Entrevista com Odete Semedo[1]


 

Wellington Marçal de Carvalho[i]


Maria Odete da Costa Semedo nasceu em 7 de novembro de 1959, em Bissau, capital de Guiné-Bissau. Atuou como Ministra da Educação Nacional e Presidente da Comissão da UNESCO-Bissau e, também, como Ministra da Saúde Pública e Consultora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) para as áreas da Educação e Formação. É professora da Universidade Amílcar Cabral (UAC), instituição da qual já foi reitora. Coordena a coleção Kebur II e a Série Palavras de Mulher, estudo biográfico de mulheres guineenses. Foi Ministra de Administração Territorial e Gestão Eleitoral. Em 1996, publicou o livro de poesia Entre o ser e o amar. Em 2000 publicou dois volumes de contos inspirados em histórias tradicionais, respectivamente, Sonéá: histórias e passadas que ouvi contar I e Djênia: histórias e passadas que ouvi contar II, pelo INEP. Em 2003, lançou a primeira edição do livro de poesia No fundo do canto.  Defendeu, no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas, sob orientação da Professora Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca, a tese As mandjuandadi – cantigas de mulher na Guiné-Bissau: da tradição oral à literatura. Em 2011 organizou, com a pesquisadora Margarida Calafate Ribeiro, o livro Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história. Ainda em 2011, publica, pela Editora Nandyala, o livro Guiné-Bissau: história, culturas, sociedades e literatura. Em 2013 dá a conhecer a obra A participação das mulheres na política e na tomada de decisão na Guiné-Bissau: da consciência, percepção à prática política. Em 2016 publica, pelo INEP, o livro Os meus três amores - o diário de Carmen Maria de Araújo Pereira: uma visão de Odete Costa Semedo. Atualmente exerce a função de segunda vice-presidente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e, também, de deputada e presidente de província.

Wellington: Odete, mais uma vez quero agradecer-lhe por ter nos oferecido a sua literatura. Tenho uma nova sorte, que é poder conversar alguns pontos, pessoalmente, com a própria Odete Semedo, em Guiné-Bissau. A ocasião se torna muito mais especial ainda, porque estamos a conversar em Cacheu! Isso muda toda a significação.

Odete Semedo: É verdade!

  1. No seu fazer literário, como você relaciona ficção e realidade?

Odete Semedo: Parece complicado, mas não é. O fazer literário, no meu caso, é praticamente um olhar para dentro. Um olhar para trás e toda criação, recriação, vem a partir de um lugar. E esse lugar é o meu lugar de fala, que tem a ver com minha identidade, tem a ver comigo, enquanto Maria Odete da Costa Semedo, guineense, que tem no sangue vários grupos étnicos, vindos da parte do meu pai, da parte da minha mãe. Eu costumo dizer que a literatura guineense procura ser uma literatura “atalho da história”, eu chamo assim. Uma literatura “atalho da história”, que por vezes deixa um véu muito tênue entre a realidade e a ficção. Às vezes as pessoas têm a tendência a confundir aquilo que está aficcionado com a nossa realidade, de tão perto, ou, de tamanha que é a verossimilhança. E o meu fazer literário é parte, como eu disse já, do meu lugar de fala, que é Guiné-Bissau, da minha identidade que são várias. Se eu estiver no grupo étnico da minha mãe, eu sou aquela. Quando estou em Cacheu eu sou esta Odete que interage com todos na rua, nas casas, etc. E enquanto mulher, que age também na política, eu sou aquela mulher que vê na política um lugar de busca de justiça e de uma democracia verdadeira, em que haverá um lugar para todos, em que todas as camadas terão fala, terão voz. E nessa altura eu sou essa pessoa que procura encontrar na política e no fazer político ter uma intervenção, ter uma participação ativa e consciente e solidária também, sobretudo quando se trata da participação de mulheres que muitas vezes é tolhida, muitas vezes é barrada por um machismo encoberto, que não é nu. Você não vê o machismo guineense, assim de cara. É preciso ser muito sutil, é preciso ser muito astucioso para poder descobrir os caminhos da discriminação sobre a mulher e da discriminação por ser mulher. Portanto, o meu fazer literário percorre estes caminhos todos, percorre os atalhos da vida de um país que está-se a fazer. Um país que, enquanto nação, está em construção. E quando um país está em construção, os atropelos são muitos, os descaminhos são múltiplos, as ansiedades são demais, as vontades de fazer são muitas. E várias vezes essa vontade de fazer colide com interesses, os daqueles que querem ser tiranos, daqueles que querem ser antidemocratas, pensando que ‘se tudo pudesse concentrar em mim, eu vou resolver todos os meus problemas’. E, então, eu pergunto: E o problema da população? E as dificuldades do povo? E os obstáculos que se põem àqueles que não têm condições de ir à escola, pela pobreza que assola muitas camadas, muitas comunidades guineenses? Assim, o meu fazer literário está ali também. É esse fazer literário que chega a confundir-se, que chega a levar as pessoas a confundirem, melhor dizendo, a realidade e a ficção ou a recriação. Mas reconheço, também, que a criação, depois de transformada em livro, deixa de ser ‘pertença’ do autor e pode merecer leituras diferentes, dependendo do ponto de vista de cada leitor; ali, qualquer que tenha sido a base da criatividade e dos devaneios (Freud) do escritor, ficam à mercê de interpretações.

