“PERTO DO FRAGMENTO, A TOTALIDADE”[1]: PERCEPÇÕES SOBRE A LITERATURA MOÇAMBICANA - ENTREVISTA COM O PESQUISADOR E INTELECTUAL FRANCISCO NOA[2]

Luciana Brandão Leal[i]

FRANCISCO NOA é intelectual, professor, crítico literário e ensaísta moçambicano, pesquisador reconhecido nos centros de pesquisas do Brasil, Portugal e África. Doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, pela Universidade Nova de Lisboa (2001).  Professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane (Maputo), professor convidado nas Universidades de Montes Claros (Brasil), Santiago de Compostela (Espanha), Genebra (Suiça), Abidjan (Costa do Marfim), Agostinho Neto (Angola). Dedica-se à investigação de temas como a colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, pensando a Literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico a partir dela. Autor dos seguintes livros: Literatura Moçambicana. Memória e Conflito (Imprensa Universitária, 1997); A Escrita Infinita (1ª ed., Livraria Universitária, 1998; 2ª edição, Ndjira, 2013); Império, Mito e Miopia: Moçambique como Invenção Literária (Caminho, 2002) e (Kapulana, 2015), A Letra, a Sombra e a Água (Texto Editores, 2008) e Perto do Fragmento, a Totalidade: Olhares sobre a literatura e o mundo (Kapulana e Ndjira, 2012); Uns e outros na literatura moçambicana: ensaios, Kapulana (2017). Francisco Noa é uma referência importante para os pesquisadores e professores que buscam pressupostos teóricos e críticos sobre a literatura moçambicana, sobretudo, a literatura do período colonial, além de referências sobre a literatura transnacional e o conceito de literatura mundo. Esta entrevista foi concedida à pesquisadora Luciana Brandão Leal, professora da Universidade Federal de Viçosa, bolsista de pesquisas pelo CNPq e cientista FAPEMIG, estudiosa sobre as literaturas africanas de língua portuguesa, sobretudo da produção poética desses países.

LBL: Em seus estudos sobre o cenário “colonial”, você ressalta como esse adjetivo é carregado de significados, visto que encerra um triplo horizonte: do colonizado, do colonizador e do que resulta da síntese entre ambos. Por favor, apresente-nos suas reflexões sobre como a situação colonial representa “uma verdadeira armadilha histórica, da qual nem um nem outros saíram incólumes”. (NOA, 2015, p. 44).

F.
N: Toda a história da humanidade é um lugar de encruzilhadas, quer pelas experiências existenciais, individuais e colectivas que aí se desenrolam, quer pelos imaginários que se cruzam e se reformatam. Tudo isto, tanto num ambiente de convivência harmoniosa, como de confrontação. A palavra “colonial”, que deriva do étimo latino “colere”, significa ocupar. Se é verdade que nos atemos normal e justificadamente à ocupação física de um território, na presença ou não de um determinado povo autóctone (não nos esqueçamos, por exemplo, que as ilhas do que hoje conhecemos como Cabo Verde eram territórios inóspitos e inabitados), o que torna verdadeiramente complexo, perturbador e desafiador o entendimento da colonização é quando nos fixamos na sua dimensão e nos seus impactos mentais que não só se prolongam indefinidamente como são de uma profundidade inquietante e alienante, tal como ilustra o narrador/protagonista de Junto ao Mar (Cavalo de Ferro, 2022) de Abdulrazac Gurnah: “Ansiávamos por erudição, algo que venerávamos e que os ensinamentos do Profeta nos incitavam a venerar, porém havia um certo encanto naquele tipo de educação, que representava uma abertura ao mundo moderno. Julgo que secretamente admirávamos os Britânicos, pela audácia da sua presença tão longe de casa, por ditarem as regras com uma segurança tão grande e por saberem tanto sobre como fazer as coisas importantes: curar doenças, pilotar aviões, fazer filmes. Talvez a palavra «admiração» não seja a mais rigorosa para descrever o que me parece que sentíamos na altura, pois tratava-se mais de nos submetermos ao seu domínio sobre a nossa existência material, de uma submissão mental e física, de uma rendição à sua deslumbrante autoconfiança” (pp. 28, 29). Um quadro similar, aliás, já nos tinha sido avançado, por exemplo, pelo nigeriano Chinua Achebe, em Home and Exile (2000).

