado também aos estudos de poetas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Além de, vez ou outra, escrever e publicar textos sobre poetas brasileiros, como Ana Cristina César, Paulo Leminski, Augusto de Campos... enfim! Meu empenho é ler e escrever sobre poesias, escrevo sobre o que me causa mais emoção. Lembrando Carmen Tindó Secco, em seu belíssimo estudo “Afeto e Poesia”, escrevo sobre o que me afeta.

Cláudio – Falando em “periferia”, sei que há pouca produção de teses ligadas à poesia no Brasil. A que se deve isso e qual é exatamente a porcentagem para que possa partilhar com nossos ouvintes/leitores.

Luciana – A informação percentual que tenho está na tese de doutorado da Eni Rodrigues, defendida na PUC Minas, em 2020. Essa pesquisadora analisou o catálogo de teses da CAPES em um período pré-definido, entre 2013-2017. Ela chega a um dado muito expressivo e afirma que apenas 8% das teses feitas no Brasil, na área de literaturas africanas de língua portuguesa, são sobre poesias. Esse dado revela que há uma carência de estudos nessa área específica e não somente isso, os nomes de autores escolhidos geralmente se repetem. Mesmo nas teses sobre textos narrativos, Eni Rodrigues identifica repetições de autores e temáticas investigadas. Então, isso nos dá uma certeza de que é preciso ampliar esses estudos, conferindo maior visibilidade a eles, para que se amplie também a formação de professores nos cursos de Letras das Universidades brasileiras, a fim de que o trabalho se desdobre na formação do público leitor da educação básica. Tenho essa preocupação como professora, já que também leciono no Ensino Médio (ofereço uma disciplina optativa de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa para os alunos da CEDAF, UFV campus Florestal), pois meu atual objetivo pessoal e acadêmico é ampliar o público leitor de poesias nas escolas brasileiras, começando pela escola/universidade onde eu atuo.

Cláudio – A que se deve isso no seu entendimento?

Luciana - Acredito que a publicação e edição de obras poéticas não é tão privilegiada quanto as narrativas, isso está na origem da carência dos estudos, a dificuldade de acesso aos textos poéticos, já que poucas antologias são publicadas no Brasil. Existe, também, uma preferência dos leitores pelas narrativas, por considerarem que a leitura de poesias é difícil, trabalhosa. Então há múltiplas interferências que determinam o dado apresentado pela Eni Rodrigues, parte de uma questão editorial e de dificuldade de acesso, mas também de preferências dos leitores especialistas que optam pelos estudos de narrativas, por considerarem que elas dão mais possibilidades ao trabalho crítico.

Cláudio - Uma das razões também pode ter a ver com a decodificação dos códigos linguísticos da poesia?

Luciana - A decodificação dos códigos linguísticos depende de uma leitura atenta, criteriosa, e isso requer múltiplas leituras, dedicação e, sobretudo, o embate com o texto. Decodificar os “códigos linguísticos” de uma outra língua portuguesa, que também é a mesma, não é tarefa fácil. Mas eu confio na intuição, na percepção e no desejo de leitura, apreciativa ou crítica. Então ler poesias parte da ideia de você se entregar para o texto. Primeiramente, de uma forma impressionista, em que você vai perceber aquele texto como leitor, mas também se valendo de aparato teórico para uma leitura mais pormenorizada, uma leitura crítica, digamos, específica daquele texto poético.

Cláudio – Enquanto estudiosa das literaturas africanas de língua portuguesa em quais dos CINCO países há maior produção de poesias?

