Entre fronteiras e trânsitos: a trajetória literária do escritor de Guiné-Bissau, Eliseu Banori[1]

Eni Alves Rodrigues[i]

Lílian Paula Serra e Deus[ii]

Wellington Marçal de Carvalho[iii]


ELW:
Poderia compartilhar um pouco da sua biografia e seus deslocamentos entre Guiné-Bissau e Brasil?

EB: Nasci e fui criado em Bissau, capital atual da Guiné-Bissau. Quando era pré-adolescente fui visitar meus avôs maternos em Catió, sul do meu país. A minha vivência com avô Arnaldo e avó Maria fizeram com que aumentasse meu interesse em aprender mais e mais sobre as tradições orais do meu povo. Foram com meus avôs que eu aprendi a contar estórias e as adivinhas nas noites de fogueiras, em Djiu de Colbert, um povoado abandonado pelo Estado guineense. Poucas pessoas falam de Djiu e poucas conseguem a localizar no mapa... Como tenho dito em várias entrevistas, foi nesse ilhéu que eu aprendi o que nunca me ensinaram na escola. Os Griots que viviam ali contribuíram muito para minha formação cultural e literária... Nasci numa família pobre. Pobre no sentido de algumas carências humanas, impostas pelas desigualdades sociais do meu país...

Na tradição da minha etnia pepel, o meu pai, José Ié, casou com três mulheres. Sou filho da segunda mulher do meu pai, Dona Fátima Có, também chamada de Dona Fatú, ela que foi obrigada a casar com meu pai quando tinha apenas 16 anos, interrompendo, assim, seus estudos primários. A minha mãe sempre lamentava essa situação. E sempre manifestava seus desejos e sonhos de estudar na época. Cresci numa família alargada, à moda africana: com meus irmãos e primos. O meu pai era agricultor, que nunca teve a oportunidade de sentar numa cadeira de escola. Por isso, lamentava a falta de condições financeiras para eu e  alguns dos meus irmãos irmos à escola. Essas condições foram motivos que fizeram com que eu demorasse muito a iniciar os primeiros anos do ensino básico. A vida da minha família nunca foi fácil, a minha mãe passava o tempo todo na feira, vendendo os legumes para ajudar no sustento da casa, a minha irmã mais velha, de parte de pai, era costureira. Ela fazia roupas de mulheres e nos dava para vender na feira, ajudando, assim, no sustento da casa. Ela foi muito fundamental na minha educação e na pessoa que sou hoje. Devo a ela todos os sucessos que vim conquistando há muitos anos. Também devo frisar o papel das minhas madrastas, Dona Sábado e Dona Teresa, dos meus tios ( tio Croca e o Fernando) e alguns velhos da aldeia na aquisição dos conhecimentos e na formação da minha personalidade. A minha conversão à igreja evangélica também enriqueceu bastante o meu fazer poético. Foi na igreja evangélica de Belém que eu comecei a sentir o gosto pela literatura escrita! Ali participei de várias noites de festivais de poesias... Esses festivais eram organizados em formas de concursos em diferentes igrejas da cidade... Ganhei muitos... Na época, eu fazia muito sucesso com a fama de declamação com poesias escritas pelo meu mestre Sanca António Cá, a quem devo muita gratidão pela forma simples que me ensinou a penetrar no mundo literário. Mais tarde, já um jovem amadurecido e muitas coisas escritas, tive sorte de ser apresentado às literaturas de língua portuguesa por uma das pessoas da arte guineense que mais admiro – Atchó Spress. Foi o Atchó que encheu a minha alma de tantas belezas e a grandeza da literatura guineense. A literatura é um pouco de verdade em cada um de nós! É essa verdade que nos dilacera na alma e, às vezes, torna os nossos olhos visíveis sobre a conduta humana. Ela também é desejo, é força e resistência para quem pwecebe tantas injustiças no mundo. Foi durante o curso literário administrado pelo Atchó, no Centro Cultural Português, que eu comecei a enxergar essas verdades e usar a literatura em defesa dos povos oprimidos... Desse modo, agradeço imensamente Sanca e Atchó, por terem investido em minha formação como um homem de palavras...

