Entrevista com Inocência Mata[1]

Claudia Amorim[i]

Nessa breve entrevista que fizemos com Inocência Mata, professora e pesquisadora da área das literaturas africanas de língua portuguesa, da Universidade de Lisboa,  propusemos à professora um elenco de oito perguntas2 que consideramos essenciais para pensarmos os desafios que se impõem aos estudiosos dessas diferentes literaturas na atualidade. Dado o lugar consolidado que essas literaturas ocupam em instituições de ensino superior não só nos países falantes de português, como também em várias instituições de ensino superior no mundo, acreditamos ser essa entrevista de grande valia para todos os estudiosos que ensinam e pesquisam as literaturas africanas de língua portuguesa, bem como suas relações com os estudos culturais e a pós-colonialidade.

Inocência Mata é autora de dezenas de ensaios publicados em periódicos nacionais e estrangeiros e de vários livros sobre esse assunto. Entre as suas obras mais recentes estão: Polifonias Insulares: Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe (2010), Francisco José Tenreiro: As múltiplas faces de um intelectual (2010), Ficção e História na Literatura Angolana: o caso de Pepetela (2011), A Literatura Africana e a Teoria Pós-colonial: Reconversões (2013), A Rainha Nzinga Mbandi: história, memória e mito (2012), Discursos Memorialistas Africanos e a Construção da História (2018) – para além de obras em co-autoria de que destacamos os últimas: Pós-colonial e Pós-colonialismo: Propriedades e Apropriações de Sentido (2016, RJ, com Flávio García); Literatura-Mundo Comparada, Perspectivas em Português: Mundos em Português (2017, Lisboa, com Helena Carvalhão Buescu); Trajectórias Culturais e Literárias das Ilhas do Equador: Estudos sobre São Tomé e Príncipe (SP, 2018, com Agnaldo Rodrigues da Silva).

Com pós-doutorado em Estudos Pós-Coloniais na Universidade de Califórnia, Berkeley, é ainda membro do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, integra associações de especialidade como Associação Portuguesa de Literatura Comparada, a Association por L’Étude des Littératures Africaines (França), a Associação Internacional de Estudos Africanos (AFROLIC, Brasil) e a Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa (AILP-CSH). É Sócia Honorária da Associação de Escritores Angolanos (UEA), membro fundador da União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe (UNEAS), membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa – Classe de Letras, da Academia Angolana de Letras e Acadêmica Correspondente da Academia Galega da Língua Portuguesa. Tem recebido várias distinções, entre as quais o Prêmio FEMINA 2015, o Diploma de Mérito do Governo Regional da Ilha do Príncipe (2019) e o Doutoramento Honoris Causa pelo Cypress International Institute University (Lilongwe, Malawi).

Atua como professora visitante em diversas instituições, entre as quais a Universidade de Macau, em época recente. Já colaborou com Matraga em outras ocasiões e esteve algumas vezes em congressos, seminários e encontros em universidades brasileiras, entre as quais na UERJ.

Resta-nos fazer ainda uma última observação a respeito dessa entrevista. Em virtude da escolha feita pela pesquisadora, mantivemos em suas respostas a grafia do português empregada majoritariamente em Portugal, mesmo após o Acordo Ortográfico. Do mesmo modo, empregamos, nas perguntas elaboradas, a grafia adotada pelo Acordo Ortográfico, em razão de no Brasil já ser consensual o seu emprego em obras acadêmicas e literárias.

Revista Matraga - Prof. Inocência, gostaríamos de começar a entrevista pedindo-lhe para falar brevemente de si, de sua trajetória nas letras desde as suas primeiras experiências com os estudos literários em São Tomé e Príncipe até a sua inserção na Universidade de Lisboa, como docente e pesquisadora na área das Literaturas Africanas em Língua Portuguesa.