LBL: Em seu livro Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária (2015), você aponta que para se definir a literatura da colônia, deve-se levar em conta o processo histórico (a colonização) e um sistema (o colonialismo), “ambos no centro de uma contestação nem sempre inequívoca” (p. 22). Como você define o impacto desses pilares na formação de um sistema literário moçambicano e suas especificidades?

F.N: É preciso assumir que a literatura moçambicana, enquanto sistema literário moderno, com menos de 100 anos de existência, institui-se sobretudo como um fenómeno de escrita, mesmo tendo em conta o seu inquestionável substrato assente na oralidade. Como sabemos, ainda hoje, os povos africanos são dominantemente ágrafos. Por exemplo, mais de 40% da população moçambicana é ainda analfabeta. E o analfabetismo não se verifica unicamente em relação à língua portuguesa, língua do colonizador, mas também nas cerca de vinte línguas originalmente africanas e de raiz bantu. O colonialismo, como sabemos, é responsável pela introdução, forçada é verdade, da modernidade, em África e noutros cantos do mundo, através da escolarização, das tecnologias, da ciência, da cultura, das artes, dos valores éticos e religiosos que se tornarão dominantes. A literatura ocidental, no geral, e a literatura colonial, em particular, com África e os Africanos como motivo e tema literários, sempre por debaixo de um viés eurocêntrico, tiveram um papel importante não só a nível dos pilares (estéticos, temáticos, ideológicos) que irão sedimentar a mentalidade das elites emergentes, mas também das suas produções e opções estéticas e artísticas. Por um lado, em relação à literatura colonial, trata-se sobretudo de, partindo da mesma realidade, inverter a perspectiva, colocando o protagonismo nos africanos e reapropriando-se da voz que lhes tinha sido usurpada. Por outro, o sistema literário moçambicano, à imagem de outros sistemas africanos, vai inspirar-se nos movimentos e correntes estéticos em voga no Ocidente, nos séculos XIX e XX, como o romantismo, realismo, modernismo, futurismo, surrealismo, neo-realismo. O espírito de ruptura, a cultura do novo, a necessidade de afirmação e a afirmação das subjectividades individuais e colectivas que as matiza terão uma profunda recepção na literatura que se começa a fazer em África, muito antes das independências políticas.

LBL: Como sabemos, sob a forma escrita, a produção literária de Moçambique se sedimentou, a partir da década de 1940, por meio de periódicos organizados e publicados por poetas, escritores e intelectuais. Em sua opinião, quais são os marcos mais representativos da literatura moçambicana veiculada em periódicos no período pré-independência?

F.N: Além das referências estéticas a que antes nos referimos, toda a ambiência cultural, sociopolítica e filosófica despoletada pelas duas Grandes Guerras e que irá marcar a orientação do mundo na primeira metade do século XX, teve também um enorme impacto na geração que, sobretudo nas décadas 40 e 50, em Moçambique e nos restantes territórios africanos, ainda sob dominação colonial, estará por detrás daquilo que hoje denominamos literatura moçambicana. A escrita surge não só como uma arma de contestação ao sistema dominante, mas também de reivindicação de um determinado território sociocultural e simbólico. E será nas páginas dos jornais, revistas e suplementos culturais, alguns deles umbilicalmente ligados ao sistema colonial, como o Jornal da Mocidade Portuguesa, que veremos emergir não só uma desafiadora consciência literária, mas sobretudo nacionalista. Para isso também contribuem os ideais pan-africanistas, do movimento da negritude, a irreverência do jazz, do blues e do cinema vanguardista europeu e norte-americano. O Brado Africano (1918-1974), apesar das irregularidades e descontinuidades, assumiu-se desde o início como um espaço de contestação e de reivindicação cultural, política e cívica. Na revista Itinerário (1941-1955), publicação mensal de “Letras, Artes e Ciência”, onde desfilam, entre outros, Virgílio de Lemos (Duarte Galvão), Orlando Mendes, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Aníbal Aleluia, Rui Nogar, Fonseca Amaral, são ineludíveis os sinais de que uma nova era se abria para a literatura que se até aí se fazia em Moçambique. Ainda em relação ao Itinerário, este periódico, além de ter dado um tratamento privilegiado ao movimento neo-realista português com a divulgação de textos e de entrevistas de figuras com Alves Redol, Mário Dionísio, Soeiro Pereira Gomes, Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, interessar-se-á, entre outras, por temáticas universais (os efeitos da 2ª G.G., a questão judaica, a grave crise social e económica, a guerra fria, etc.) e locais (a situação dos negros em Moçambique, as desigualdades sociais, o nacionalismo, o racismo, etc). Por sua vez, a edição única do Msaho (1952), com forte pendor nacionalista, combativo e reivindicativo vai acabar por confirmar essa percepção atestada por vários estudiosos sobre a importância das publicações culturais e literárias, em Moçambique, muito antes da independência, facto que concorrerá não só para a emergência de uma consciência nacionalista, mas no desenvolvimento de uma literatura que não só será expressão de revolta, mas também de denúncia das arbitrariedades coloniais, de afirmação identitária e de projecção utópica de uma nação por vir. Veja-se, por exemplo, “Poema do Futuro Cidadão” e “Sia-Vuma”, de José Craveirinha, ou “Poema da Infância Distante” e “Poema para um Amor Futuro”, de Noémia de Sousa.

