Entrevista com Paulina Chiziane, vencedora do Prêmio Camões 2021[1]

 

 

Maria Nazareth Soares Fonseca[i]

Rogério Faria Tavares[ii]

Rogério: Olá, meu nome é Rogério Faria Tavares. Eu sou jornalista e, atualmente, presido a Academia Mineira de letras, uma instituição fundada na Zona da Mata em Juiz de Fora, em 1909, para promover a literatura e a língua portuguesa. Desde o começo da pandemia, em março de 2020, fomos obrigados a transportar a nossa intensa programação presencial para a  internet, para as redes sociais. E agora, aqui estamos com muita alegria e com muita honra, promovendo mais uma sessão virtual dedicada à literatura. Desta vez entrevistando uma exímia contadora de histórias, Paulina Chiziane, a vencedora do prêmio Camões de 2021, e autora de livros fundamentais. Paulina, muito bem-vinda, é uma alegria entrevistá-la.

Paulina: Muito obrigada. A alegria é toda minha, depois do fracasso tecnológico, mas cá estamos, vamos pra frente.

Rogério: Isso. Para entrevistar Paulina Chiziane junto comigo,  convidei uma das mais importantes especialistas brasileiras em Paulina Chiziane, nas literaturas africanas de língua portuguesa, a queridíssima professora Maria Nazareth Soares Fonseca, minha sempre professora. Muito obrigado, Nazareth, pela sua presença, pela sua companhia conosco aqui hoje.

Nazareth: Muito obrigada, Rogério. É um prazer imenso estar participando desta entrevista. A Paulina é uma pessoa que mora no meu coração, ela sabe disso. Desde quando eu a conheci, muitos anos atrás, quando ela veio a primeira vez a Belo Horizonte, não é Paulina?

Paulina: Exatamente.

Nazareth:  Nessa época, a gente pode conversar muito tempo, só nós, fora das coisas oficiais, e depois você fez uma participação magnífica no evento da prefeitura de Belo Horizonte, que ficou na memória da cidade. Então, é um prazer muito grande estar com você, é um prazer grande demais te abraçar, ainda que de longe, pelo prêmio Camões. A gente  ainda vai se encontrar, tá bom? 

Paulina: A gente vai se encontrar. Professora Nazareth, muito obrigada por tudo. Eu sei, conheço as lutas brasileiras para colocar as literaturas africanas em estudo. E eu, quando olho para o Brasil, eu vejo a professora Nazareth como aquela primeira imagem, em Belo Horizonte, eu era uma menina de cabelo pretinho, mais magrinha do que hoje, e eu disse: – Deus, o tempo passou, mas o vosso abraço, vocês brasileiros e brasileiras, foi muito importante para eu me transformar nessa pessoa que hoje sou. Professora Nazareth, muito obrigada, não apenas a si, a si em primeiro lugar, mas aos outros e outras estudiosos das nossas literaturas. Portanto, este prêmio é um prêmio que temos que compartilhar, é produto do vosso trabalho também. Muito obrigada.

Rogério:  Que beleza. E a primeira pergunta da nossa entrevista quem faz é a professora Nazareth.

Nazareth: Isso.

Paulina: Muito bem.

Nazareth: Paulina, eu leio sempre com muito prazer aquele texto magnífico que você publicou no livro Eu, mulher em Moçambique.

Paulina: Ah, sim.

Nazareth: Eu gosto muito desse texto, gosto demais desse texto em que você conta sua história, as primeiras leituras, a sua vida de menina, a sua vida de adolescente, até chegar ao momento em que você se torna escritora, não é?

Paulina: Sim.

Nazareth: Você fala das dificuldades inerentes a cada uma dessas etapas. Eu vou passar por algumas etapas porque elas podem ser lidas com muito gosto nesse livro magnífico. Eu queria perguntar a você, quais são as influências que você credita ao seu fazer literário? Quando você tornou-se escritora, você queria seguir quais influências ou quais escritores e escritoras que falavam mais de perto a você? E se for possível, se você tem livros que te influenciaram na sua tarefa de escritora, nesse caminho maravilhoso que você vem seguindo como escritora?

Paulina: Professora, nós somos o que somos porque viemos de algum lugar. Eu sou esta mulher preta ou negra, Bantu, que cresceu no período colonial e pronto. Eu tenho a primeira influência cultural a partir da minha tradição Bantu à volta da fogueira, esta fogueira que me acompanha a vida inteira e que, até hoje, com calor de 40 graus está lá. A fogueira para mim é uma magia, me transmite qualquer coisa da minha ancestralidade e me transporta até à transcendência. Então, eu venho desse lugar, entrei na cultura portuguesa e a primeira grande influência nesse meio foi a Florbela [Espanca] e, do Brasil, uma das mulheres que me encanta é a Clarice Lispector. Muito bem. A Clarice tem umas coisas absurdas, mas que fazem com que o nosso pensamento imagine as coisas mais... sei lá. Pronto, falei apenas do feminino. Mas, no masculino, eu tenho o Vinícius de Moraes, que é o meu brasileiro preferido. Eu de vez em quando me zango com Vinícius de Moraes por causa das coisas que ele diz. Por exemplo, eu sendo mulher, quando vou tomar banho, eu fecho a porta, tiro a roupa, tomo o banho e depois volto a vestir aquelas armaduras femininas para ser mulher. Agora, o meu Vinícius de Moraes de vez em quando diz: “– Olha, pescador, não achas que o sexo dela se parece com uma concha aberta à beira do mar?”.  E eu fico zangada com ele? Não. Como ele foi desbravar o meu íntimo. Mas é uma relação de amor, e eu dialogo profundamente com esses escritores que me marcaram durante a minha infância. Dos escritores moçambicanos, eu coloco a minha vênia a Noémia de Souza, aquela mulher que despertou em mim a condição de pessoa colonizada. E depois aparece o Zé Craveirinha e tantos outros. As minhas grandes referências para me tornar aquilo que eu sou hoje são essas. É Moçambique, Noémia de Souza e José Craveirinha. No Brasil, é Vinícius de Moraes e Clarice Lispector. E, em Portugal, é Florbela Espanca. Isso. Então, é mais ou menos esse percurso que eu tive, e mais tarde, fui conhecendo outras pessoas maravilhosas que se foram juntando ao meu percurso, e aqui estamos.