Inocência Mata: Não gosto muito de falar de mim. Nunca se é honesto quando se fala de si. Não propositadamente, mas por inevitabilidade…

Falarei do meu percurso. Não posso dizer que tenha tido “experiências com os estudos literários em São Tomé e Príncipe” – país onde nasci (na ilha do Príncipe) mas de onde saí bastante nova. Vivi também em Angola, de onde é também originária parte da minha família… A formação superior a que, julgo, se referem, fez-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), onde lecciono e onde desenvolvo investigação, integrada no Centro de Estudos Comparatistas, um centro FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia). Vivi no seio de uma família em que a leitura e a contação de histórias (pela minha avó materna mormente, de quem herdei o nome, mas não a sageza) faziam parte do quotidiano. É aqui, na FLUL, que começa a minha experiência na área, tanto como docente quanto como investigadora. E, já agora, pela mão do Prof. Manuel Ferreira, nome que hoje muitos que muito lhe devem querem omitir como fundador da área na Universidade portuguesa quando, no rescaldo do Golpe de Estado de 1974, foi permitido abrir-se uma disciplina de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (assim se chamava então a disciplina, o que já era uma grande conquista, pois a designação oficial era “Literatura Ultramarinas") na FLUL (quando ainda era Universidade Clássica de Lisboa). Fui sua aluna na 2ª metade dos anos 1980 e com ele aprendi, mais do que conteúdos, formas e afectos… Ele faleceu em 1992. E, facto importante, a sua biblioteca foi doada à FLUL, enriquecendo o acervo dos Estudos Africanos na Biblioteca da FLUL (o mesmo foi feito com as bibliotecas do Prof. Alfredo Margarido e Michel Laban, só para se saber).

Revista Matraga - Podemos dizer que a sua investigação na área das literaturas pós-coloniais, designadamente no que diz respeito às literaturas africanas de língua portuguesa, é marcada por pioneirismo ou pelo menos por certo pioneirismo. Acredita que os estudos pós-coloniais consolidaram-se nos meios acadêmicos de Portugal e dos países africanos de língua portuguesa? E em que sentido esses estudos contribuíram para uma nova visada sobre o ensino de literatura?

Inocência Mata: Não refiro essa minha actividade como pioneira… Talvez seja em Portugal, mas só porque aqui tudo chega com muito atraso, por negacionismos e outros vícios, mas não serei certamente a pessoa mais indicada para fazer essa avaliação…

Mas o meu interesse por esta questão surgiu quando pesquisava para a minha tese de doutoramento (1999-2001), e encontrava referências insinuando – explicitando, aliás – que as propostas teóricas sobre o pós-colonial, de origem anglo-saxónica (que até já estavam a ser questionadas por académicos do ex-império, na Índia, por exemplo), não se adaptavam ao mundo da língua portuguesa e às literaturas africanas, uma vez que o colonialismo português foi diferente. Mas na minha tese de doutoramento há uma perspectiva que já nem subscrevo porque ela revelava um entusiasmo sobre a(s) teoria(s) pós-coloniais que eu há muito perdi. E não apenas a minha tese: o meu tão citado ensaio, A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa 3, com muitas ideias que nem subscrevo já, também revelava esse entusiasmo. É que a teoria pós-colonial (na verdade, devemos dizer sempre no plural) é uma proposta teórica que permite estudar a eficácia extra-textual do texto literário, estudar o texto tendo em conta as relações internas de Poder que se mantiveram para além do colonial (relações de raça, etnia, classe, género, religião, região, cultura, enfim). E eu interrogava-me: quão coloniais não serão as actuais relações de Poder, que se perpetuaram para além das Independências políticas? E, inquieta como sou (incomodam-me as unanimidades e a paz intelectual), comecei, logo a seguir à tese, a questionar essas perspectivas, comecei a considerar essas propostas teóricas muito eurocêntricas, e achava que ajuda(va)m a perpetuar a hegemonia epistemológica do Ocidente – devo na verdade dizer que há um pequeno texto, antigo, Ella Shohat – li-o tarde, 10 anos depois! – que me despertou: “Notes on the Post-Colonial” (1992)4. E também os textos de Aijaz Ahmad, reunidos depois em Linhagens do Presente (2002)5, ideias temperadas com os questionamentos de Joseph Ki-Zerbo, não na perspectiva do pós-colonial, mas da colonização epistemológica, da dominação epistemológica – sobretudo em À Quand l’Afrique? (2003), traduzido em 2006 para a língua portuguesa, em Portugal e no Brasil, Para Quando, África? Estes são textos que me fizeram repensar o meu entusiasmo em relação a essas propostas tão aliciantes, não obstante continuar a considerar que se trata de um eficaz método de análise (é assim que considero a(s) teoria(s) pós-colonial/ais – como a dialéctica ou o estruturalismo: um método de análise) para se interpretar obras escritas sob o signo da dominação, seja na perspectiva do colonizado seja na do colonizador, num mundo globalizado em que apregoa(va)m o fim das ideologias. Penso que o estudo da literatura não pode ilidir essa nossa condição contemporânea.