O meu maior sonho durante grande parte da minha infância era ser jogador de futebol. Passei os primeiros anos na escola de formação dos iniciados e Juniores do Sporting Clube de Bissau, mais tarde, passei no “Bula Futebol Clube”, jogando na segunda divisão do campeonato do país. Ser jogador de futebol foi, de fato, um grande sonho da minha infância. E muitos afirmavam que eu seria mesmo um grande profissional. Enfim... Não aconteceu... Apesar de não ter realizado esse sonho, não me arrependo do dom da palavra que Deus me incumbiu. É desse exercício que sinto total disposição de viver plenamente. A literatura me deu muitas alegrias e razões de viver!

A minha vinda ao Brasil ocorreu por meio de uma bolsa de estudos – PEC-G, em 2009. Essa bolsa chegou ao momento preciso. Momento em que havia terminado um curso de formação de professores, “Escola de formação 17 de fevereiro”, mas com muito receio da vida tão lamentável que levavam os professores do ensino básico. Meu desejo, na época, era seguir a carreira de professorado, mas com a formação superior no exterior. Aconteceu como sonhei. E o Brasil, além da formação acadêmica, me proporcionou muitas coisas boas: abriu as portas para publicar meus livros e formar uma família.  Hoje tenho dois filhos: Eliseu Júnior, de 10 anos e Esther Vitória, de 7 meses de vida. Tenho dez livros publicados... Já fui premiado como um dos melhores escritores do ano na Guiné-Bissau (2021). Atualmente, trabalho na Secretaria Municipal de Cultural, como gestor da Sala de Leitura Maria Firmina dos Reis.

ELW: Sua publicação no Brasil abarca gêneros diversos (conto, prosa e poesia) e com um significativo número de obras nos últimos anos. Nesse sentido, como é pensado o seu projeto estético-literário?

EB: Foi grande verdade, minhas publicações seguem essa migração e aventura diversas que o mundo da literatura nos proporciona.  Comecei, como a maioria dos escritores guineenses, escrevendo poesias, com exceção de Abdulai Silá que teve a sua estreia com um romance... Quando cheguei ao Brasil, em 2009, eu já havia trazido muitas coisas escritas na mala, esperando uma oportunidade de publicação. Foram textos que havia deixado no molho há muitos anos... Eu amava declamar e escrever poesias... Não foi por acaso que meus primeiros livros publicados foram de poesia. Até hoje muitos leitores afirmam que os meus textos de prosa têm esse sabor poético. E acho a justiça e a gratidão dessa cultura... As primeiras publicações ocorreram nos anos de 2011, 2012, respectivamente...  Não imaginava realizar esse sonho, logo, nos primeiros anos da minha estada no Brasil. Mas aconteceu de uma forma surpreendente. Eu tenho muitos motivos para sonhar e incentivar as pessoas a sonharem e acreditarem que tudo é possível quando a alma quer!