LBL: Você define que houve, no cenário colonial, a fase “cosmopolita” da literatura moçambicana. Qual é o impacto dessa fase sobre a percepção estética e discursiva na produção literária colonial? Quais são os escritores que, na sua opinião, melhor a representam?

F.
N: Essa é uma fase de maturidade e de maior complexidade da literatura colonial, em relação às anteriores (fase exótica e fase doutrinária), quer por motivos conjunturais, devido às transformações sociopolíticas que se assistiam em várias partes do globo e as pressões internacionais para que Portugal abandonasse os territórios ocupados, quer por motivos intrínsecos à evolução estética, artística e cultural a que a literatura colonial não ficará alheia. Por outro lado, nos finais dos anos 50 e inícios dos anos 60 cresce o movimento de contestação à presença colonial em África, com o crescente surgimento de contestação ou dos movimentos de libertação e das lutas nacionalistas que começaram a levar vários territórios à independência política, casos do Sudão (1951), Marrocos e Tunísia (1956),  Gana (1957), Guiné Conakry (1958), Camarões (1960), Senegal (1960), Madagáscar (1960), Tanzania (1961/1964), Zâmbia (1964), etc. Por outro lado, agudizavam-se as tensões internas, sobretudo nas capitais das colónias, onde havia uma maior consciência nacionalista, um sentido existencial mais cosmopolita, uma burguesia colonial mais consciente do seu papel histórico e uma maior sintonia com as correntes filosóficas (caso do existencialismo), estéticas e culturais em voga sobretudo na Europa. É, pois, nesse contexto que emergem e se afirmam autores mais identificados com uma mundividência europeia e alguns chegando a ser mesmo críticos do sistema colonial, como Guilherme de Melo, Agostinho Caramelo, Ascênsio de Freitas, Eduardo Paixão, João Salva-Rey. Em alguns desses autores, a ambiguidade que domina os seus universos representacionais acaba por ser reveladora das profundas e irreversíveis mudanças que aconteciam nas antigas colónias, e prenúncio eloquente de uma nova era.

LBL: Em seus estudos sobre o Oceano Índico e a transnacionalidade, você afirma que esse Oceano possui reconhecida importância vital e multilateral para os países por ele banhados, incluindo Moçambique. Como o Oceano Índico figura como tema na literatura moçambicana e, sobretudo, como fator estruturante da escrita poética desse país no período pré e pós-independência?

F.N: Num texto da Tânia Macedo, intitulado “Visões do mar na literatura angolana”, publicado na Via Atlântica, em 1999, a estudiosa brasileira analisa, com penetração, a relação dilemática que os angolanos, através da literatura, tiveram com o mar ao longo do tempo. Segundo ela, a justificativa passava, primeiro, pelo facto de ter sido através do mar que os colonizadores europeus aportaram às terras africanas. Segundo, seria através do mar que um número indeterminado de escravos foi violentamente levado de África para a América e, nalguns casos, para a Europa. Todo este trauma histórico, não explicitamente assumido, irá repercutir-se, e de forma profunda, a nível do imaginário colectivo, mas muito particularmente a nível da produção literária. E é o que também encontraremos na literatura moçambicana. Se é verdade que, em muitos autores, o mar é praticamente inexistente, noutros, sobretudo os que elegem a Ilha de Moçambique como tema e motivo, a presença do Oceano Índico acaba por ser marcante. Não nos esqueçamos que quer geograficamente (Moçambique tem cerca de 2700 km de costa que permitem a ligação com vastos territórios banhados pelo Índico), quer historicamente, são vários os povos da Índia, China, Madagáscar, Comores, Seychelles, Ilhas Reunião, Tanzânia, Zanzibar, Maurícias, entre outros, com os quais Moçambique foi mantendo profundos laços históricos e culturais seculares, quando não milenares. Essas ligações serão, pois, resgatadas, antes da independência por autores como Orlando Mendes, Rui Knopfli, Virgílio de Lemos, em cuja poesia pontifica sobretudo a Ilha de Moçambique, irrecusável encruzilhada entre África, Ásia e Europa. Depois da independência, em 1975, teremos nomes como Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Júlio Carrilho, Adelino Timóteo, Sangare Okapi, Guita Jr, entre outros, explorando poeticamente os diferentes matizes que o mar apresenta nos imaginários individuais e colectivos. Em relação aos últimos três autores, o Oceano Índico surge como um espaço de evasão e de reafirmação cosmopolita da literatura e do imaginário nacionais.