Revista Matraga - O termo pós-colonial – associado à literatura – surge em meio ao contexto de descolonização. Contudo, na área da literatura o seu emprego encerra a problematização própria do fenômeno literário que não pode ser regulado por preceitos cronológicos. Acredita ter havido algum avanço na discussão desse conceito no meio acadêmico, no que diz respeito às literaturas africanas de língua portuguesa?

Inocência Mata: Sim, muito avanço. Primeiro porque desconstrói a ideia de que Independência política é sinónimo de descolonização – não é! A Independência é um acto político, a descolonização é um processo de pensamento que pressupõe desconstrução e questionamento de paradigmas, convicções e articulados epistemológicos para se perspectivar o mundo e se estudarem as relações a nível global e as produções culturais. Por isso faço uma diferença, para mim óbvia (mas parece que não tão óbvia assim) entre pós-independência e pós-colonial. Tenha-se em conta, a título de exemplo dessa necessária distinção, que a literatura colonial continuou a fazer-se depois do 25 de Abril de 1974 e depois das independências da colónias portuguesas de África – o romance Ilha do Meio do Mundo, de Fernando Reis, foi publicado em 1982; por outro lado, vejam-se, por exemplo, as obras que se publicaram nos 05 primeiros anos das independências (em Angola, em Moçambique, na Guiné-Bissau ou em São Tomé e Príncipe): obras claramente (ainda) nacionalistas, sem quaisquer questionamentos sobre os meandros do nacionalismo literário como ideologia igualmente monolítica. Note-se que Mayombe, por exemplo, publicado em 1980, foi-o após a autorização de Agostinho Neto porque se tratava de um romance que “fugia” ao cânone nacionalista…

Atrás falei dos questionamentos que empreendi após o meu doutoramento. Nesses questionamentos, duas questões me inquietavam: a primeira era essa perspectiva da excepcionalidade do colonialismo português, em relação ao colonialismo inglês (mas também o francês e o belga), que decorria/decorre da ainda hoje prevalecente visão sobre a bondade do colonialismo português, numa vinculação ideológica à teoria freyriana (do luso-tropicalismo) que ainda hoje seduz a intelligenzia portuguesa e configura o imaginário histórico português – com reflexos no ensino, nos manuais escolares, nas opiniões dos empresários da memória, enfim, nas relações com os africanos e os países africanos; a segunda questão tinha a ver com o facto de o pós-colonialismo e pós-colonial serem categorias que se pensa referirem apenas os países do ex-império, os países africanos no caso: ora, são tanto pós-coloniais os países e as produções artísticas do ex-império quanto os da ex-metrópole. E é nesse sentido que estudo a literatura portuguesa contemporânea, pois tanto são escritas pós-coloniais as de Pepetela, João Melo, Conceição Lima, Dina Salústio, Paulina Chiziane, Mia Couto, João Paulo Borges Coelho, Ungulani Ba Ka Kossa – ou Chinua Achebe, Ngugi wa Thiong’o, Amadou Kouruma, Ousmane Sembène – quanto as de Lobo Antunes, Manuel Alegre, Carlos Vaz Ferraz, Dulce Maria Cardoso, Isabela Figueiredo, Francisco José Viegas, Francisco Camacho ou Henrique Levy (para citar alguns exemplos)… Há que se instituir, assim, um viés comparatista para estudar as literaturas de países cujas histórias têm denominadores comuns – já não faz muito sentido o estudo da literatura portuguesa, por exemplo, sem pô-la a dialogar com as suas congéneres de língua portuguesa ou europeias, acho que é ter uma visão muito limitada, de um nacionalismo bacoco, que já não faz sentido num mundo tão intensamente globalizado quando este em que vivemos…