  1. É possível dizer que a realidade social de países ditos “periféricos” exige do escritor uma postura mais política de intervenção no espaço público?

Odete Semedo: Não, obrigatoriamente! Porque há escritores que abordam temas bucólicos, da representação da natureza; do amor… de outras belezas, de outros assuntos que não de assuntos políticos. Mas, no meu entender, julgo que cada um de nós que tenha a pena na mão e tem possibilidade de escrever e tenha capacidade de ser criativo, não pode ficar alheio a situações sociopolíticas, ambientais e outras. Você não pode estar em um lugar e fazer de conta, não pode! Então, escritores que são coerentes com a sua posição de cidadão / cidadã que participa na vida ativa não pode, de fato, ficar alheio. Mas isto não quer dizer que todos devem ser considerados escritores de intervenção, ou que todos aqueles que gritam, todos os que não se calam, estão a fazer uma literatura de intervenção. Isto significa, simplesmente, que a pessoa não quer passar ao lado daquilo que se passa no país.

Sinto-me com a responsabilidade de dizer algo por aqueles que não têm espaço onde dizer, por aqueles que podem falar numa esquina, mas que ninguém escuta. E eu, se puder, com o meu poema, ler, gritar e sabendo que pode ser divulgado nos meios de comunicação social nacional e estrangeira, nas rádios comunitárias, ser escutada e ser sentida como aquela que diz aquilo que muitos gostariam de dizer, mas não tiveram ocasião e nem têm como. Então, ali eu sinto que, de fato, esse nosso trabalho é um dever, é um trabalho público também, é um trabalho de servir.

  1. Em sua obra, o leitor percebe, por vezes, uma crítica à tradição, principalmente, ao lugar ocupado pela mulher. Essa percepção é pertinente?

Odete Semedo: É pertinente sim. Acho que a mulher continua a ter um espaço limitado e mesmo quando ela está no espaço que se julga que é da mulher, ela ainda assim é interpelada a reagir a certas atitudes. Então, de alguma forma, aparece a mulher a negar, muito sutilmente, ser uma das mulheres, uma das coesposas. A mulher aparece, também, sendo contestada pela malvadez, caracterizada pela linguagem e pela sua ação sobre os outros. Nesses casos, a mulher não merece condescendência do narrador, assim como o homem não mereceria. Está-se diante da justeza da causa, conforme a anatomia da narrativa: os/as malvados/as têm que ser castigados, têm que sofrer consequência pelos seus atos! Nesta senda, quer o personagem (homem), quer a personagem (mulher) – nos meus trabalhos –, quando castiga, quando perverte a ordem, tem de receber o castigo. E, por outro lado, também, aparece nos meus textos a mulher que é obrigada a seguir a tradição. Nesses casos a intenção é colocar as mulheres numa situação em que elas têm fala, elas têm atitude, têm voz.

Muitas vezes, as mulheres – agora não me referindo a uma personagem específica –letradas, que podiam dizer não a certos abusos, se calam para preservar o casamento, o status social. E, mesmo que sofram todo o tipo de violência da parte do marido, são capazes de relevar e esperar por dias melhores. Essas mulheres têm voz e poderiam usá-la, caso quisessem rebelar-se contra a violência. Eu empresto voz ativa às mulheres para que, mesmo aceitando a tradição, possam recusar a parte nefasta dessa tradição. Porque acredito que as religiões que foram trazidas ao continente pela presença europeia e as que chegaram até nós pela via da expansão dos grandes impérios africanos e rotas comerciais, todos eles vieram e encontraram em muitos dos nossos territórios raízes religiosas ancestrais; encontraram usos e costumes religiosos locais, no que diz respeito às crenças. Encontraram no nosso chão uma religião de matriz africana que não pode ser, absolutamente, banida das nossas vidas, muitas vezes numa atitude de supremacia, paternalismo ou chantagem: Ou deixam os vossos costumes ou não vêm à/ao igreja/templo/mesquita. Nesta linha, julgo que um dos caminhos é seguir apenas a nossa consciência. Talvez os antropólogos e sociólogos terão uma opinião mais consentânea sobre este assunto.