Luciana - Bom, Cláudio, como eu lhe disse na questão anterior, meus primeiros estudos foram sobre produção poética de Moçambique; escrevi alguns artigos, ensaios e capítulos sobre poetas moçambicanos. Na década de 1950, Moçambique foi um cenário privilegiado para a produção poética, além de contar com revistas literárias importantíssimas, que faziam circular poesias, como é o caso da Revista Msaho (1952). Mas essas manifestações não se limitam, absolutamente, ao espaço moçambicano, como podemos citar o exemplo da Revista Claridade, em Cabo Verde... além de outros movimentos nas colônias portuguesas (apesar de toda repressão e censura, a literatura se fazia, - sempre -, resistência). Neste momento, a minha pretensão é investigar produções poéticas de Angola, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e da Guiné-Bissau. É um projeto ousado, não é?, porque são cinco projetos literários distintos, mas eu tenho buscado estudar e divulgar textos poéticos, tentando trazer à cena crítica vozes de cada um desses cinco países de língua portuguesa, para, consequentemente, ampliar o público leitor desses textos nas universidades brasileiras.

Cláudio – Uma das questões que você deve ser grata é em relação à crítica literária. Como está a crítica literária dos países de língua portuguesa?

Luciana – Para lhe responder essa questão, falarei, de forma mais específica, do cenário brasileiro – que é onde eu atuo. No Brasil, a crítica literária dos países africanos de língua portuguesa vem se desenvolvendo e se fortalecendo cada vez mais, com a formação de novos pesquisadores, de importantes parcerias de pesquisas – como posso citar, por exemplo, a organização e o sucesso do I SILAS Minas, ocorrido em outubro de 2022, com a participação de pesquisadores vinculados a diferentes Universidades de Minas Gerais – PUC Minas, UFMG, UFOP, UFV e UFVJM. Ressalto, também, a formação de doutores, tanto nos programas de pós-graduação que eu mencionei anteriormente, como em outros programas, como os da Universidade Federal da Paraíba e da UNEMAT. Então, há uma crítica literária atuante e atenta no desenvolvimento dos trabalhos sobre essas literaturas. Entretanto, como se sabe, não só no Brasil, as literaturas africanas ainda são vistas de uma forma mais periférica, apesar dos constantes esforços para fortalecer essa área. E há um empenho imenso de divulgação, como é o caso do literÁfricas, projeto coordenado pela Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca, alocado no portal literafro-UFMG, que promove a divulgação de textos críticos, entrevistas e confere amplo e gratuito acesso a publicações sobre os CINCO, contando com milhares e milhares de acessos.

Cláudio – Até que ponto que a crítica literária feita de forma endógena facilita a decodificação dos códigos linguísticos?

Luciana - Eu acredito que o trabalho da crítica, endógena ou exógena, é trazer uma leitura pormenorizada do texto literário. Como pesquisadora de literatura, sinto-me uma leitora especialista, mas, antes de tudo, leitora. Então, fazer crítica literária é ter contato com o texto, portanto, o foco deste trabalho é o texto. É claro que uma crítica endógena facilita a decodificação de aspectos textuais e paratextuais, dos dialogismos e das vozes sociais, históricas e culturais presentes naquele texto, pois há conhecimentos prévios, experiências, que o leitor de outros lugares não partilha. Mas o trabalho do crítico literário, seja das literaturas de língua portuguesa, das literaturas de língua inglesa, ou de quaisquer outros espaços, é o trabalho com o texto, para que ele possa desenvolver, a partir disso, uma leitura mais eficiente de qualquer texto literário.

Cláudio – De que forma a criação dos cursos de Letras nos países africanos potencializou a crítica literária?

Luciana - Em relação à criação dos cursos de Letras nos espaços africanos, acredito que possibilitam a formação de professores e estudiosos interessados em textos narrativos e poéticos produzidos nos seus países, e isso é muito importante. Essa demanda também movimenta o mercado editorial, a projeção de autores consagrados e de novos talentos. Esse ponto é também fundamental para que os estudos sobre as literaturas africanas não sejam feitos apenas por vozes de outros espaços, portanto, quanto maior a formação de alunos, leitores e pesquisadores interessados em conhecer e divulgar as obras literárias produzidas em seus países, melhores serão os resultados e o impacto nessa área de conhecimento.