Revista Matraga - As literaturas africanas de língua portuguesa ganharam visibilidade para além dos países falantes do português. Essa visibilidade incidiu durante décadas em autores africanos já consagrados como Luandino Vieira, Pepetela, Agualusa, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Paulina Chiziane, Mia Couto para citar alguns. Para além da visibilidade promovida pelo mercado editorial, os estudos acadêmicos – em sua maioria – também se debruçaram mais detidamente nas literaturas cabo-verdiana, angolana e moçambicana, em detrimento das literaturas santomense e guineense. Acredita que hoje essa realidade tenha mudado, pelo menos nos meios acadêmicos? Tem havido dissertações e teses sobre escritores santomenses e guineenses nas universidades portuguesas? E nas africanas?

Inocência Mata: Começo pela última questão, “E nas africanas?”. Claro que nas universidades africanas estudam-se literaturas africanas, a começar pelas dos respectivos países – muita coisa está mal, é verdade, mas convenhamos! Só que nas universidades africanas (e nas escolas africanas de modo geral) também se estudam literatura portuguesa e literatura brasileira (podemos questionar que escritores se estudam – mas esse é outro problema) – o que não acontece nem em Portugal nem no Brasil! Faço aqui uma excepção: a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa! Lá, conseguimos, à excepção de cadeiras propedêuticas, organizar o plano curricular de forma a que os alunos estudem Literatura Angolana, Literatura Moçambicana, Literaturas Insulares, e não apenas numa unidade curricular – e até Literatura Colonial. Não é o ideal (por exemplo, gostaríamos de ter Literatura São-tomense, Literatura Cabo-verdiana, Literatura Guineense), mas é o que podemos fazer… Além de que os planos curriculares Bolonha nem sempre permitem muita coisa. Mas já é muito bom em relação a, por exemplo, quando me licenciei em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Ingleses: esta disciplina – Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – não era obrigatória, frequentei-a por interesse próprio (quem a leccionava era o Prof. Manuel Ferreira, como já referi); depois passou a ser obrigatória para os estudantes de “Estudos Portugueses” – um passo de cada vez, angariando solidariedades e cumplicidades…