Em um dos meus textos esta questão é tratada com alguma subtileza e de forma pacífica, sem julgamentos. Entendo, porém, que tudo que é nefasto ou prejudicial nas nossas culturas ou religiões deve ser denunciado e banido. É preciso que estejamos atentos a isso e conheçamos as nossas origens, o que elas exigem de nós para, quando alguém nos quiser ludibriar, estarmos em condições de dizer não. Não é isso que a minha religião diz! E, muitas vezes, falta-nos a coragem para dizer esse Não.

  1. Em seu poema “Em que língua escrever” você coloca a questão delicada da relação entre escrita e oralidade. Como você vê o desdobramento dessa questão, atualmente, no sistema literário guineense?

Odete Semedo: Eu entendo que o melhor lugar de convivência das duas línguas ou de mais línguas é na literatura. Porque a literatura tem uma capacidade de abarcar, de aceitar, de albergar e de parir de uma forma diferente. Pode ficar grávida de gêmeos e parir trigêmeos. A literatura tem essa capacidade. Então, aproveitando dessa capacidade da literatura, nós hoje vemos muitos escritores da nova geração, sobretudo poetas, a mesclarem as duas línguas numa convivência muito boa. Outros fazem porque, de fato, o domínio da língua portuguesa não é suficiente. Então, criolizam o português ou simplesmente usam palavras em crioulo mesclado com os da língua portuguesa, num casamento muitas vezes feliz. Há escritores que dominam as duas línguas, mas a língua do coração acaba saindo, ou falando mais alto nos seus gritos, nas raivas e nas mágoas e, também, na manifestação do amor! Então, a literatura é o espaço, por excelência, julgo, de estudo das duas línguas. Qual o nível de convivência, até que ponto essa convivência pode traduzir-se em desenvolvimento da língua portuguesa ou do crioulo? Cada uma destas duas línguas tem o seu lugar natural na vida dos guineenses; ambas são importantes. O que não é certo é entender-se que se investirmos na língua guineense, no nosso crioulo, estaremos a por em causa a língua portuguesa. Antes pelo contrário, mostrará apenas que estamos a dar a devida importância a duas línguas usadas no dia a dia dos guineenses, em momentos diferentes – com certeza – num espaço onde convivem mais de vinte línguas étnicas.

  1. Qual que é a sua relação com o INEP da Guiné-Bissau?

Odete Semedo: Bom, eu sou investigadora sénior, permanente, do INEP já há muitos anos. Há mais de vinte anos. Sempre conjuguei os trabalhos do INEP com os da Escola Normal Superior Tchico Té (ENSTT), dando aulas. Tchico Té é o apelido de Francisco Mendes, antigo Primeiro-ministro da Guiné-Bissau que faleceu em um acidente de viação nos anos setenta, nos primórdios da independência. E à Escola Normal Superior foi dado o seu nome em sua homenagem. Hoje estou a tempo quase inteiro no INEP, apoiando a Universidade Amílcar Cabral, onde já fui reitora. Na ENSTT dou conferências e organizo oficinas de matérias específicas da área de literatura e cultura guineenses e literaturas de língua portuguesa.

  1. Uma obra fundamental para quem quer se aproximar do contexto da Guiné-Bissau é ler os dois volumes dos escritos reunidos de Amílcar Cabral: Unidade e luta. No volume 1 tem uma passagem que eu gostaria de saber qual é a sua opinião sobre essa parte do pensamento do Amílcar Cabral. Vou ler a passagem: “No nosso caso específico, a luta é o seguinte: os colonialistas portugueses ocuparam a nossa terra, como estrangeiros e como ocupantes, exerceram uma força sobre a nossa sociedade, sobre o nosso povo. Força que fez com que eles tomassem o nosso destino nas suas mãos, que fez com que parassem a nossa história para ficarmos ligados à história de Portugal, como se fôssemos a carroça do seu comboio.” (CABRAL, 2013, v. 1, p. 141), Qual a sua opinião?