Cláudio - E a questão da tradução das obras literárias, o fato das literaturas africanas de língua portuguesa fazerem parte da periferia, comparativamente aos países de língua francesa e língua inglesa, isso retira a pujança e a competitividade dos textos produzidos nos países africanos?

Luciana - Eu não vejo esse aspecto necessariamente desta forma, uma vez que, atualmente, o escritor mais traduzido, mais conhecido e mais lido do continente africano, Mia Couto, é um escritor de língua portuguesa. Luís Carlos Patraquim (moçambicano) e Agostinho Neto (angolano) têm seus livros traduzidos para diversos países. O prêmio Camões de 2021, o prêmio literário mais importante da língua portuguesa, é de Paulina Chiziane, escritora moçambicana. Aí tocamos nos aspectos das traduções que facilitam e ampliam a circulação dos textos... mas que é uma questão sobre a qual tenho certa dificuldade para falar.

Cláudio – Até que ponto a tradução retira a pujança da originalidade do texto?

Luciana - Eu não sou uma estudiosa sobre processos de tradução, então não posso responder esta questão de forma mais específica, contando com devido aprofundamento teórico. Não tenho conhecimento para lhe dizer sobre tradução de obras literárias, nunca realizei ou acompanhei esse tipo de trabalho. Já fui revisora de traduções de textos técnicos, informativos, e, mesmo nesses gêneros textuais mais referenciais, percebo que é um processo minucioso. Ressalto, entretanto, que a tradução é fundamental para ampliar o público leitor das obras escritas em língua portuguesa.

Como leitora, acho que a tradução é uma questão delicada. Na verdade, tenho um “pouquinho” de resistência em relação às traduções, principalmente de textos poéticos, para os quais a musicalidade e a visualidade são essenciais.

Cláudio – Por quê?

Luciana - A tradução, por mais eficiente que ela seja, modifica, em alguma medida, o sentido e a cadência das palavras, pois as palavras não são completamente idênticas. não são equivalentes em semântica e sonoridade. Vou dar um exemplo bobinho: a palavra “fofo”, em minha opinião, encerra muito mais a ideia de fofura, maciez, do que a palavra “cute”. É uma percepção minha, sem reflexões teóricas. E mesmo que tenham uma proximidade semântica, há a questão da cadência do texto literário, principalmente quando tratamos de textos fundados na oralidade, como é o caso das literaturas africanas, em que os discursos ganham muito mais sentido quando são lidos em voz alta.

Mas a tradução, incontestavelmente, confere maior visibilidade e maior circulação, em outros espaços, aos textos que foram inicialmente produzidos em língua portuguesa, dando conhecimento e oportunidade a outros leitores, possibilitando, é claro, a divulgação da literatura escrita nos países sobre os quais estamos conversando.

Cláudio – Seria excessivo da minha parte se eu dissesse que as literaturas produzidas em Angola e em Moçambique pontificam comparativamente a produção dos outros países africanos de língua portuguesa?

Luciana - Olha, Cláudio, há, ainda hoje, uma expressão mais significativa das literaturas de Angola e Moçambique, pelo fato de haver maior número de publicações, circulação mais privilegiada, além da focalização dos estudos críticos preferencialmente nesses dois países. Mas, cada um dos países africanos de língua portuguesa tem um projeto literário bem definido, e nesses projetos literários se destacam diversas feições de escritoras e escritores, na narrativa, na poesia... Então, acho que existe, sim, maior visibilidade das literaturas de Angola e Moçambique, principalmente por questões de edição e mercado editorial, mas não se pode considerar que elas são metonímia de todo espaço africano, uma vez que há feições diversas. O que considero muito importante, é valorizar essa diversidade de expressões, combatendo de forma insistente, o equívoco de que há uma unidade ou uma “literatura africana” reduzida a algumas feições ou temáticas. Penso que isso, sim, deve ser combatido fortemente até mesmo em falas repetidas dentro das Universidades.