Voltemos à primeira parte da questão: fala em “autores africanos já consagrados”. Pois bem: consagrados por quem?! O problema é esse: é que cita apenas autores consagrados pelas editoras portuguesas. Há muitíssimos outros autores que são publicados nos seus países, consagradíssimos, que o Brasil não conhece. Por quê? Porque a África que o Brasil conhece é a que a ex-metrópole quer que se conheça – não é necessariamente a que os africanos consideram mais importante. Eu já falei disso tantas vezes, em artigos publicados no Brasil, nos EUA, na Inglaterra, em Portugal – este foi, aliás, o tema do meu pós-doc na Universidade de Califórnia, Berkeley: “Beyond the Idealism of Literary Multiculturalism” – tantas vezes que, sinceramente, não me apetece falar disso… Na minha investigação pós-doc, em 2010, eu já me interrogava porque as pessoas, em Portugal e no Brasil, achavam “normal” a publicação de escritores maioritariamente brancos ou luso-descendentes (com algumas excepções, para confirmar a regra). Claro que ganhei logo os rótulos de beligerante e racista (mas é para o lado que durmo melhor, uma óptima expressão idiomática portuguesa, que adoro!). E então fui estudar isso, com pesquisa quantitativa – isso foi em 2010, de lá para cá as tais editoras só confirmaram as hipóteses da minha pesquisa, embora o panorama em geral seja melhor porque apareceram, interessantemente durante a crise, pequenas editoras independentes que permitiram outras vozes serem vocalizadas… E no Brasil, o “contradiscursivo” trabalho tem sido feito pela Editora Nandyala e pela Editora Kapulana (não conheço outros exemplos, quero acreditar que haja outros). E o que fazem? Vão aos países buscar outros escritores que não são conhecidos fora – em vez de se limitarem ao que é publicado em Portugal. E assim, agora respondendo directamente, tem sido possível os colegas brasileiros conhecerem outras vozes literárias de África que não exclusivamente as que vêm com o selo dos grandes grupos editoriais da ex-metrópole e são disseminadas pelas grandes editoras brasileiras. Neste sentido, em 2018 foi publicado um livro organizado por mim e por Agnaldo Rodrigues da Silva, professor da UNEMAT, Trajectórias Culturais e Literárias das Ilhas do Equador Estudos sobre São Tomé e Príncipe (publicado pela Pontes Editores, de São Paulo) em que vemos que há colegas atentos ao que vem acontecendo no mercado editorial “paralelo” de Portugal assim como o dos próprios países. E a ideia foi também tentar neutralizar a perificidade da literatura são-tomense. Gosto muito daquela afirmação de Antonio Candido referindo-se à literatura brasileira no seu livro Formação da Literatura Brasileira (1975), que já citei mais do que uma vez (embora discorde liminarmente dos adjectivos): "Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõe, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou compreensão"6.

Revista Matraga - Recentemente retornou de uma experiência docente na Universidade de Macau. Depois de ter passado quatro anos nessa instituição, o que poderia dizer-nos sobre essa experiência? De que maneira, o português e a expressão literária em língua portuguesa repercutem nos meios acadêmicos de Macau? E na academia, há bastantes estudos nesse âmbito?

Inocência Mata: Bem, esta questão é muito complicada. E contém melindres. Mas já não tenho idade para não falar sobre um assunto porque é melindroso (embora vá tentar responder com o maior cuidado). Esses quatro anos foram de grande decepção: quando fui, a convite da então directora do Departamento de Português (DPT) da Universidade de Macau (UM), a ideia era ajudar a promover o estudo holístico da língua portuguesa e suas produções artísticas com ênfase para a produção literária (no meu último semestre lá, Janeiro-Junho de 2018, leccionei um curso/ unidade curricular, para alunos de toda a UM, designada Contemporary Artistic Expressions in the Portuguese-Speaking World). Ora, fui percebendo uma resistência, consentida por aqueles que a deveriam contrariar, em relação ao estudo das culturas e literaturas dos países de língua portuguesa. A língua tem apenas uma finalidade: aprender a língua para fazer negócio! E isto numa Faculdade de Artes e Humanidades! Por exemplo, vim-me embora, quando não consegui contrariar que, durante três anos seguidos, se abrisse o Mestrado em Estudos Culturais e Literários (em Português) – leia-se o que disse a ex-directora do DPT/FAH numa entrevista há pouco tempo “Fernanda Gil Costa: ‘Universidade de Macau não tem interesse no português’”: https://hojemacau.com.mo/2019/06/24/fernanda-gil-costa-universidade-de-macau-nao-tem-interesse-no-portugues/ Cansei, não estava lá a fazer o que gostaria de fazer (ensinar culturas e literaturas dos países de língua portuguesa), tinha saudades dos meus alunos, do diálogo sobre o mundo, sobre as culturas, sobre os povos, sobre as humanidades, sobre a Humanidade! A minha FLUL precisava de mim – ou, pelo menos, eu precisava dela!

Por outro lado, gostei de ter tido essa experiência, gostei muito de Macau, dos amigos que fiz e das amizades que aprofundei, e da possibilidade de conhecer o sudeste asiático, que conheci quase todo. A experiência humana e cultural foi fantástica, com destaque para a China que visitei sempre na companhia de amigos chineses. Tenho a arrogância de dizer que nunca visitei a China como turista!