Odete Semedo: Entendo que foi isso mesmo que aconteceu. Porque o fenômeno da colonização, quando ele vem, ataca a cultura do povo que se pretende colonizar. Ele ataca, minimiza e sobrepõe a sua cultura à cultura autóctone. O leitor atento da história da Guiné-Bissau vai encontrar, nos boletins oficiais da ‘Guiné Portuguesa’, várias leis que acompanharam a implantação da administração colonial portuguesa. Uma das leis mais marcantes, negativamente, para o desenvolvimento do povo guineense foi o Estatuto do indígena. O Estatuto do indígena impedia o guineense, nativo, de usar tudo aquilo que fazia parte da sua identidade, como professar a religião de matriz africana, as danças, o uso do pano, etc... Caso fizessem uso de tudo aquilo que era da sua cultura, já não poderiam ser considerados ‘civilizado’, porquanto para se ser civilizado e poder aceder aos serviços públicos, era preciso negar tudo que era prática cultural que um guineense faz e que, também, os seus conterrâneos faziam à época. Dançar ao som do tambor ou bombolon; chorar aos prantos, gritando, quando morre um ente querido; comer em cabaças com a mão; andar descalço de vez em quando, ou andar descalço o tempo inteiro; manter os cabelos encarapinhados ou entrançados... Tudo isto era tido como uma afronta à ‘civilização’ e era um dos instrumentos de melhor subjugar a população. Muitos foram alienados e considerados civilizados. Mas, deixaram de ter aquele cerne da sua cultura, perderam parte da sua identidade. Então, a administração colonial fez o trabalho de ‘lavagem cerebral’, para que a população se mantivesse preto por fora e branco por dentro (Fanon). Para que passassem a pensar como branco, minimizando a sua cultura, desprezando os seus hábitos, menosprezando aquilo a que estava habituado a comer e que os seus também comem.

Portanto, quando Cabral fez este pronunciamento, foi num contexto da luta de libertação nacional, em um momento de mobilização das massas para essa causa e para chamar a atenção do povo em luta que essa luta é um ato de cultura. Porque quando o colonizador ataca a cultura do colonizado, a minimiza, na intenção de aculturar, ou de excluir essa cultura para montar a cultura dele, o colonizador, nessa linha, está a fazer com que o colonizado se perca como pessoa de direito, com uma identidade. Então, era necessário lutar para resgatar essa identidade. Resgatar e manter. E Cabral também chamou a atenção dizendo: nós sabemos que há muita gente que ficou do lado do colonizador. Muitos deles hoje podem ser denominados de pequenos burgueses. Mas esses são nossos irmãos, não podemos correr com eles. Só que eles têm que se suicidar, enquanto pequena burguesia, para renascerem como defensores do povo, como povo que luta para o desenvolvimento, crescimento e construção da sua nação. Então, eu creio que é nessa base que Amílcar Cabral fala da colonização como um atentado à nossa identidade e chamou a atenção àqueles que estavam na luta para que fossem perseverantes. Chamou a atenção, também, àqueles que não foram à luta para, embora não na zona libertada, que entendessem qual era o cerne da luta, a razão principal da luta da libertação, que era não só libertar o país, não só ter o território, o espaço geográfico, de volta, mas ter o povo de volta, recuperar a identidade adulterada, recuperar a cultura desviada, ter as nossas línguas de volta, ter a nossa capacidade de criar e desenvolver de volta.

  1. E qual é a sua relação com o PAIGC?

Odete Semedo: Eu sou militante. Desde os meus quinze anos. Logo depois da independência que eu, naturalmente, entrei para a juventude do PAIGC. Fiz parte de grupos de trabalho de limpeza da cidade, trabalhos voluntários, trabalhos de alfabetização de adultos nas sedes; e desde então, ora com mais frequência ora com menos, mas sempre no PAIGC à disposição do partido. Chegou a uma altura que fui chamada para fazer parte do governo. Eu tinha trinta e poucos anos quando aceitei esse desafio. Foi a primeira vez que entrei para o governo e como Ministra da Educação. Com muito receio – era para mim uma grande responsabilidade –, mas lá fui! Tentei, de fato, dar o meu máximo, acho que dei o meu melhor. O que não tive foi tempo suficiente, porque houve destituição do Governo, com o desencadear de uma guerra civil. Durou onze meses, a guerra de 7 de junho de 1997/98, que acabou por abalar o país e até hoje a Guiné-Bissau não se reencontrou.