Cláudio – Em sua comunicação, hoje, aqui na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, você falou de cinco poetas dos cinco países de língua portuguesa. Por que é que eles foram selecionados, foi uma mostra aleatória ou há uma finalidade específica? Qual é seu envolvimento com Alda Lara, escritora angolana?

Luciana – A minha fala hoje, na Universidade de Lisboa, decorre de projetos aprovados no Brasil, pelo CNPq e pela FAPEMIG, sobre poesias escritas em países africanos de língua portuguesa. O recorte feito para esta conferência privilegiou expressões poéticas de Alda Lara (Angola), Jorge Barbosa (Cabo Verde), Rui Knopfli (Moçambique), Tony Tcheka (Guiné-Bissau) e Francisco José Tenreiro (São Tomé e Príncipe). Essa seleção tem função expositiva de um recorte desses projetos, porque eu tenho um tempo pré-definido. Eu poderia falar de outros poetas dos países citados, mas, tomaria muito tempo e ficaria enfadonho para o público, já que, segundo o senso comum, nem o nosso “anjo da guarda” continua “a postos” depois de uma apresentação de duas horas..(rsrsrs).

Embora a minha exposição não tenha um viés comparatista entre a produção poética desses cinco autores, há semelhanças entre eles, como marcas de subjetividade em vozes que se enunciam em primeira pessoa, a elaboração estética dos poemas, além de questões que se repetem como temas, como a ideia do pertencimento, do exílio, da diáspora e de um retorno à Àfrica, seja como uma África imaginada (idealizada) ou a África real (social, política). Então, para integrar essas vozes e uni-las em uma mesma exposição oral, busquei esses vieses marcando semelhanças e diferenças entre elas, mas, repito, minha intenção não foi expor um trabalho comparatista.

Cláudio – Em determinadas circunstâncias alguns desses poetas foram alvo de alguma negação de seu lugar de pertença, ou em determinadas circunstâncias, tiveram reconhecimento tardio da qualidade da produção de sua poesia. Até que ponto isso tirou o empenho, o engajamento e a divulgação desses poetas?

Luciana – Na questão anterior você me pediu para dizer sobre a seleção da poeta Alda Lara para essa conferência na ULisboa. Eu reitero aqui, como fiz em minha apresentação, a importância dessa voz no cenário da literatura angolana e na literatura produzida em língua portuguesa. Alda Lara é um exemplo de uma voz que por muito tempo, ficou subjugada ao espaço de uma “literatura menor”, tendo sido considerada uma poeta que se preocupou com questões irrelevantes para a sociedade angolana. Alfredo Margarido, por exemplo, disse que “a poesia de Alda Lara era incompleta”, pois vivia presa ao mundo da infância, ao sentimento de exílio, portanto, segundo ele, a sua angolanidade “não se apoderou dos elementos mais significativos”. (MARGARIDO, 1980, p. 301 apud SILVA, 2021, p. 42). Atualmente, há pesquisadores que se dedicam com empenho ao estudo da produção poética e ficcional dessa autora, tanto no Brasil quanto em Portugal. No literÁfricas, por exemplo, temos alguns textos críticos sobre Alda Lara na seção de Angola.

Alda Lara nasceu em Benguela, Angola, em 1930, mas morou por muitos anos em Portugal, onde se formou em Medicina. Retornou a Angola em 1962, que, naquele momento, ainda era colônia portuguesa. A sua única obra completa, Poemas (2004), foi publicada postumamente, organizada pelo seu marido. A morte precoce dessa escritora, aos 32 anos, coincide com o período dos movimentos de libertação nacional em Angola, o que incide sobre a sua obra e sobre a recepção dela, suscitando, em alguns momentos, leituras que excluem o caráter nacionalista de sua poesia. Por isso, a crítica literária focaliza, sobretudo, a produção poética de Alda Lara que tem caráter mais intimista, mais subjetivo, excluindo, muitas vezes, seus poemas de caráter social. Entretanto, como eu disse em minha apresentação e defendo em artigo publicado na revista ALEA (2023), quando lemos a antologia Poemas (2004), percebemos que há uma virada semântica considerável nos poemas larianos, na medida em que sua voz lírica passa a tratar sobre questões sociais, em empenho que se volta para o coletivo, o que acontece em poemas como “Maternidade”, “Presença Africana”, “Prelúdio”. Por muito tempo, a crítica literária deixou Alda Lara em um lugar esquecido dentre as referências importantes da literatura angolana; mas, neste momento, percebo que há um movimento de valorização e de resgate dessa voz que é tão importante no cenário literário de seu país.