Nazareth: Que ótimo.

Rogério: Olha, Paulina, é muito clara na sua literatura a força da tradição oral. Você acolhe com muita intensidade na sua produção escrita a tradição oral, as histórias que você ouviu, como você falou agora aí, em torno da fogueira, não é? Como é que você realiza esse processo de passar para o papel a força da tradição oral, do que você ouviu e ouve até hoje, né? A gente sabe que você se preocupa, até os dias de hoje, em fazer esta colheita das histórias e do material que pulsam na cultura do seu povo e da sua gente.

Paulina: É um processo complicado, muito complicado. E eu acredito que sou extremamente incompetente, porque há aqui uma coisa que a mim me incomoda, às vezes, as pessoas que vêm da tradição da escrita como os europeus pensando que a oralidade… Toda mãe, toda mulher que é mãe, em algum momento da sua vida, já compôs um poema, uma canção de embalar para o seu filho. Portanto, antes da comunicação escrita, antes das tecnologias existe a humanidade, o afeto. Então, para mim, a oralidade é o espaço de afeto. É aquele espaço em que a mãe canta para o seu filho e declama um poema para fazer a criança dormir, e a primeira socialização de qualquer lugar privilegiado, para mim, é a oralidade. Tudo bem, depois disso a gente passa para o mundo da escrita e depois dele passamos para a tecnologia. Mas as máquinas vêm depois, primeiro é esta comunicação de coração para coração que é oralidade. Ora, de vez em quando eu digo:  olha, algumas vezes as pessoas pensam que o mundo moderno é melhor que o mundo tradicional, o mundo rural, que não é muito diferente do brasileiro também em algumas ocasiões. Por quê? Porque tem tecnologia. E a pergunta que eu faço é: - O quê que é bom? É ouvir uma história contada por uma máquina ou contada pela avó? Claro, a história da avó, à volta da fogueira ou não, é uma história muito humana, muito íntima. É qualquer coisa extraordinária. E, às vezes, eu fico um pouco confusa quando as pessoas querem colocar a tradição oral como uma coisa menor. Mas não, para mim não, a oralidade é um lugar da humanidade. Eu olho para as coisas nesta perspectiva.

Nazareth: Ótimo, isso mesmo. Paulina, a gente tem aqui no Brasil muitas informações sobre a recepção de alguns de seus livros, não de todos. A gente, por exemplo, lê muita coisa escrita por nós brasileiros sobre a recepção dos livros Ventos do Apocalipse e Niketche, que é o seu  livro, eu acho,  mais lido aqui no Brasil. Mas a gente fica muito curiosa também para saber qual  foi a recepção, em Moçambique, do seu primeiro livro, o Balada do Amor ao Vento? Como foi a recepção desses livros entre os moçambicanos, entre as mulheres do seu país? Eu queria muito que você contasse isso para a gente. Qual foi a inspiração que te levou a escrever esse livro inaugural da sua brilhante carreira?

Paulina: Professora Nazareth, são histórias de mulheres mesmo. O que aconteceu, na verdade, eu estava na Zambeze, eu vivia lá, eu estava no segundo andar e de repente vejo uma confusão na rua, mulheres brigando, gente xingando uma outra, e eu fiquei atenta. O que está aqui a acontecer? Muito bem, são três mulheres discutindo na porta da casa do meu vizinho, e eu liguei para o vizinho e disse: – Olha, meu vizinho, eu não sei o que se passa, mas parece que a sua casa está a ser assaltada. – Vou aí rapidamente. E ele foi. E quando chega, ele encontra a esposa e as duas amigas ou amantes, ou sei lá, discutindo entre si, lutando por causa dele. E ele não faz mais nada, senão dar passos de retaguarda e desaparecer. Fugiu, o rapaz fugiu. Fiquei furiosa, zanguei-me com o vizinho e fiquei uns meses sem lhe dirigir a palavra. Até que um dia eu lhe disse: – Não, o que aconteceu? Pronto, trocamos confissões. E quando eu dei por mim, eu já estava a escrever aqueles palavrões que eu ouvi daquelas mulheres. E o livro começou assim. Ah, mas foi uma coisa tão… pronto, interessante. Mulheres lutando pelo mesmo homem e o homem fugindo dos seus atos. E veio assim o livro que é hoje o mais lido.

Nazareth:  Ah, que ótimo, que coisa boa. Que maravilha!

Paulina: Muito bem.

Rogério: Mas você falou agora, Paulina, da história do surgimento de Niketche, não é isso?

Paulina: Exatamente.

Rogério: Eu queria que você falasse um pouco da sua estreia com o Balada de Amor ao Vento. Como é que foi publicar esta primeira história? Você já publicava contos na imprensa do seu país.

Paulina: Exato. Sim.

Rogério: Mas a estreia em livro é com Balada de Amor ao Vento? E a recepção de Balada de Amor ao Vento pelas mulheres de Moçambique, pelos homens de Moçambique e depois pelos leitores de fora do seu país. Como é que foi essa estreia?