A minha vivência no Brasil amadureceu bastante no meu fazer literário. A literatura, por meio de palavras foi me mostrando outros lados da vida: os problemas sociais, as desigualdades escancaradas no mundo e muitos preconceitos, sob diversas formas que eles manifestam, suportados pelas pessoas negras neste país...  Acho que todo escritor, ou seja, quem trabalha com a arte, deve ficar atento às realidades à sua volta. Essas realidades ao meu redor me provaram que era possível migrar por outros gêneros literários, sendo portador de boa mensagem – como tchintchor – o pássaro portador de mensagens, segundo a lenda guineense. Nunca parei para desenhar um projeto estético-literário.  Acredito na força da literatura, seu poder na transformação e formação do homem enquanto sujeito social. Para mim, isso é fundamental em todo processo literário. As pessoas à minha volta são sempre fontes da minha inspiração, fontes que me permitem ter acesso a várias munições para combater os problemas enraizados na sociedade... Como disse Conceição Evaristo, na famosa obra Olhos d’Água: “Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer”. Essa migração se deve na luta contra todas as formas de opressão social e política tanto na Guiné-Bissau, quanto no Brasil, um país que agora chamo de “meu”... Também essa migração reforça o nosso espírito de resistência ao colonialismo que foi combatido no passado, mas ainda se manifesta aos olhos nus... Nós resistimos todas as tentativas de nos matar! Estamos vivos e com sangue nas veias!  A potente fala da nossa mais velha, Conceição, nos convida a ser nós mesmos e lutar contra os inimigos do presente que todos nós conhecemos...  Estes são alguns pontos que acho pertinentes na busca de promoção da paz e de justiça social e igualitária para todos! A literatura tem o poder de preencher os vazios existentes. Por essa razão, eu assumo o compromisso de lutar contra todas as formas de opressão. Acredito no poder mágico das palavras! É por meio da palavra que encontro a força para lutar contra diversos tipos de depressões da vida! E ela, a palavra, está em todos os lugares com o escudo da esperança!

ELW: Como você percebe, ao longo dos últimos anos, a recepção de suas obras no Brasil?

EB: Eu lamento muito a situação que se encontra a nossa literatura no Brasil e nos países lusófonos. Comparando a nossa literatura com as outras literaturas da comunidade lusófona, ela caminha em passos lentos. A literatura guineense, ainda, é pouco lida e pouco pesquisada no Brasil. Foi essa a razão principal que me levou a dissertar sobre a história da literatura na Guiné-Bissau, no meu mestrado. A minha intenção foi divulgar a história literária guineense, a cultura e buscar mostrar a riqueza das tradições e os costumes locais. E como essas tradições têm grandes influências nos textos de escritores guineenses. Nos últimos anos, creio eu, as minhas obras têm ganhado asas, voando para diversos cantos do Brasil. Às vezes, me emociono com os trabalhos sobre elas que me chegam. Como, por exemplo, trabalho de Rayron Lennon Costa Sousa, intitulado: “ O lugar da memória em três contos da literatura infantojuvenil guineense contemporânea: entrelaçamento entre história, literatura e memória na obra a história que minha mãe não me contou e outras histórias da Guiné-Bissau (2019), de Eliseu Banori. Uma leitura que recomendo a todos os apaixonados da literatura guineense!  Acho que já estou colhendo os frutos da minha lavra. A literatura, nos últimos anos, tem me levado para vários cantos do Brasil e exterior, e aproveito todas essas viagens para contar histórias do meu povo, preenchendo, assim, o dito “espaço vazio”, quando se falava da literatura guineense nos anos 60.

ELW: Existe um projeto para a publicação de suas obras em Guiné-Bissau?

EB: Para ser sincero, até o presente momento não há um projeto que visa publicar minhas obras na Guiné! Temos poucas editoras ainda na Guiné. Ku Si Mon, uma das editoras que vinha publicando séries de autores guineenses, está com grandes dificuldades em termos de recursos... Há um projeto, sim, de divulgação dos meus livros, por meio de lançamentos em algumas regiões do país. Por conseguinte, meus livros são mais lidos aqui no Brasil do que no meu próprio país. Meu sonho é que a nova geração de leitores guineenses conheça as minhas criações, e nelas se inspirem para suas próprias produções. E tudo tem um sentido quando vem da alma esses manifestos, pois tudo que eu escrevo traduz a vida real do meu povo. Embora o livro continue ainda a ser um luxo... Mas o luxo diante de muitos lixos no país não tem sido visto com bons olhos para cidadãos do bem.