Revista Matraga - Já sabemos que o termo ‘lusofonia’ é de compleição problemática quando se busca caracterizar os países falantes de português e suas respectivas literaturas. Como compreende o conceito de lusofonia? Houve, a seu ver, avanço nessa discussão conceitual?

Inocência Mata: É um termo complicado! Já tenho escrito sobre isso, mas também, tal como o tema do Acordo Ortográfico, cansei! Há pouco mais de um mês numa reunião uma professora da FLUL afirmou que não estudava nenhuma literatura lusófona, “estudo literatura portuguesa, quem estuda literaturas lusófonas é a Inocência” (portanto, existe a literatura portuguesa e existem as literaturas lusófonas, portanto, filhas de Portugal e, pode pensar-se, menores). Já não tenho paciência, já dei para esse campeonato, desculpem a informalidade. É muita ideologia e pouca ou nenhuma análise cultural e/ou científica. É uma discussão que não evolui, pois os argumentos e os contra-argumentos são os mesmos, para questionar ou celebrar o que considero um “exacerbado” papel que é atribuído à língua portuguesa na construção comunitária. Por que razão se pensa que a língua é o mais importante elemento de identidade?! Nunca percebi esse raciocínio! Costumo dizer que o meu último “testamento” sobre esta questão é o ensaio “LUSOFONIA E HISTÓRIA: Aferições de pertença luso-afónicas?” (2017), publicado na Revista de Estudos Literários, do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Acho que esgotei (para) essa questão e, por isso, permitam-se indicar o artigo em que digo um farewell à questão: Revista de Estudos Literários, [S.l.], v. 5, p. 105-127, jun. 2017. ISSN 2183-847X. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rel/article/view/4292.

Porém, para terminar, direi que não uso o termo em português porque o acho neocolonial, embora não me incomode tanto quando usado em francês ou em inglês. Em todo o caso, quem quiser usá-lo que o use, eu não o faço, mas não me venham dizer que é apenas um termo. Não, é mais do que isso – é um conceito subalternizante.

Revista Matraga - Com relação aos estudos culturais, na abordagem das literaturas africanas de língua portuguesa em Portugal, África e Brasil, considera que estamos, em função disso, lendo-nos mais frequentemente nos meios acadêmicos? Também gostaríamos de saber se, na sua opinião, o diálogo literário entre nós – falantes do português – já se consolidou como uma rua de mão dupla, isto é, se estamos nos lendo numa relação direta ou se ainda persiste entre nós uma leitura enviesada?

Inocência Mata: Esta questão está relacionada com as questões 3 e 4, ou pelo menos com as minhas respostas. Ou talvez não. Bem, eu diria que uns lêem mais os outros. Isto é, os africanos lêem mais os portugueses que os portugueses os africanos (à excepção dos africanos do costume); os portugueses talvez leiam mais os brasileiros que os brasileiros os portugueses. Tudo isso tem a ver com a questão do mercado, da capacidade económica... E isso até nos manuais escolares: os manuais escolares africanos contêm muitos textos portugueses e brasileiros – e os manuais brasileiros contêm textos africanos? E quantos textos africanos contêm os manuais portugueses? Quase nenhuns – a isso posso responder. Fala-se tanto na fraternidade linguística – como construir uma comunidade sem que as crianças e jovens conheçam a literatura do outro?!

Por outro lado, descobri, com tristeza, que os colegas lêem-se pouco. Declaro que procuro ler o que os meus colegas escrevem, sobretudo quando vou escrever sobre um assunto, pesquiso o que já foi dito por outros colegas da área, mas não é o que verifico. Muitas vezes leio ensaios de colegas que falam de assuntos que já foram tratados há anos por outros colegas e não há uma única referência àquilo que o colega escreveu há anos sobre o mesmo assunto. Muitas vezes leu o colega e não o refere, o que é pior. Sei que muitas vezes é para evitar citar o colega – dá mais prestígio citar Bhabha, Hall, Benjamin, Said, agora as novas coqueluches africanas Mbembe, Chimamanda Ngozi Adichie… Como se citar um colega diminuísse quem o cita. Pois bem, sinceramente? Acho falta de ética, desonestidade intelectual. Cite o colega e critique-o se não concorda com ele, mas se o leu, se ele já escreveu sobre o que você está a escrever, porque não citá-lo?