Cláudio – Embora, verdade seja dita, há uma produção de David Mestre em que ele ressalta que Alda Lara é um exemplo dos cinco poetas verdadeiramente angolanos.

Luciana – Exatamente, Cláudio, mas se você for considerar antologias que foram organizadas e estudos críticos destinados à literatura angolana, poucas vezes Alda Lara aparece nesses espaços de prestígio e divulgação. Refletindo sobre essas questões, acredito que quando Alda Lara retornou a Angola, após concluir seu curso de Medicina, a colônia estava naquele período sombrio e violento dos anos pré-libertação. E Alda Lara morreu muito jovem, ela viveu somente quatro anos em Angola, após concluir seu curso de medicina. Então, penso que ela não teve tempo para divulgar e estabelecer sua produção poética no seu país de origem. Mas, reforço o que lhe disse anteriormente, os estudos recentes têm se empenhado em evidenciar a importância da autora no cenário da produção literária angolana.

Cláudio – Há probabilidade de os países africanos de língua portuguesa poderem competir em pé de igualdade com os países africanos de língua inglesa e de língua francesa, considerando que essas duas línguas possuem privilégio na central do conhecimento?

Luciana – Olha, Cláudio, acredito que é necessária uma organização editorial, com maior empenho e investimento na divulgação e circulação dessas obras. Ainda hoje, essa questão é um embate, um entrave imenso na difusão dos textos produzidos nos países africanos de língua portuguesa, sobretudo quando tratamos de obras poéticas. Eu não sou uma especialista em mercado editorial, não tenho experiências sobre essas negociações, mas eu compartilho a frustração de buscar alguns textos literários e não ter acesso a eles, porque muitos não estão publicados ou são publicados em tiragens reduzidas (esgotadíssimas). Então, penso que possíveis soluções passam pelo investimento público em produção e circulação de obras literárias, organização do mercado editorial, fortalecimento das associações de escritores, empenhos múltiplos de divulgação, como, por exemplo, a excelente Feira do Livro que acontece anualmente em Maputo - Moçambique. Ressalto, também, a importância de acolher essa produção literária no âmbito acadêmico, ampliando estudos críticos sobre essas obras. Essas ações, em conjunto, conferem maior visibilidade a elas. É uma integração de fatores, de ações, que vão fortalecer cada vez mais a circulação das obras narrativas e poéticas dos países africanos de língua portuguesa.

Cláudio – A produção literária dos países africanos de língua portuguesa tem circulado como devia nos países fora do continente?

Luciana – Cláudio, infelizmente, não. Como sabemos, há autores privilegiados, que são editados tanto em África, no Brasil e em Portugal, alguns nomes circulam de forma ampla, estão na “superfície estrelada das letras”, como diria Drummond. Mas, infelizmente, esse privilégio fica limitado a alguns autores, que são os nomes premiados, super conhecidos e super difundidos, inclusive no cenário acadêmico. Essa questão de divulgação e circulação fora do continente africano ainda é uma questão muito precária, embora haja empenhos de diálogos nesse sentido, cito como exemplo o produtor cultural e poeta Amosse Mucavele, que está frequentemente no Brasil em diálogo com editoras, com universidades e, também, com a comunidade. Essas ações são muito importantes, porque quanto mais os textos circulam, mais eles são conhecidos e conquistam o público leitor de outros espaços.