LBL: Em texto escrito em 2017, você afirma que o projeto concebido na década de 1980, após os conflitos que levaram à libertação política de Moçambique é “dominado por um grande fervor revolucionário que contaminará as artes, a literatura moçambicana, em particular, e que fará com que haja uma produção maciça de textos literários” (2017, p. 26). Como esse apontamento incide sobre a formação do projeto literário do país no período pós-independência?

F.N: A independência de Moçambique foi um projecto que esteve muito além dos movimentos de libertação, que a tornaram realidade. Os povos colonizados, desde sempre, tiveram essa aspiração, sobretudo quando foi aumentando a sua consciência cívica e nacionalista, nos anos 20 do século XX. Aspiração que foi ganhando força, com todas as dinâmicas, a que fizemos referência antes, de ordem sociopolítica, cultural, filosófica, artística e que foram de certo modo aceleradas pelas duas Grandes Guerras. Não admira, pois, que poetas e escritores, sobretudo a partir dos anos 40, se tenham envolvido quer em acções cívicas de questionamento do regime colonial, através da escrita ou de actos concretos como o célebre manifesto, dos anos 50, a pedir a independência de Moçambique e redigido por Noémia de Sousa, José Craveirinha, Ricardo Rangel e Dolores Lopez. Mas será através da poesia, afinal essa eterna “arma carregada de futuro”, como nos ensina o poeta espanhol Gabriel Celaya, que a reivindicação da liberdade irá, por exemplo, levar Noémia de Sousa a ser exilada, José Craveirinha, Rui Nogar, Luís Bernardo Honwana, e o pintor Malangatana a serem enrcarcerados pelo regime opressor. Também já nos referimos antes à  vocação utópica e profética dessa literatura e que confluirá na independência política em 25 de Junho de 1975. E, de imediato, se inicia todo o movimento, inspirado pelo espírito de enorme e envolvente entusiasmo revolucionário que então se vivia, que trará ao de cima tanto as emoções do momento há muito reprimidas, como uma apetência de laivos totalitários de tudo submeter às lógicas políticas e ideológicas emergentes, das quais a cultura, em geral, e a literatura, em particular, não escaparão. O que irá prevalecer, mesmo assim, mais do que o compromisso estético com a revolução, é um profundo compromisso literário com o país na sua diversidade, com uma arrojada e desafiadora liberdade criativa e com os grandes ideais que ajudarão a literatura moçambicana, sobretudo a partir dos anos 80, a afirmar-se e a projectar-se dentro e fora do país.

LBL: Lourenço do Rosário nos diz que, em Moçambique, as tradições das narrativas orais são “o reservatório dos valores culturais de uma comunidade com raízes e personalidade regionais, muitas vezes perdidas na amálgama da modernidade” (ROSÁRIO, 1989, p. 47). Como a elaboração de narrativas fundadas na oralidade contribui para que Moçambique tenha manifestações literárias tão relevantes no cenário literário dos séculos XX e XXI?