Paulina: Não foi fácil, não foi. Eu vou ser muito franca. Eu venho de um país que tinha sido colonizado por Portugal e a independência era uma coisa recente. Na nossa literatura moçambicana, nós podemos ver alguma hierarquia, isto é, as primeiras escritoras eram brancas, depois vieram as mulatas e, finalmente, as negras como eu, a Nina Magaia e outras pessoas que escreveram uma e outra coisa e não continuaram. Então, era um período de muitos preconceitos raciais, muitos preconceitos sexistas, porque para muitos a mulher só podia escrever alguns poemas, umas cantigas de embalar, coisas pequenas. E a mulher não era vista, sobretudo a mulher negra, não era vista como alguém que pudesse desafiar o papel e criar um pensamento ou qualquer coisa dessa natureza. O livro saiu. A recepção em Moçambique foi péssima. Daquelas que estão ligadas aos escândalos, às academias etc. – Mas quem é essa Paulina, o que ela julga que é? Essa história é de certeza  a história dos amores dela. – Olha, na literatura não há espaço para frustrações amorosas. Ai meu Deus, ouvi assim umas mil cantigas feias. Não foram dos brancos, nota bem, eu quero deixar isto muito bem frisado.  Não foram os brancos que disseram isso, foram os pretos como eu que achavam que uma mulher preta não estava em condições de publicar um livro. Pronto. E qual é o meu espanto? Eu estou a lembrar agora de uma senhora austríaca que era a Amarbet Deruba, a quem eu devo muito do meu percurso. Ela olhou para mim e disse: “– Paulina, não é justo o que estão a fazer contigo, o teu trabalho é bom”. E a partir dela eu começo a percorrer o caminho da Europa até chegar à editora Caminho. Isto é, deixando claro, os pretos nunca aceitaram o meu trabalho. Se eu consegui caminhar é porque as pessoas de outros continentes e de outras raças apostaram em mim, e não eram pretas, não eram africanas, eram europeias. Passado algum tempo, entro em contato com a Caminho, que é minha editora agora, e chego até o Brasil. O meu percurso começa a ser um pouco maior, um pouco mais respeitado a partir de fora do meu próprio país. Eu faço esse sublinhado porque, algumas vezes, nós como seres humanos que somos, também criamos fantasmas e elefantes inexistentes, um deles chama-se raça. O fato de alguém ser negro como eu não significa que está de acordo com o meu desenvolvimento. Eu digo, hoje, eu recebi o abraço do mundo inteiro, de todas as raças, coisas que no princípio eu não recebi no meu país. E eu pergunto: – Mas como? Se eu estou em África, em Moçambique, um país de maioria negra, como é que os próprios negros não foram capazes de me dar aquele abraço que eu precisava, no momento da necessidade? Recebi este abraço de outras pessoas, de outros espaços geográficos, de outras raças e nacionalidades, e aí por diante. Em relação a esse assunto, eu gostaria de fincar ou fixar esta ideia, uma coisa é humanidade, a mim não interessa se o indivíduo é preto, se é branco, se é mestiço ou se é chinês, há sempre um ser humano no outro ser. Então, eu não posso ficar fixada e presa à minha raça e às minhas querelas do cotidiano, porque afinal se eu me junto a outras pessoas posso conhecer um lugar maior. É exatamente esta realidade, que hoje conheço, tenho um prêmio Camões e hoje sou considerada a personalidade da lusofonia do ano. E isso não é produto de uma raça, é produto de uma humanidade inteira. E deixe-me aproveitar essa oportunidade para agradecer a todas as pessoas que me acompanharam neste percurso, não é apenas acompanhar, aqueles que me ampararam, a professora Nazareth talvez não soubesse, quando eu fui a Belo Horizonte havia moçambicanos pretos que diziam: – Onde  aquela mulher pensa que vai? Saí, encontrei outras pessoas que disseram: “– Paulina, podemos caminhar por aqui.” Fui melhorando uma coisa e outra coisa, porque é justo também, quem começa não consegue fazer um trabalho com perfeição. E eu precisei que professores, de amigos, de leitores para me dar este abraço que na altura eu não encontrava no meu país. Por isso, a todos vocês, muito obrigada.

Rogério:  Beleza. Professora Nazareth.

Nazareth: Paulina, esta questão sobre a recepção dos seus livros em Moçambique vai permanecer depois que você publicou os demais? Por exemplo, como é que foi recebido o Sétimo Juramento? Como esse livro foi recebido em Moçambique, o Ventos do Apocalipse e o Niketche, principalmente, que é, como você falou, o seu livro mais lido, não é?  Eu acho que o Niketche confirma o seu lugar como grande escritora que é. Eu queria saber também, por exemplo, quando você escreveu O alegre canto da perdiz, que eu acho magnífico,  é o romance de que eu gosto demais. A percepção das questões  trazidas por você em sua literatura começaram a ser melhor digeridas, começaram a ser melhor entendidas no seu país? Eu gostaria que você concluísse falando quais são os motivos da grande virada que você dá na sua literatura com a publicação do Ngoma Yethu.  Eu gostaria que você falasse como foi a recepção dos demais livros além dos já comentados por você.

Paulina: Muito bem, obrigada professora. É, vou ser franca, cada um dos meus livros foi uma luta.