ELW: Em 2019, você defendeu a dissertação intitulada Pequena longa viagem da literatura guineense, no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da UFRJ, sob orientação da Professora Maria Teresa Salgado Guimarães e coorientação da Professora Moema Parente Augel. Sua reflexão é um contributo incontornável para o conjunto de pesquisas que tematizam aspectos do sistema literário da Guiné-Bissau. Poderia compartilhar os seus principais resultados alcançados com esse movimento intenso de pesquisa?

EB: Como havia dito, a literatura guineense teve um desenvolvimento tardio em comparação com outras literaturas da sua comunidade, como, por exemplo, a literatura angolana e a moçambicana. Mas é ela que nos exprime, sem dúvida, não as outras, como defendia Antonio Candido, escritor brasileiro. Tive sorte de ser orientado por duas mulheres fortes, amantes de todas as literaturas, principalmente a literatura africana de língua portuguesa. Tive a sorte de conhecer a Moema, uma das pesquisadoras pioneiras da literatura guineense. Poder contar com a sua dedicação fiel, nas leituras dos meus textos e sugestões dos assuntos a debruçar, é uma sorte que poucos pesquisadores da literatura guineense têm. Devo a elas todo o sucesso dessa pesquisa, que vem sendo usada como referências de muitos trabalhos acadêmicos dos estudantes de graduação das universidades brasileiras.  A falar verdade, essa pesquisa é uma grande contribuição para o enriquecimento cultural e histórico de um país recém independente. Há na internet várias pesquisas sobre a literatura guineense, mas, sem querer me gabar, a minha pesquisa carrega uma força e traz muitas coisas novas da história e da cultura do país. Além de tudo isso, ela contou com entrevistas de grandes referências da literatura da Guiné-Bissau. Por exemplo, em anexo há uma entrevista com Moema Augel, Tony Tcheka e Abdulai Silá, relatos destes sobre todo o processo literário no país, com certeza, ampliou e enriquece, sem dúvida, a bagagem cultural de quem pretende debruçar sobre as escritas literárias guineenses.

ELW: Vários de seus livros vieram a público por casas publicadoras brasileiras, como por exemplo, a Editora Magnífica (Rio de Janeiro), Editora Multifoco (Rio de Janeiro), Autografia (Rio de Janeiro), POD (Rio de Janeiro), Globinho (Rio de Janeiro), Nandyala (Belo Horizonte). Como têm construído essa articulação?

EB: Sim, todos os meus livros foram publicados nas editoras brasileiras. Já foram dez títulos, entre poesia, contos, crônicas, biografias e literatura infantojuvenil.  Na verdade, não tenho feito quase nenhuma articulação. Tive sorte de conhecer pessoas legais que acreditaram sempre no meu trabalho e construíram essa ponte para essas publicações. A minha primeira publicação, como outras, foi numa editora independente. Foi à direção da minha faculdade (UFRJ) que pagou parte do orçamento da obra. Em outras oportunidades, meus amigos me indicaram a editora, outros contribuíram para realização desses sonhos. Esse gesto foi se repetindo ao longo da minha carreira. Só tenho muito a agradecer essa amabilidade do povo brasileiro para comigo. Só a literatura pode despertar o mundo e colocar pessoas incríveis em nossos caminhos. Esse carinho e confiança que vim conquistando é tão bonito quanto um poema feito nas primeiras horas do canto dos pássaros nas noites de luar, em ilhas dos Bijágos.

ELW: Que autoras e autores do sistema literário de seu país, em alguma medida, lhe inspiram em seu fazer literário enquanto poeta e escritor de ficção?

EB: A minha paixão literária se completou com o amor das obras de autores guineenses que eu tive acesso, enquanto leitor do Centro Cultural Português e  Centro Cultural  Brasil e Guiné Bissau, em Bissau. Durante muito tempo, quando era ainda um adolescente, estudante do liceu e admirador de livros de literaturas, frequentava esses espaços. Foram nesses espaços que tive encontro com a literatura guineense. Confesso que todas as publicações literárias da década 90 inspiraram o meu fazer literário. Mas, por outro lado, confesso que Tony Tcheka, Odete Semedo, Conduto de Pina, Filinto de Barros, Domingas Samy, Aguinello Regala e Abbulai Sila despertaram mais a minha forma de ver o mundo, a partir da Guiné! Seus escritos têm uma força tremenda e desperta muito interesse de quem deseja conhecer melhor os problemas sociais guineenses. Mas confesso que, hoje, sigo a linha temática de Abdulai para expressar, assim, o que me queima lá no fundo da alma...