Claudio – Como os estudos críticos podem contribuir para formação do público leitor de poesias?

Luciana – Cláudio, acho que uma ação desencadeia as outras. Ler poesias criticamente, em estudos acadêmicos, possibilita a formação mais ampla dos alunos/professores nos cursos de Letras nas Universidades, que irão, posteriormente, compartilhar essas experiências com seus alunos da educação básica, incluindo textos das literaturas africanas em um espaço que antes ficava limitado ao estudo da literatura brasileira e da literatura portuguesa. É uma questão integrada, várias ações a definem.

Cláudio – Até que ponto as definições dos cânones literários determinam as orientações dos estudos literários?

Luciana – A questão do que é determinado ou não “cânone” sempre direcionou os estudos literários, havendo privilégios para o que é, de fato, considerado cânone. Como leitora, eu busco ler aquilo que me causa emoções, que me traz novas experiências de leitura. Partindo do pressuposto de que a função da literatura é, antes de tudo, uma função humanizadora, acredito que ler textos pautada ou limitada pelo que é ou não definido como cânone é um prejuízo imenso.

Cláudio – Por vias da literatura podemos chegar aos estudos africanos?

Luciana – Claro! A literatura é uma expressão importantíssima do ser humano e da identidade de um espaço e, sem dúvidas, a literatura abre vias para compreensão de outros fatores – políticos, sociais, culturais – além da configuração da(s) identidade(s) daquela nação. Portanto, a literatura contribui para os estudos de outras áreas e para integração de diversas áreas de conhecimento.

Cláudio – Os pesquisadores dos estudos literários concorrem “um bocadinho” com a antropologia, na medida em que depois tendem aos estudos culturais?

Luciana – Cláudio, há, sim, uma inter-relação entre as áreas de conhecimento, o que é um fator muito positivo, já que não se constrói um conhecimento de forma independente, purista. Como se sabe, os programas de pós-graduação em Letras são bastante interdisciplinares, por exemplo, recebem alunos de diversas áreas: História, Psicologia, Biblioteconomia, Filosofia e outras, diálogos que resultam em excelentes pesquisas. Mas, como estudiosa de literatura, eu tenho uma posição muito firme em relação a isso, ressalto que o estudo do texto literário deve partir dele, deve privilegiar o texto literário. Parece uma coisa óbvia, mas nem sempre acontece. Muitas vezes, o que se vê é uma sobreposição de outras áreas de conhecimento, que acabam sufocando, abafando o texto literário. O texto literário não é, simplesmente, um “adorno” para um estudo da área de literatura, ele deve ser o cerne do trabalho. Então, trazer outras áreas de conhecimento é importante e necessário, mas privilegiando, sempre, a leitura do texto. Por isso não concordo que um pesquisador de literatura faça um estudo puramente antropológico, simplesmente porque essa não é a função dele.

Cláudio – Qual é o papel da diáspora africana na divulgação da literatura africana nos países que os recebem?

Luciana - Acredito que esse trânsito de escritores e de pesquisadores africanos por outros espaços de língua portuguesa é importantíssimo para divulgação de suas literaturas. Tenho amigos que são escritores em Moçambique, são pesquisadores em Angola, em Cabo Verde... enfim, esses trânsitos favorecem os encontros e o intercâmbio cultural. Por exemplo, nós nos encontrarmos aqui, na Universidade de Lisboa, oportunidade que gerou esta entrevista e um diálogo muito profícuo. Então, ao estarmos aqui, em diálogo com os centros lusófonos, trazemos muito das nossas experiências para cá e levamos muito das experiências daqui para os nossos países: Angola e Brasil. Estarmos em contato com outras pessoas e outros espaços nos permite ampliar nossas percepções em relação a diversas questões. Quando eu comecei minha fala, hoje, eu disse que eu estava, neste momento, em um movimento “intercontinental”, já que sou uma brasileira que veio a Portugal falar das literaturas africanas. Esse intercâmbio nos fortalece e fortalece a nossa área de estudos.