Nazareth: Eu sabia, eu sabia…

Paulina: Sobretudo, em Moçambique. Alguns me disseram, de forma aberta: “– Paulina, não traga feminismos para a literatura moçambicana. Olha, que a literatura é um espaço nobre, e tu estás a trazer os teus feminismos”. Bem, no momento não liguei muito, continuei a trabalhar. O livro Niketche é editado em Portugal, a edição é feita em Portugal. E foi aquele estrondo porque foi um best-seller. Não foram apenas moçambicanos, lembro-me de alguns angolanos e lembro-me também de alguns outros africanos que disseram: “– Mas a Paulina agora está a trazer feminismos na literatura, o que é isso? O que é isso? O que é isso?” Quando percebem o sucesso que é o mundo do feminino, começaram todos a escrever sobre o feminino. É, acho que isso ficou visível porque um livro que fala das mulheres com toda a profundidade é o Niketche. E a partir daí os escritores moçambicanos, angolanos, guineenses também começam a escrever sobre o feminino. Então, no espaço português, o livro foi... na Europa, foi um sucesso absoluto. Quando o livro chegou ao Brasil, é um outro sucesso redobrado. É quando disseram: “– Bem, o sucesso do seu Niketche é esta descoberta do feminino”. Portanto, esse mundo que era proibido, que era... cujas palavras eram todas proibidas, de repente, começa a sair, e afinal de contas as mulheres têm muita coisa para dizer. E esse livro, para mim, prova isso. Agora, no Ngoma Yethu: o curandeiro. As pessoas têm medo de entrar porque a realidade do curandeiro é uma realidade de uma cultura Bantu, africana. – O que é um curandeiro? Às vezes eu faço essa pergunta que nem sempre me respondem. Antes da invasão colonial quem é que cuidava da saúde do povo africano? Era o curandeiro. Veio a invasão e então tudo o que fazia bem tornou-se diabólico. E nós, hoje, como país independente aceitamos isso? O quê é que se passa? Aqui é um trabalho que precisa ser feito. Ok. Tomei um aspecto muito provocatório mesmo, colocar uma curandeira para fazer a interpretação do novo testamento segundo a cultura Bantu. Foi um trabalho extraordinário. Eu acho que eu sou uma mulher de muita sorte. Trabalhei com a Mariana Martins que é uma curandeira, era de profissão, ela agora já está retirada dessa função. Curandeira é aquilo que no Brasil se chama a Mãe de Santo. E ela deu-me o seu ponto de vista sobre o sagrado que veio com o outro, mas foi muito interessante depois poder chegar à conclusão seguinte, essa conclusão para mim é a mais bela: o cristianismo, o cristianismo não, Jesus Cristo está muito mais perto da cultura africana do que da cultura europeia. Essa é a primeira grande conclusão. E eu disse:  – Deus, fiquei todo esse tempo a pensar que os outros é que dominavam o sagrado. Não, os povos Bantu na sua sacralidade, ancestralidade, têm os seus signos, os seus símbolos e as suas crenças que são crenças absolutamente humanas. E essa história do diabólico, do sagrado, são invenções coloniais, são fronteiras imaginárias que foram criadas pela cultura que quer dominar a outra. Então, a minha reivindicação agora é: eu moçambicana, eu africana, eu negra. Eu tenho que reivindicar a minha ancestralidade no sagrado. Então, este livro é mais ou menos isso. Ainda não foi entendido em Moçambique. Mais uma vez agradeço ao Brasil, tenho que agradecer a Íris Amâncio que aceitou este desafio de colocar este livro nas mãos dos leitores brasileiros.

Nazareth: Que ótimo, que bom.

Paulina: Uma coisa interessante  acontece em Moçambique. Muitos alunos moçambicanos que vão fazer um mestrado ou doutoramento no Brasil sobre o tema não leem esse livro, porque pensam que ele é diabólico, mas, quando chegam ao Brasil, são obrigados a ler e dizem: – Ah, esse livro afinal, é interessante. Afinal, era isto. E pronto. É uma contribuição que eu tentei dar para o conhecimento deste mundo que reclama urgentemente estudos, e eu sei que o Brasil é este país que está na vanguarda deste tipo de estudos. Esses estudos ajudam este país, Moçambique, Angola, os países africanos a poder olhar para a sua ancestralidade como a base da sua própria dignidade. Então, vou fazendo essas pequenas e grandes coisas.

Nazareth: Que ótimo, que maravilha. Foi muito bom para nós ouvir você falar sobre oralidade e ancestralidade.

Rogério: Olha, Paulina, você já disse em várias entrevistas que a sua vida é um produto de várias culturas, não é?

Paulina: Exato.

Rogério: Das culturas Bantu, não é? Xope, ronga e também da cultura portuguesa, naturalmente, não é?

Paulina: Exatamente.

Rogério: Você já disse que é um resultado do encontro, do diálogo dessas várias culturas. Como é no seu coração, no seu sentimento, na sua história, realizar na sua pele, realizar esse encontro de culturas?