ELW: Os países de língua oficial portuguesa, especialmente em África, vivenciam situações de tensionamento do idioma português com línguas autóctones e a existência do crioulo. Em suas obras você contempla uma diversidade linguística. Com quais objetivos?

EB: Foi a grande verdade. Há um forte tensionamento do idioma português com as línguas locais nas produções literárias de grande parte dos escritores de língua portuguesa. No caso da Guiné-Bissau, essa preocupação se deve na luta de preservar a nossa identidade cultural, os costumes e tradições orais. Durante a luta de libertação nacional, por exemplo, a língua crioula serviu de grande base para construção e edificação de enfrentamento ao colonialismo. Crioulo era usado como uma das ferramentas para resistir à colonização! Não foi por acaso que, em 1989, Benjamim Pinto Bull publicou Filosofia e sabedoria, O crioulo da Guiné-Bissau. Em sua tese, Pinto Bull defendeu claramente a sua preocupação com a preservação da língua e sua importância para os guineenses, um trabalho pioneiro que relata a vivacidade da nossa língua. A meu ver esse tensionamento, como você bem disse, tem como objetivo enriquecer a nossa língua e torná-la mais rica e expressiva. No meu caso particular, é no crioulo que eu busco a força e asas para lançar longos voos, no tocante a criação literária. Também é no crioulo que procuro encontrar certas palavras para expressar meus sentimentos e entender as raízes das diversidades culturais do meu povo. Viva a língua crioula!  

ELW: Em seu romance As almas em agonia o narrador sente saudades de uma Bissau “caótica”. De alguma maneira essa narrativa esteve presente em sua vivência como guineense?

EB: Eu comecei a escrever Almas em agonia em março de 2015, quando as minhas férias de um mês na cidade de Bissau. Na verdade, esse livro foi um dos livros mais doloridos que escrevi. Eu imaginava chegar à cidade de Bissau encontrar amigos, familiares e matar saudades de lugares que me viu nascer. Não reparar em nada que me deixasse triste. Mas a cada dia em todos os lugares que eu ia, sentia grande tristeza de como estava/está meu país. Havia uma forte inquietação me perseguindo: um descaso na saúde, na educação e a juventude, a força motora do país, se entregando aos vícios, por conta do desespero de falta emprego e a falta de oportunidade de bolsas de estudos. Foi um grande choque. Foi a partir daí que decidi tirar alguns dias para escrever esse romance, inspirado em tantas histórias de amarguras que ouvi contar... De certa forma, essa narrativa esteve presente em mim, pois, durante muito tempo, eu tive esse desejo de ter uma vida boa dentro do meu país, ou conseguir uma bolsa de estudo para estudar fora. Mas o sistema havia fechado todas as portas. Identifico-me em certos pontos de vista com o Preto... Na verdade, “as almas em agonia” é um retrato da miséria e angústia vivida ao longo dos anos pela juventude guineense – um desencanto, em outras expressões, com a vida miserável que a juventude guineense tem vivido ao longo dos anos...

ELW: A moçambicana Paulina Chiziane se auto intitula como “contadora de histórias”. Em A estória que minha mãe não me contou e outras histórias da Guiné-Bissau você subverte a tradição oral e adota, na narrativa, não o olhar do mais velho e sim, o olhar dos “pequenos”. Como você vê essa apropriação da tradição da contação de histórias pelas literaturas africanas de língua portuguesa?