Cláudio – Hoje, enquanto estudiosa em particular da literatura moçambicana, você considera que lá se produz mais poesia ou prosa?

Luciana - Nossa! Que pergunta difícil! Minha Nossa senhora! (rs!). Bom...Francisco Noa, grande intelectual moçambicano, já afirmou que Moçambique é pátria de poetas. Recentemente, em uma entrevista que ele me concedeu, publicada na Revista Aletria (UFMG), fiz uma pergunta parecida com essa, e ele me disse que essa afirmação era “um tanto redutora”. Pode-se dizer que no século XX, de meados da década de 1950 até a década de 1980, houve, em Moçambique, uma enorme difusão dos textos poéticos, que eram recitados em praça pública, compartilhados oralmente, o que foi motivado por diversas circunstâncias, como a dificuldade de acesso à leitura e à escrita. Mas, a partir da década de 1980, nota-se a valorização e a difusão dos textos narrativos, com diversos autores consagrados e reconhecidos em África e internacionalmente. Prova disso é a atribuição de dois Prêmios Camões a escritores moçambicanos: Mia Couto (2013) e Paulina Chiziane (2021); além do destaque de João Paulo Borges Coelho no prêmio Oceanos (2021), todos com obras ficcionais, para citar apenas alguns exemplos. Então, fico dividida entre uma coisa ou outra, acho que Moçambique é pátria de ficcionistas e é, também, pátria de poetas.

Cláudio – Muito obrigado, Luciana.

Luciana – Obrigada, Cláudio, foi um prazer falar com você.

NOTAS

1 Uma versão inicial desta entrevista foi originalmente publicada no Jornal Angolano de Artes e Letras – Caderno Diálogo Intercultural, em 27 de setembro de 2023. A primeira versão da entrevista concedida a Cláudio Fortuna e editada para o jornal tem como título: “A crítica literária deixou Alda Lara esquecida entre as referências da literatura angolana”: entrevista com Luciana Brandão Leal.

REFERÊNCIAS

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LARA, Alda. Poemas. 2004.
LEAL, Luciana Brandão. Virgílio de Lemos: poesia em trânsito. 2018. Tese de doutorado. 241fl. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2018.
LEAL, Luciana Brandão. “Perto do fragmento, a totalidade”: percepções sobre a literatura moçambicana: entrevista com o pesquisador e intelectual Francisco Noa. Aletria: Revista De Estudos De Literatura33(2), 224–234. Disponível em https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/44992
LEAL, Luciana Brandão. Alda Lara: um convite à poesia. In: ALEA | Rio de Janeiro | vol. 25/2 | p. 212-239 | maio-ago. 2023. Disponível em https://www.scielo.br/j/alea/a/3wxmR4QjYnc8zX9m9qtRv4t/abstract/?lang=pt
NOA, Francisco. Literatura Moçambicana: os trilhos e as margens. In: CALAFATE, Ribeiro. MENESES, Maria Paula (Orgs). Moçambique das palavras escritas. Porto: Edições Afrontamento, 2008.
SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2014. 


[i] Possui graduação em Antropologia pela Universidade Agostinho Neto (2011). Doutorando em  Antropologia, no programa conjunto entre o ISCTE-IUL e a NOVA de Lisboa. Jornalista responsável pelo Caderno Diálogo Intercultural, do Jornal Angolano de Artes e Letras, de Angola. Tem experiência na área do Urbanismo, com ênfase em Teoria do Urbanismo, autor do livro Reencontros com as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Brasília: Editora Kiron, 2013, e dos Lugares no Espaço Angolano, São Paulo, Brasil, 2016, co-autor do Meandros das Manifestações em Angola volume I, Brasília: Editora Kiron, 2011. 

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