Paulina: É, pronto. Sem dúvida, não há nenhum ser humano perfeito, nem um ser humano puro. Qual é o meu espanto? Eu mulher negra, preta, como nós dizemos aqui entre nós, eu vim a saber, ouvi árabes lá na sétima ou sexta geração, vieram os árabes se casaram com as negras fizeram os filhos que fizeram [filhos], isso do lado do meu pai. E ainda se veem alguns vestígios disso em alguns primos meus. Do meu ponto de vista, a saber, do meu lado materno, lá nas gerações quatro ou cinco ou seis lá para trás, havia portugueses. E, então, eu pergunto: – Mas então, o que é o ser humano? Quem eu sou? De onde que eu vim? E que importância tem hoje criar conflitos porque eu sou de uma ou de outra raça? Porque, na verdade, nós somos o produto de tudo. Isto é, ninguém tem o direito de se sobrepor, sobretudo à minha cultura Bantu. Vem alguém e acha que é melhor que eu. Como é que é melhor, se o senhor saiu ou a senhora saiu da sua terra para vir aqui, à minha, é porque eu tenho o que tu não tens. Então, por que se impõe? Faltou o diálogo. Tivemos, claro, esta questão dolorosa que é a escravatura, tivemos a questão dolorosa que foi o colonialismo e houve lutas por libertação. Hoje somos livres, mas, para mim, é uma aparência, porque a verdadeira liberdade está dentro da gente. Como eu me olho? Como que eu olho para o outro? Como que eu vejo a minha língua, aquela que é a minha língua materna, como é que eu vejo a língua daquele que vem impor a sua língua sobre a minha? Então, esse diálogo é uma necessidade urgente. A  língua portuguesa não dialogou com os povos africanos. Impôs-se. E ao impor-se, nós fomos aprendendo alguns códigos, mas a língua portuguesa não penetrou na cultura do povo Bantu. E isto está claro. Eu já falei disso várias vezes, isto é, a língua ou um povo é como uma árvore, chega alguém corta os ramos e corta o tronco e pensa que a árvore morreu, mas não morreu. A árvore tem as raízes bem assentes no chão. Esse é diálogo que eu reclamo. Portanto, os invasores, sejam eles de Portugal, da França, da Inglaterra, precisam abraçar a África para dialogar com as línguas, com a cultura e com o povo se nós queremos ser uma humanidade mais equilibrada.

Escrevo em português, mas o meu português não alcança minha cultura. Não alcança, não é possível. Toda língua é um repositório de cultura. O que os portugueses têm para dizer com a sua língua portuguesa que eu aprendi? Tudo bem, foi bom ter aprendido, mas os signos deles não penetram no meu mundo, por quê? Porque se impuseram e não dialogaram. Então, o diálogo eu acho que é a etapa que tem que vir a partir de agora. As línguas europeias precisam dialogar com as línguas africanas, as culturas de um lado, de outro lado precisam dialogar, e não viver neste conflito. Às vezes dou um exemplo muito caricato, mas que facilmente podemos compreender: a nossa província moçambicana mais quente chama-se Tete, a temperatura daquele sítio fica em torno de uns 40 e quase 50 graus. Ok, quando as portuguesas ou as europeias chegaram, vinham armadas com leques, o chapéu, as luvas, as botas, as meias, a saia e outra saia, e outra saia e foram para Tete. Quando chegaram encontraram o povo de tangas, e disseram: “ – Ah, que imoralidade, que gente nua. Jesus! É  gente sem civilização, porque não tem roupas”. Passaram dois minutos: “– Ah, faz um calor! Ô Maria pega meu leque. Aí, faz um calor, pega meu chapéu”. E aos poucos as trocas foram acontecendo. Esta europeia ou este europeu começou a compreender que, em Tete, tem que se andar de tanga e não com os preconceitos da cultura que eles trazem. Então, é um trabalho enorme que nós, negros, negras, que nós humanos, europeus, ou seja, quem for temos que fazer. É preciso descolonizar as línguas, as culturas, tornar a humanidade um lugar mais próximo. E a minha felicidade foi poder participar através da literatura na criação desse diálogo, tendo o apoio de diferentes pessoas, de países do mundo, porque este é um diálogo necessário. Não há cultura superior, não há. Nem inferior. Existe apenas culturas e povos. Agora, por que que uns vão se sentir mais do que outros? E volto a repetir, o projeto colonial de desenraizamento foi muito bem-sucedido, porque os negros moçambicanos hoje acham que o melhor modelo é aquele que vem do outro e não de si próprio. Esse trabalho de mudança, de libertação mental, é um trabalho que tenho vindo a fazer e tenho recebido o apoio do mundo para fazer com que o negro sinta que ele tem algo de bom para dar ao mundo, da mesma forma que o outro mundo também tem algo bom para dar. Precisamos trocar, dialogar, para construirmos uma sociedade melhor.

Nazareth: Que ótimo. Paulina, eu acho que essa questão de construir uma sociedade melhor e uma forma mais compreensiva de diálogo com os outros está presente muito forte, não só no Niketche, que eu acho um livro magnífico, porque, de certa maneira, também trata da dificuldade daquele homem ter aquela quantidade de mulheres e ter que conviver com esse problema, né? Ter que conviver com o problema sem encontrar uma boa solução. Tanto é que é a Rami quem vai, de certa maneira, encontrar uma proposta mais coerente para aquele mundo, que era o mundo das mulheres. Vejo que você faz isso também no romance O alegre canto da perdiz, porque cria uma personagem feminina que é rejeitada pelas mulheres. Mas será principalmente a mulher do Soba que irá compreender aquela mulher no seu sofrimento, aquilo que está impresso no corpo dela, não é? Então, eu acho que essa estratégia de mostrar os vários lados da questão está muito presente nos seus romances. O que demonstra que não há uma verdade única. Às vezes, algumas feministas radicais ficam um pouco incomodadas com os seus romances porque você não assume uma visão mais atrelada ao feminismo. Você prefere apontar uma leitura das contradições que existem, inclusive, no mundo das mulheres. É isso? Está claro? Então, quando você explora em seus romances conflitos que estão situados no ambiente feminino, no modo como a mulher olha para o mundo, deixa também claro o modo como você trata uma questão muito especial, a questão da sexualidade. Essas questões incomodam às suas leitoras, as mulheres do seu país?