EB: Em A estória que minha mãe não me contou e outras histórias da Guiné-Bissau, a meu ver, contou com a narrativa a partir do olhar dos mais velhos, olhar das crianças, das mulheres. Cada história traz um mundo diferente, e busca mostrar a nossa ferida: uma sociedade que ainda não está disposta a tratar suas chagas, contudo fala muito das feridas dos outros. O livro não adotou somente a narrativa dos “pequenos”, como você referiu, mas traz também uma mistura que retrata a nossa sociedade, a nossa maneira de viver. No Conto “25 de dezembro”, por exemplo, procurei mostrar a grandeza dos pensamentos dos “pequenos”, de quebrar certos tabus de que só os velhos são portadores de sabedorias. Sim, os mais velhos em sociedades africanas, possuem experiências, frutos de longo período de vivência. Mas, as crianças fazem parte da roda de fogueira, e elas também têm acesso ao conhecimento... Nesse processo de ouvir, elas também compreendem a vida. Esse conto aponta outras realidades, trazendo, assim, o mundo das crianças. Na verdade, o conto faz uma denúncia de como os valores estão se invertendo. A fome de ganhar dinheiro, por meio da política, é motivo dessa subversão dos valores... As pessoas estão se vendendo por nada... As crianças, em suas “inocências”, são puras e carregam o verdadeiro sentido da dignidade humana.

ELW: Gostaria de acrescentar algum aspecto para essa entrevista, por favor?

EB: Agradeço imensamente seu gesto e amor às literaturas africanas de língua portuguesa. Escrevo manifestando minha infinita gratidão pelo seu desempenho em promover as nossas histórias e culturas...  Espero que a literatura guineense possa ganhar asas no Brasil... Mas isto só é possível quando seus escritores são convidados com frequencia para eventos literários realizados no país. Só é possível ganhar asas quando há interesse de pesquisas e a procura dessas obras literárias nas livrarias brasileiras. Só é possível quando os pesquisadores visitam o nosso país e enfrentam  de perto com o que a escrita não alcança... Eu celebro a nossa literatura por inúmeros motivos. Mas destaco que, apesar de  ela ter tido um desenvolvimento tardio,  os escritores guineenses mantiveram em suas escritas a força cultural dos nossos povos e o gosto da nossa língua crioula. São aspectos que a diferenciam de todas  as outras literaturas. Esses aspectos são tão profundos e significativos, e representam toda a nossa forma de viver e de existir tanto em um mundo imaginário quanto em um mundo real! Esses aspectos, a meu ver, me parecem refazer caminhos diferentes de outros já andados em tempos sombrios...  A você que está lendo essa entrevista eu digo que: a literatura é o poder e a força que nos desperta a combater os males existentes no mundo... Ela também é água que é capaz de furar as rochas, penetrando a nossa alma... Beba da nossa história e culturas, contribuindo, assim, na luta que só a palavra não é capaz de dar conta... 

NOTAS

1 Concedida em 18 de janeiro de 2023. Originalmente publicada na Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade – Igarapé, Porto Velho – RO, v. 15, n. 4, p. 259-268, 2022.



[i]
Doutora e Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora Substituta na Universidade Federal de Viçosa (campus Florestal). Pesquisadora filiada a ABPN e a AMPIC. Integrante do GEED – Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas. Colaboradora do Projeto literÁfricas do portal literafro da UFMG. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. . 

[ii] Professora Adjunta no Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB, Campus Malês, Bahia. Doutora e Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. É autora de A palavra em preto e branco - poesia (2017),  Não é preciso ter útero para ser mulher - contos (2020) e Os caras da casa de vidro - romance (2022). Participante dos  Cadernos Negros, números 42 e 43. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. .

[iii] Doutor em  Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Pós-doutor em Estudos Literários (FALE/UFMG). Bibliotecário. Coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (EV/UFMG). Integrante dos grupos de pesquisa GEED/CNPq e NERSI/ECI/UFMG. Colaborador do Projeto literÁfricas do portal literafro da UFMG. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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