FN: A oralidade é, no fundo, o pilar estruturante do substracto cultural dos africanos, em geral, e dos moçambicanos, em particular. E é preciso perceber que são várias as dimensões da oralidade (rural, suburbana e urbana) que serão recriadas pela literatura moçambicana. Aliás, tem havido um pendor recorrente de associar a oralidade à tradição, como se cada uma delas fosse única e rígida na sua essência. Primeiro, existem várias oralidades e existem várias tradições, tendo em conta a pluralidade e diversidade étnico-cultural e linguística de Moçambique. Segundo, nem a oralidade, nem a tradição são estáticas, pois já teriam desaparecido. Terceiro, sendo a literatura um fenómeno de escrita, por mais que ela se inspire na oralidade, esta aparece sempre como algo representado, como um exercício de mimesis, mas nunca é a oralidade tout court, pois esta tem outros dispositivos apropriados para se manifestar como ela realmente é. Já Roland Barthes dizia, a propósito da representação, em literatura, que ela é no essencial uma aspiração, uma utopia, pois enquanto a realidade na qual estamos mergulhados é multidimensional, a linguagem literária é unidimensional. Mesmo assim, a presença dessas oralidades é muito poderosa nas literaturas africanas. Já nos referimos ao facto de as sociedades africanas, em pleno séc. XXI, nesta contemporaneidade digital, permanecerem estruturalmente ágrafas. Além da sedução que elas exercem sobre os autores, quase todos eles visceralmente conectados ao meio que os inspira e de onde emergem as suas obras, têm esta dimensão estruturante, no sentido de que não só o seu quotidiano, bem como a sua formação dificilmente poder ser indissociável dos universos da oralidade, como bem afirma e defende Lourenço do Rosário. Esses universos acabam por ser recriados naturalmente em João Dias, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, Carneiro Gonçalves, Mia Couto, Lília Momplé, Ungulani Ba Ka Khosa, Aldino Muianga, Suleiman Cassamo, Paulina Chiziane, Clemente Bata, Lucílio Manjate, entre outros.

LBL: Uma de suas afirmativas conhecidas é a de que, até os finais da década de 1980, “Moçambique se afirmou, sobretudo, como pátria de poetas” (NOA, 2017, p. 22). Apresente-nos, por favor, exemplos de autores e obras que são, não sua opinião, incontornáveis, nas diversas etapas do pós-independência, para o leitor de poesia moçambicana.

F.N: Talvez a minha afirmação peque por limitante. É verdade que, em termos formais, em matéria de disposição do género, a poesia tem tido, desde sempre na literatura, uma enorme presença e pujança. O que podemos verificar ao longo da trajectória da literatura moçambicana é que o processo iniciático em si se tornará a marca criativa de muitos deles, isto desde Rui de Noronha até aos nossos dias, onde a diversificação do género é muito mais expressiva. Temos estado a referir-nos ao poder da oralidade nos processos formativos e vivenciais dos escritores em que efetivamente os actos de ouvir e contar estórias intervêm poderosa e naturalmente na identidade de escrita de muitos desses autores. Se é verdade que Moçambique é um país de poetas, é-o também, e de forma significativa de contistas. Quer em relação aos poetas (caso emblemático de José Craveirinha cuja poesia tem assumidamente uma toada narrativa), quer em relação aos romancistas ou os que pretendem sê-lo, a vocação da narrativa curta é preponderante. Tais são os casos de Mia Couto, Aldino Muianga, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleiman Cassamo, Hélder Muteia, Isaac Zitha, ou mais modernamente, além dos já referidos,Clemente Bata e Lucílio Manjate, temos Hélder Faife, Pedro Pereira Lopes, Andes Chivangue, Dany Wambire e uma série de novos nomes que vão emergindo dos prémios literários dos últimos quinze, dez anos, como promessas de bons escritores.

Em termos de poesia, no entanto, não podemos deixar de mencionar, no pós-independência, nomes que se destacam como Luís Carlos Patraquim, Sebastião Alba, Heliodoro Baptista, Jorge Viegas, Eduardo White, Filimone Meigos, Nelson Saúte, Armando Artur, seguidos dos já referidos Guita Jr e Adelino Timóteo, e mais recentes Eusébio Sanjane, Mbate Pedro, M.P. Bonde, Álvaro Taruma, Leo Cote, entre outros. Há, nesta afirmação da poesia, vozes femininas relevantes como Lica Sebastião, Sónia Sultuane, Hirondina Joshua, Melita Matsinhe, Deusa d´África. Desta geração, destaque deve ser dado a Virgília Ferrão que investindo apenas na narrativa vai produzindo obras instigantes. Bento Balói, mais virado para a criação romanesca, é também outro nome a reter.

LBL: Seu último livro tem como título a provocação: Uns e Outros na Literatura Moçambicana (2017). Como a literatura cumpre a importante função de (con)formar uma “malha identitária” em seu país?