Paulina: Não consegui ouvir bem a pergunta toda, mas vou tentar dizer algo sobre esse assunto. Nós, em África, às vezes, tendemos a copiar modelos dos outros. Com o nascimento do feminismo, eu comecei a ouvir a falar de coisas como o feminismo negro, e eu hoje, mais adulta, já sou um pouco mais adulta, eu coloco a seguinte questão: –Será que a África conhece o seu feminino? Porque, para se chegar ao feminismo, é preciso conhecer o feminino. O que a África sabe? Fomos desenraizados, fomos tratados como fomos tratados, nossas referências muitas delas foram apagadas, mas ainda existem vestígios a partir dos quais nós poderemos tentar tecer a nossa história. De vez em quando eu faço uma viagem pelo Norte de África, onde encontramos a Cleópatra. O mundo, nesse tempo, guiava carros de guerra etc. Cleópatra é uma mulher reverenciada, referenciada na história, é uma mulher imortal e é de África. Então, nós vamos para esta outra mulher que eu tanto admiro chamada Rainha de Sabá, uma negra, uma preta, que ofereceu 40 diamantes e ouro a um tipo chamado Salomão, e depois houve aquele casamento e tudo. Mas é muito interessante ver a história da Cleópatra como ela é descrita. Dizem que o imperador Júlio César se apaixonou por ela, e eu acreditei nisso durante muito tempo. Pois veja, a senhora era poderosa, era dona do mundo, quem é que se apaixonou por quem? E quem não se apaixonaria por ela, porque toda fortuna do mundo era sua. Mas os livros só falam desse lado sexista, porque ela era linda e Júlio César se apaixonou. Grande coisa! Ela era uma grande mulher. O que está escrito sobre a sua política, o seu trabalho e a sua governação? Nada. E o mesmo em relação à Rainha de Sabá. O que sabemos dela? É que ela foi oferecer o ouro àquele cavaleiro que se apaixonou por ela. Calma aí! Porque assim... Então, o que se destaca dessas grandes figuras femininas do continente africano? É uma coisa que eu sempre digo com muito orgulho: a Rainha de Sabá é uma negra poderosa, mulher de todos os tempos que até consta na Bíblia Sagrada. Mostra-me uma mulher europeia que tem o mesmo nível? Nenhuma. Então, precisamos  falar do mundo da mulher africana  para conhecer um pouco mais a nossa ancestralidade feminina, para depois chegar ao feminismo. E este caso, o último, do senhor Kadafi com a sua guarda de honra feminina que teve as suas origens e depois... pronto. O senhor Kadafi achou que as pessoas mais dignas para guardá-lo eram mulheres, recuperando uma tradição africana muito antiga. Agora, se nós começamos a dizer que a mulher europeia é um modelo, a mulher americana vai seguir o feminismo extremista, feminismo disso e daquilo, sem olhar para a nossa história, vamos nos perder mais uma vez. As mulheres africanas devem, primeiro, conhecer o seu feminino, para depois falar do seu feminismo. Porque há histórias que a gente encontra, por exemplo, eu gosto muito de ver a história dos Monomotapa, do Xangamir que nós tivemos aqui entre nós. Xangamir chamava-se Xanga, e no tempo em que era Xanga, as mulheres eram guerreiras de carreira, eram militares de carreira. Xangamir aceitou o título de emir, por isso se chama-se Xangamir. E porque ele se converteu, mandou todas as mulheres para a cozinha. Foi isso. Foi o que aconteceu. E o mesmo se deu em relação a um outro Monomotapa que é o Gatsa Roseli, que decidiu ser cristão, batizado com o nome de Baltazar. E o cristianismo dele disse: “– Não, o lugar da mulher é na cozinha”. Então, ele vira Baltazar, coloca as mulheres, que eram militares de carreira, na cozinha. Então, quem são os europeus hoje para me vir falar da promoção da mulher, da emancipação da mulher, coisa que o continente africano tinha, mas que escapou por causa da dominação colonial, da dominação religiosa. E hoje querem nos obrigar a aceitar os modelos dos outros países como receita para o meu feminino, para eu falar do feminismo deles. Ah, não! Alguma coisa que não aceito.

Rogério: Paulina, nós estamos fazendo algumas reflexões muito potentes, nós estamos ouvindo as suas belíssimas reflexões sobre temas fundamentais, e que aparecem na sua literatura. E eu queria te perguntar sobre algumas das suas memórias, memórias relativas à trajetória da sua biografia, sobretudo, as suas memórias vinculadas à política, à atuação pública, você foi uma militante da FRELIMO, da Frente de Libertação de Moçambique, participou ativamente dos movimentos que culminaram na independência do seu país em 1975, não é? E depois também trabalhou na Cruz Vermelha internacional. Enfim, eu queria ouvir uma palavra sua sobre o que que é a política na sua vida, né? O que é esta dimensão de atuação na vida pública para Paulina Chiziane?

Paulina: Interessante essa questão. Eu digo sempre que a FRELIMO significa Frente de Libertação de Moçambique, e na frente todos vão, todos são chamados. E depois da Independência esse grupo profissionalizou-se e tornou-se um partido político. Ora, na frente eu vou, mas viver a vida pública como política eu não sinto vocação nenhuma. E eu vou explicar o porquê. Eu sou irreverente. Eu, de vez em quando, sou desordeira, de vez em quando, sou desobediente, gosto de ter o pensamento livre. E então, achei que o lugar da política como profissão e modo de vida, não era o meu lugar. Prefiro continuar a caminhar pelos campos e conversar com as pessoas comuns. O lugar comum é aquele que eu escolhi para mim. Então, o mundo das políticas públicas, embora seja muito importante, não é o meu mundo. O meu mundo é da liberdade e para onde que eu deixar o meu pensamento livre e correndo. Imagina as coisas todas que eu fiz, se eu estivesse me  ligado a um grupo ou político ou religioso, na realidade, havia de ficar presa aos princípios disso e daquilo. Eu gosto da minha liberdade. Então, a minha busca permanente por liberdade foi o que fez afastar-me de muitas coisas, não só da vida pública política, mas também de dementes considerados estadicídeos. Eu fujo desses grupos. Alguns familiares meus se juntam a esses grupos porque consideram que isso é socialmente correto. Eu saio desses grupos. E eu estou por aí caminhando que nem uma andorinha, de um lugar para o outro. Eu me sinto mais realizada assim.