  1. Em várias de suas estórias de Sonéá e Djênia pode-se perceber uma conclamação da esperança. Isso é proposital?

Odete Semedo: É proposital. Porque julgo que a esperança é a nossa coluna vertebral. Quando o ser humano perde a esperança seja do que for que é positivo, pode perder o rumo. Eu entendo que a esperança não é algo supérfluo. Quando se tem esperança é porque se tem um plano. Só tem esperança quem tem planos, quem não tem planos não pode ter esperança. Quando eu digo: Eu tenho esperança, a minha esperança é numa Guiné-Bissau desenvolvida, num país em que os guineenses pensem e sintam o país, antes de tudo. E quando pensamos o país, nós estamos lá, se o país estiver numa boa rota lá estarei, porque faço parte da tripulação. Então, é um barco onde todos nós estamos. Por isso não posso pensar só em mim, só naquilo que eu possa obter e o resto que fique para outro plano. Creio que a esperança é um móbil. É o que me move a cada dia que eu acordo. E agradeço a Deus, às almas dos meus pais, aos nossos ancestrais. E digo: “Deus obrigado por mais um dia! Mas, continue iluminando a minha esperança, para que ela se concretize.” Não é esperar que a esperança se concretize. Mas, trabalhar no sentido de o meu plano, de a minha participação poder mudar alguma coisa. Não é cruzar as mãos à espera de milagre. É preciso dar passos em busca das nossas realizações.

  1. Percebe-se uma presença forte de uma mescla das oralidades, da tradição e da memória viva nos dois volumes de passadas. Essa imbricação é um princípio de seu projeto literário?

Odete Semedo: De alguma forma sim. Mas, por outro, é uma vivência. E creio que é uma forma de manter a minha mãe viva em mim, a minha infância. Porque eu ouvi muitas histórias contadas pela minha mãe e, então, essas histórias fazem parte de mim... É como se ela estivesse ainda viva. Mesmo, hoje, as histórias que eu já tenho prontas para constituir Histórias e passadas III, sinto que essa presença está lá. E está lá, num canto de cada storia! Essas storias/histórias são a minha ligação com essa memória viva. É aquela busca de completude que cada um vai procurando a vida inteira, pensando: “É nisto que vou encontrar-me!” E ao finalizar o conto sente que ainda não foi daquela vez. Não me encontrei aqui! Talvez no próximo conto. E vou escrevendo, e cada vez que eu escrevo, na minha criatividade aparecem as minhas fantasias (coisas que vivi – pessoas que me terão dado carinho, as que me ensinaram, que brigaram muito comigo para aprender algo que não quis e/ou não pedi que me ensinassem); as minhas lembranças que acabam fazendo parte da storia que (re)crio. Um episódio que vai aparecer em um dos contos é o de meninas que aprendem a marcar (bordar). Eu entendia, quando adolescente, que não precisava saber marcar nem costurar. Para a minha mãe era necessário aprender essas coisas. E já na vida adulta apercebi-me da utilidade dessa aprendizagem e reconheço a utilidade dos vários caminhos que me foram apontadas por ela. E esses vários caminhos: os panos, as histórias, a cabaça, o trabalho doméstico, fizeram de mim a Odete que hoje sou. Então, isso se revela e vai se revelando um pouco em cada conto, um pouco em cada escrito meu.

  1. Poderia nos falar um pouco sobre o seu trabalho como coordenadora da série de publicações “Palavras de mulher” e do núcleo de “Mulher e gênero do INEP”?