F.N: Moçambique é seguramente uma expressão suprema do que Mary-Louise Pratt (1991) denominou de “zona de contacto”. Não é possível conceber ou analisar este país, independentemente da perspectiva adoptada, sem ter em conta as suas múltiplas e diversificadas intersecções decorrentes da sua história e da sua localização geográfica. Trata-se de um país verdadeiramente multicultural, multiétnico, multilinguístico, multirracial e mesmo existindo clivagens e desequilíbrios internos, ele é em si uma negação de todas as tentativas de uma história e de um pensamento únicos, de monopólio identitário, de miopia em relação à diferença, seja ela política ou de qualquer outra natureza. E o que a literatura fez, faz e fará sempre, afinal toda a cultura e arte em geral, é celebrar toda essa pluralidade e diversidade que muitos teimam em não perceber. Daí a ideia da malha identitária.

LBL: Tomamos uma referência das pesquisadoras Tânia Macedo e Vera Maquêa, que apontam o trabalho de escritores ressaltando que eles são “inventores da moçambicanidade” (MACÊDO; MAQUÊA, 2007, p. 24). Como você avalia, no século XXI, esta (re) construção da ideia de moçambicanidade?

F.N: Se a ideia de moçambicanidade foi em algum momento territorializado, falava-se muito em raízes, ou mesmo politizado, não tenho dúvidas que é a sua dimensão cultural que deve sobrepor-se a todas as outras. E é aí onde faz todo o sentido a colocação da Tânia e da Vera. Daí que a reconstrução a que temos assistido com as novas vozes da literatura moçambicana, que no fundo é um exercício constante e que traduz a vitalidade de uma sociedade, de uma civilização, baseia-se curiosamente numa dupla circunstância: interna, que tem a ver com um certo desencanto em relação às difusas e controversas derivas do país que não consegue responder a muitas das aspirações desta geração, e externa, que é o facto de se associarem àquelas que são as grandes tendências do nosso tempo, seja do ponto de vista cultural e estético, seja do ponto de vista tecnológico, e que os fazem aspirar a uma cidadania cada vez mais global.

Notas

1]Publicado em originalmente em Leal, L. B. (2023). “Perto do fragmento, a totalidade”: percepções sobre a literatura moçambicana: entrevista com o pesquisador e intelectual Francisco Noa. Aletria: Revista De Estudos De Literatura33(2), 224–234. Recuperado de https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/44992

2 Título de livro publicado por Francisco Noa, pela editora brasileira Kapulana: Perto do fragmento, a totalidade: olhares sobre a literatura e o mundo (2012).

Referências

NOA, Francisco. Literatura Moçambicana: Memória e Conflito. Maputo: Imprensa Universitária, 1997.

NOA, Francisco. Império, mito e miopia. Moçambique como Invenção Literária. Portugal: Caminho, 1998/2002.

NOA, Francisco. A Escrita infinita. Maputo: Imprensa Universitária, 1998/2003.

NOA, Francisco. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. Lisboa: Caminho, 2002.

NOA, Francisco. Literatura Moçambicana: os trilhos e as margens. In: CALAFATE, Ribeiro. MENESES, Maria Paula (Orgs). Moçambique das palavras escritas. Porto: Edições Afrontamento, 2008.

NOA, Francisco. A letra, a sombra e água. Ensaios & Dispersões. Portugal: Texto, 2008.

NOA, Francisco. Perto do Fragmento, a Totalidade. Olhares sobre a literatura e o mundo. Maputo: Ndjira, 2014.

NOA, Francisco. Perto do fragmento, a totalidade: olhares sobre a literatura e o mundo. São Paulo: Editora Kapulana, 2015.

NOA, Francisco. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Editora Kapulana, 2015.

NOA, Francisco. Uns e outros na literatura moçambicana – ensaios. São Paulo: Editora Kapulana, 2015.

NOA, Francisco. Noémia de Sousa, a metafísica do grito, 2020. São Paulo: Editora Kapulana, 2016.

PRATT, Mary Louise. A crítica na zona de contato: nação e comunidade fora de foco. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/14665/13434 Acesso em 01/02/2023.


[i] Luciana Brandão Leal é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas. Atuou como investigadora visitante na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES de doutorado-sanduíche. Professora Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa (atuando no campus Florestal). Coordena projetos de pesquisa “Poesia moçambicana do século XX” e “Corpo e territorialidade em Maureen Bisiliat e Marcel Gautherot”, ambos registrados na Universidade Federal de Viçosa (2020-2022). Membro do grupo de pesquisas GEED – Grupo de pesquisas em estéticas diaspóricas, coordenado pela profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca. Integra a comissão editorial do literÁfricas. Possui diversos artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Autora dos livros Descolonizar a palavra: poesia moçambicana do século XX e Virgílio de Lemos: poesia em trânsito, em fase de editoração.

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