Nazareth: Eu queria ouvir essa Paulina irreverente, essa Paulina que caminha com os próprios passos, essa Paulina de que eu gosto imenso, essa Paulina que coloca a sua visão sobre a imposição de ser uma escritora feminista. Eu gosto muito, Paulina, de ouvir você falar sobre isso, porque é muito importante, porque você vai desarmando as armadilhas que, muitas vezes, as próprias feministas ou as próprias seguidoras desse feminismo podem colocar, tanto para gente quanto para elas próprias. Gosto imenso de ouvir você falar sobre isso e já ouvi você falar, aqui no Brasil, várias vezes sobre isso para uma plateia de escritoras e de mulheres, antes de tudo. Eu queria saber de você se sente que a questão do feminino, a questão relacionada ao conhecer melhor as mulheres africanas, se esta questão tem progredido no seu país? Se tem progredido não só na universidade, mas se tem progredido mesmo entre as mulheres, a ponto de elas quererem falar mais sobre o universo a que elas pertencem? Você disse que ouve as mulheres. Então, eu gostaria de saber se você percebe que houve um andamento maior nessa busca das mulheres por terem a sua vida, o seu lugar de mulher mais reconhecido até por elas mesmas?

Paulina: É, não consegui ouvir tudo, há aqui uma oscilação, mas acho que me pergunta sobre ouvir não só as mulheres, mas aquelas pessoas cuja voz é quase que proibida. Isto é ouvir um curandeiro, ouvir uma curandeira, são vozes que não são permitidas. É muito difícil encontrar um artigo na sua própria voz desses grupos porque são, de certa maneira, grupos marginalizados, excluídos, na sociedade. Então, eu gosto muito de fazer isto. Aquela minha vontade de aventurar-me nesses lugares considerados proibidos foi o que me levou a fazer algumas escritas de algumas coisas que as pessoas disseram: “– Jesus! Paulina, você vai escrever com uma curandeira? Olha que isso é diabólico”. Não é diabólico, é da minha ancestralidade. Tenho ouvido as mulheres, não só, tenho ouvido também gente nova, qualquer pessoa que tem uma história bonita para contar, enquanto eu tiver energia também e boa disposição para trabalhar nela, eu vou para aventura. Já fiz muitas loucuras dessa natureza, já entrei em bares, já entrei em lugares considerados proibidos. Em outro livro que eu publiquei recentemente, a Voz do Cárcere, eu entrei na prisão, nas prisões, e conversei com as pessoas. Conversei com as mulheres que estavam na prisão, querendo saber delas o que é para elas a vida, o mundo, uma vez que quem está na prisão não tem a facilidade de comunicar com o mundo, como qualquer outra pessoa. E de fato, saiu um trabalho extraordinário, espantoso, que me moveu e eu senti-me muito mais humana como escritora, muito mais útil por ter ajudado aqueles que não têm voz a exprimir os seus sentimentos a serem conhecidos pelo mundo. Nesse livro, eu não trabalhei sozinha porque é complicado, e disse logo: “– Olha, eu, sendo mulher, prefiro trabalhar com mulheres”. Mas fui procurar um outro escritor e filósofo, que foi trabalhar no setor masculino, porque eu disse: “– Bem, de fato, quem está na prisão, está por várias razões. Vamos supor que estarei diante de um violador de mulheres, como que vou reagir? Como que eu vou interagir com essa pessoa? É preferível que seja um homem”. Então, fomos construindo assim uma narrativa muito bonita, muito interessante e profundamente humana. E eu, nesse momento, eu acho que tenho que agradecer muito à própria direção da prisão que me deixou trabalhar, mas acima de tudo, aos reclusos e às reclusas, homens e mulheres que me ensinaram uma grande lição da vida. E daí, já estamos tentando voltar para aquela questão do feminino, do feminismo, isto é, a quem tem cinco filhos, tem seis filhos ou mais ou menos, nem que seja um. Há um mundo que se destrói completamente, porque um homem morreu na querela, o quê que o homem faz? A prisão de uma mulher é a prisão de uma sociedade. Há muitos filhos que ficam sem teto. Mas a prisão do homem é diferente. Quando um homem é preso, a família sofre por não ter pão, por não ter isso e aquilo, mas a família não se destrói. Esta para mim foi uma das maiores lições que eu aprendi com este trabalho, isto é, a mulher é a pedra basilar da construção de qualquer sociedade. Depois fui ler coisas sobre a China, sobre América, enfim, sobre qualquer parte do mundo e a realidade é esta. A prisão de uma mulher é o desmoronamento de uma sociedade, a prisão de um homem é o sofrimento de uma família, mas a família se mantém. Então, a mulher é importante por isso.

Rogério: Muito bem, Paulina. Olha, a nossa conversa tem sido uma fonte muito rica de ótimas e potentes reflexões. Eu vou fazer agora a última pergunta para você, aí inspirado pela sua vitória no prêmio de Camões, você me ouve?

Paulina: Agora… estou ouvindo, agora sim, sim.

Rogério: Ok. Eu quero então fazer a Paulina Chiziane a última pergunta da nossa conversa, da nossa entrevista, nós conversamos aqui hoje sobre temas muito importantes, enfim, sobre política sobre o período colonial, sobre o tema do feminino, do feminismo, e eu gostaria de encerrar a nossa conversa pela vitória de Paulina no prêmio Camões, perguntando a Paulina sobre o que é a literatura na sua vida? Que papel ela representa? Enfim, que energia ela mobiliza no seu ser? Para que e por que, e movida por qual energia você escreve? Enfim, uma reflexão sua sobre a literatura na sua existência.