Porém, se julgo que os estudiosos falham no diálogo, os criadores, pelo contrário, sempre dialogaram muito. No caso do mundo da língua portuguesa, os escritores africanos sempre mantiveram um diálogo muito produtivo com escritores portugueses (particularmente com os neo-realistas e presencistas) e brasileiros (com os modernistas e o romance nordestino), e americanos (com particular destaque para Hemingway, Steinbeck). Hoje porventura menos, pois os escritores africanos abriram-se para outras latitudes, outras problemáticas, outras preocupações que não apenas as sociais… E foi muito intenso esse diálogo, que designei como “encruzilhadas atlânticas” para referir as relações literárias e culturais entre os espaços de língua portuguesa que partilham uma história comum “narrada” segundo perspectivas diferentes…

Revista Matraga - Por fim, gostaríamos que comentasse – como professora e pesquisadora dos estudos culturais e da pós-colonialidade – como vê os caminhos futuros desses estudos nos meios acadêmicos? Em sua opinião, que perspectivas podemos vislumbrar sobre esses estudos nas academias e institutos de pesquisa num contexto mundial em que os discursos neoliberais se mostram de certo modo predominantes em diversos países?

Inocência Mata: Este é um desafio! Um enorme desafio! Nuns países mais do que em outros (porventura agora os colegas brasileiros mais do que os portugueses, e não apenas por causa da ideologia neoliberal, mas por outras ideologias). Também em Portugal as Humanidades e as Ciências Sociais vivem um momento de pouco financiamento, vive-se ainda a euforia das ciências tecnológicas, por isso é preciso recentrar as Humanidades na Educação básica, secundária e superior. Neste contexto, há um livro que recomendo, que gostei de ler (na verdade, vou lendo, ele é imenso), um livro já antigo (de 2010), de Vítor Manuel Aguiar Silva, As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa, que nos obriga a repensar: que educação queremos para as jovens gerações? Que sejam exímios em tecnologias e sem a ética do humano? Que consigam calcular algoritmos mas não saibam nada da história do seu país? Que saibam termos e conceitos do desenvolvimento sustentável e não consigam identificar um escritor para além daqueles que saem nos exames nacionais? Sei do que falo, tenho dois filhos e estudo com eles: acho que há um excesso de “ciências técnicas e tecnológicas” e pouca margem para as humanidades para além de uma gramática seca de pronomes oblíquos e predicativos de sujeito e complemento directo…

NOTAS

1 Originalmente publicada em Matraga, Rio de Janeiro, v. 26, n. 48, p. 724-735, set./dez. 2019.

2 Para o formato final das perguntas, contamos com a prestimosa colaboração dos pesquisadores Christian Rodrigues Fischgold, doutor em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, com tese sobre mitos e poéticas de alteridade em Ruy Duarte de Carvalho (literatura angolana) e Mário de Andrade (literatura brasileira); e Luís Carlos Alves de Melo, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, com projeto de tese sobre as poesias de Odete Semedo (literatura guineense) e de João Aparício (literatura do Timor), em perspectiva comparada.

3 Inocência Mata, “A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa”. In: LEÃO, Ângela Vaz (Org.). Contatos e Ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2003, p. 43-72.

4 Ella Shohat, “Notes on the ‘post-colonial”. In: Social Text, 31/32 (1992), pp. 99–113.

5 Aijaz Ahmad, Linhagens do Presente. São Paulo, Boitempo Editorial, 2002.

6 Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Itatiaia, 1975, vol. 1, p. 10.


[i] Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2006) e Pós-Doutorado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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