Odete Semedo: É algo novo, Palavras de Mulher, foi uma intuição. Eu falei com a tia Carmem Pereira uma vez, ela entregou-me o diário e pediu-me que eu digitasse e imprimisse que ela queria entregar às pessoas para lerem aquilo que ela escreveu. Eu pego no diário, leio o diário e eu entendi que havia coisas que não estavam claras. Que eu precisava saber. Mas, de resto, pensei: “Não. Este é mais do que um diário. Isto é uma obra.” E perguntei-me: “Porque não criar algo?” Já que tínhamos uma coleção literária Kebur, porque não uma série. Que tal “Palavras de Mulher”? E isso veio, não por acaso, porque eu já tinha visto outras obras sobre mulheres e outras sobre palavras. Em que o vocábulo “palavras” estava ali. Eu disse: “Não, vou ver como construir isto.” E acabei construindo e apresentando a proposta “Palavras de Mulher”, que foi bem aceita pela então direção do Inep. E eu fiz a programação, fiz um projeto, mandei para a União Europeia. A União Europeia aceitou e estamos caminhando com isso. Daqui a pouco sai da Francisca Lucas Pereira e da Teodora Inácia Gomes. Tenho quatro obras de mulheres combatentes que vão sair dentro deste projeto. E ainda tenho poesia de Cadi Seide. É uma mulher, militar, médica e ministra. Eu costumo brincar com ela e dizer que ela é quatro “emes”, porque ela é mulher, ela é militar e ela é médica. Então, esse casamento de várias mulheres atravessando o meu caminho. E sobre o Núcleo. Como o diretor viu o entusiasmo com que estou trabalhando esses livros, essas obras e viu também que eu trabalho, dou cursos, conferências sobre gênero e mudanças institucionais em África, ele entendeu que nós deveríamos criar é um Centro de Estudos Culturais e Gênero, Mulher, etc. Para mim, não se pode criar um Centro assim de repente. Nós temos, primeiro, que criar as bases. Primeiro, um grupo de trabalho, um núcleo. E vamos organizando. No final, nós vamos ver o resultado, qual será. E ali criaremos o Centro e estaremos em condições de trabalhar com o pessoal que estiver disponível e com competência para estar conosco nessa empreitada.

  1. E sobre a Associação de Escritores Guineenses?

Odete Semedo: Olhe eu faço parte da Associação, a AEGUI que é a Associação de Escritores Guineenses. Estamos um grupo de pessoas, não temos meios. Muitos têm escritos que ainda não foram publicados, por falta de meios. Mas, resolvemos acordar Bissau. Ainda não temos condições de acordar a Guiné, para sair para o interior do país. Mas, recriamos “Sextas Poéticas”, porque já existem em vários países como no Brasil. Em Minas Gerais, Belo Horizonte, no Palácio das Artes, acontecem as Terças Poéticas, com um formato mais ou menos igual ao que nós utilizamos. E nós estamos a ir bem. Temos um momento de duas horas, na última sexta-feira de cada mês, em que nós estamos a trabalhar com a camada mais jovem que escreve. Estamos a puxar por eles, para começarem a ler diante do público, a declamar. As que podem memorizar declamam. As que não podem, fazem uma leitura muito boa dos textos ou deles, da criação deles, ou textos de autores conhecidos nacionais e estrangeiros. Portanto, esta atividade está a andar, a Associação está a crescer e estamos a receber gente não só da Guiné-Bissau, mas, de fora da Guiné-Bissau que queiram se juntar a nós nesse trabalho lindo que é o trabalho da escrita, o trabalho da cultura.

  1. Odete, mais uma vez agradeço e vamos suspender a conversa por hora, mas é só um começo de conversa. Então, em nome da professora Nazareth e em meu nome, muito obrigado!

Odete Semedo: E eu agradeço a professora Nazareth por nos ter colocado, assim, na mesma barriga. E ter cuidado de nós e das nossas teses. É com muito orgulho que eu falo da forma como a minha tese foi tecida. E hoje é uma tese que está sendo muito procurada. As pessoas vêm falar comigo, eu digo onde encontrar. Não quero estar dando assim em pendrive. Mas eu digo: “Tem ali, você pode ir procurar. Na biblioteca da minha Universidade [PUC Minas] você encontra. Você pode acessar.” Estamos a avançar com este trabalho, que eu acho que é um trabalho lindo que a Nazareth me ajudou a coser, me ajudou a costurar. Acompanhou todas as minhas bandas e ela ainda, na altura de costurar tudo e fazer os cadilhos, lá estávamos, nós duas, mulheres. E a duas mãos a tecer e a concluir a tese que, nós duas, fomos defender diante daquela banca muito rigorosa.

Wellington: Muito bem! Muito obrigado!

Odete Semedo: E as minhas mantenhas para Nazareth!

NOTA

1 Entrevista concedida em Cacheu, Guiné-Bissau, em 22 de março de 2017, durante missão de prospecção do Centro de Estudos Africanos da UFMG. Publicada originalmente como anexo no livro resultante da tese de doutorado do entrevistador, intitulado A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila. Em 2022, integrou o v. 10, n. 1 da Caletroscópio - Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos da Linguagem - UFOP.

Referências

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria: unidade e luta. Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2013. 299 p. (Obras escolhidas de Amílcar Cabral, 1).


 [i] Wellington Marçal de Carvalho é Pós-Doutor em Estudos Literários na FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras pela PUC Minas. Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas (GEED).  Autor de: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014) e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). Coorganizador de Deslocamentos estéticos (2020). Integrante da Comissão editorial do literÁfricas. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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