Paulina: Muito obrigada, Professor. O que eu posso dizer, sem dúvida, é que a partir da literatura eu estou a fazer a negociação da minha identidade. É esse lugar a partir do qual eu digo: – Eu estou, eu existo, eu sou. Eles, os invasores, claro, escreveram tudo sobre nós, aquilo que nos aconteceu, e os nossos filhos são obrigados a repetirem a palavra do outro sobre eles. E eu disse: – Não! Para mim, a literatura tem que ser esse lugar onde eu conto a minha história, do meu jeito, de acordo com o meu background cultural. Então, é um espaço de luta, a literatura, é um espaço de diálogo, e é um espaço também de negociação. Por exemplo, o Niketche é a prova disso. As mulheres começaram a falar cada uma das suas confusões. E as primeiras leram, outras ficaram chocadas, e no fim veio o debate e, gradualmente, começamos a penetrar no mundo de um e do outro. A literatura para mim é isso, repetindo o que eu disse no princípio, eu tomei conhecimento sobre essa percepção, a partir da leitura dos textos de escritores que foram para mim  transformativos. Eu  aprendi a ser outra pessoa a partir da leitura. E escrever é uma espécie de gratidão que eu tenho por essas escritoras, por esses escritores, do meu país e do mundo, que me ensinaram uma outra humanidade. Eu não digo que o mundo pode mudar com a literatura, que  o ser humano que pode ser melhor a partir de uma boa literatura, de uma literatura que versa o equilíbrio entre as relações humanas com a natureza, com todas as coisas que nos rodeiam. Eu sinto que a literatura do mundo inteiro, de uma maneira geral, é uma literatura desequilibrada. É a voz masculina em primeiro lugar, é a voz dos poderosos em segundo lugar, é a voz daqueles que têm, dos ricos talvez, ou daqueles que se julgam supremos. E é a falta de outras vozes, aquelas vozes mais humanas, que faz a diferença. E é preciso corrigir este erro. Vai-se a uma biblioteca qualquer, de qualquer universidade, de qualquer parte do mundo, raras vezes se veem livros de mulher, livro de pobres e o pensamento de um ser humano comum. Ora, se todos nós fazemos parte deste mundo chamado humano e queremos estar bem, precisamos ouvir as diferentes vozes e as diferentes percepções do mundo.

Rogério: Que beleza! Muito obrigado, Paulina Chiziane, por essa bela reflexão, por essa belíssima conversa que tivemos aqui hoje, não é? Professora Nazareth Soares Fonseca, muito obrigado pela sua companhia, pelas suas perguntas, foi um privilégio, uma honra, para mim especialmente e também para a instituição que eu represento aqui hoje, a de promover esse diálogo, esse encontro tão bonito entre Nazareth, Paulina e a nossa Academia de literatura.

Nazareth: Maravilha, maravilha. Foi muito bom participar dessa conversa excelente, ouvir a Paulina. Eu acho que é uma experiência de falar com o coração. A Paulina mostrou isso para a gente desde aquela longínqua vinda a Belo Horizonte quando você, Paulina, de certa maneira, destoando das falas muitos raivosas que havia naquela mesa, apaziguou tudo com a sua fala. Então, é muito bom te ouvir. É muito bom saber que uma pessoa como você, Paulina, ganhou o prêmio Camões. Que você seja muito feliz.

Paulina: O melhor para vocês, sem Covid, por favor. Não, haja saúde!

Nazareth: Se Deus Quiser. Se Deus Quiser.

Rogério: Salve, e viva Paulina Chiziane. Muito obrigado.

Paulina: Obrigada.

Nazareth: Obrigada, Paulina! Muito obrigada.

NOTA

1 ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS. “Entrevista com Paulina Chiziane, vencedora do Prêmio Camões 2021”. YouTube, 20 jan. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mt0QmV9rdxg. Acesso em: 6 jul. 2023. Ministério do Turismo, Instituto Unimed – BH, CEMIG, Academia Mineira de Letras apresentam: “Entrevista com Paulina Chiziane, vencedora do Prêmio Camões 2021”. Plano Anual 2021 – Academia Mineira de Letras – PRONAC: 203709. 

2. O texto aqui apresentado resulta da transcrição e adaptação da entrevista cedida à Academia Mineira de Letras.


[i] Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada UFMG. Profa. Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995-2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas de 2010 a 2022. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

[ii] Rogério Faria Tavares é graduado em Direito e Comunicação Social (Jornalismo). É pós--graduado em Marketing e em Gestão de Negócios (MBA Executivo) pela Fundação Dom Cabral. Mestre em Direito, tem o diploma de Estudos Avançados em Direito Internacional e Relações Internacionais pela Universidade Autônoma de Madri. Doutor em Literatura, está no segundo mandato como presidente da Academia Mineira de Letras. Foi secretário adjunto de Comunicação da Prefeitura de Belo Horizonte, supervisor de Relações Públicas da Fiat Chrysler para a América Latina e presidente do BDMG Cultural. É membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto dos Advogados Brasileiros e do PEN Clube do Brasil. Entre seus livros, estão: A noite dos mascarados, Reflexões sobre o direito e a vida (organizador), Entre el poder y el derecho: el Consejo de Seguridad y la Corte Penal Internacional en la situación del Sudán, Contribuições para a história do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, Contribuições para a história do Instituto dos Advogados Brasileiros, Contribuições para a história do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e 20 contos sobre a pandemia de 2020 (organizador).

Texto para download