Revelação Póstuma

Francisco de Paula Brito[i]

 

Esse conto-folhetim, embora não seja muito extenso, apareceu em dois números do Jornal do Commercio, nos rodapés das primeira e segunda páginas, como vemos na imagem abaixo:

    

 

Figuras 1 e 2: Jornal do Commercio, 09 de março de 1839, p. 1 e 2 – rodapé. Consultado no: Arquivo Edgard Leuenroth, IFCH, UNICAMP.

 

 

Figuras 3: Jornal do Commercio, 10 e 11 de março de 1839, p. 1 – rodapé. Consultado no: Arquivo Edgard Leuenroth, IFCH, UNICAMP.

 

 

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Revelação Póstuma

Francisco de Paula Brito

Jornal do Commercio, 9 e 10 de março de 1839

 

Querida amiga. Quando receberes esta, já eu não existirei; todas as cautelas estão tomadas para que assim aconteça; entretanto, é necessário que desafogue o meu coração, que depois da minha morte se saibam os motivos dos meus pesares; é necessário que a terrível lição que me foi dada possa aproveitar a alguém.

Sabes que contava apenas quinze anos quando me casei, mas não sabes dos pormenores deste acontecimento, que nunca transpiraram. Era eu as delícias de meus pais; capitalistas abastados, e eu sua filha única, meus dias se passavam no seio dos prazeres e dos divertimentos. Teatros, bailes, passeios, elegantes vestidos, ricas joias, tudo era para a sua Carolina; e eu! ... eu mal sabia aproveitar tanta ventura; supunha que tudo, e ainda mais, era-me devido; cuidava que eu existia em um jugo insuportável, e que devia apressar quanto antes a minha emancipação. Louca! Como paguei caro este erro!

Entre os mancebos que mais assíduos mostravam-se em me fazer a corte, era um Felício; vestido sempre no último gosto, verdadeiro petit-maitre, com grandes alfinetes de brilhantes, boas memórias, excelente cadeia de ouro, e lindo relógio, dançando melhor que ninguém, oferecendo o seu braço a seu par com uma graça que mal se pode imaginar, eu julguei que era ele superior a todo o elogio, que feliz seria aquela que chegasse a ser sua, e por isso nem tive dúvida em receber as suas declarações, nem em lhe fazer outras iguais.  Só eu terei sido enganada pelas exterioridades?

E minha mãe adormecida, entretanto, com uma inteira confiança em mim, não via o despenhadeiro em que eu me precipitava. Verdade é que muitas vezes me dava os melhores conselhos, e expunha-me os perigos do mundo, sobretudo os de uma donzela; mas, ignorante do que se passava entre mim e Felício, seus discursos eram apenas generalidades, que não atacavam o mal onde verdadeiramente estava; e eu, conquanto desse muita atenção às suas palavras, entendia, contudo, que nada do que dizia era aplicável a Felício: eu o julgava um modelo, que devia ser dado aos outros homens para exemplo. Mães! mães! Vigiai sobre vossas filhas, daí atenção a essas relações que tomam em solteiras, raras vezes deixam de ser fonte de amargos pesares; consenti apenas junto delas aqueles que lhes consentireis para maridos, e que tendes uma quase certeza que o serão.

Não te contarei como Felício foi ganhando terreno em meu coração, e como foi crescendo a minha ilusão; seria a história de todos os namoros; bastará dizer-te que, no fim de algum tempo, uma noite que achávamos em casa a sós, eu, minha mãe e meu pai, este, com sorriso de mofa, contou a minha mãe que Felício tinha-lhe pedido a minha mão, e que fora rejeitado, acrescentando que, por sua vontade, nunca seria sua filha de um homem cujos meios de vida eram ignorados, cujos costumes ninguém sabia, podendo apenas chamar-se um moço do tom, da moda. E acreditá-lo-ias tu? Meu amor era violento, nunca me tinha vindo à ideia que Felício seria rejeitado, e, contudo, se tive uma primeira emoção, se uma viva vermelhidão subiu-me imediatamente ao rosto, e logo uma palidez mortal, as palavras de meu pai me subjugaram, e nesse momento resolvi suspender todas as minhas relações com o indivíduo assim rejeitado. Quão pouco durou essa resolução!

No dia imediato, uma carta dele me foi entregue, na qual me descrevia, nos mais enérgicos termos, a sua paixão, os seus sentimentos, e a desesperação que o possuía pela resposta de meu pai; pedia-me uma entrevista em meu quarto, onde me assegurava tinha meios de se introduzir furtivamente. E acreditá-lo-ias ainda? Era a primeira entrevista secreta que oferecia, e eu não tive ânimo para recusá-la. Que razões me levaram a tanto? Persuadir-me-ia de que devia consolações a quem por mim sofria dessa sorte? Não sei; o sim fatal foi dado, sem pensar nas consequências que poderia ter semelhante passo. Meia noite foi a hora designada.

Não é possível, querida amiga, que imagines as ânsias em que passei o tempo que precedeu a essa hora: até às onze, estive com meus pais na sala; ignorando, porém, os meios de que dispunha Felício, desde as Ave-Marias, o mais pequeno ruído me fazia estremecer. Debalde procurava me distrair; quis ler, não pude; sentei-me ao piano, meus dedos não acertavam com as teclas; fui passar um por um todos os meus vestidos e enfeites, mas asseguro-te que nada vi; o objeto de meus pensamentos era Felício; o menor ruído me fazia recear que fosse descoberto; a cada instante o supunha encontrado com meu pai, e via o furor deste. Quanto dera então por ter negado a fatal entrevista! Tormentos tais só poderão ser igualados pelos que depois sofri.

A hora aprazada chegou, e Felício entrou no meu quarto. Ainda te pouparei os discursos que tivemos; resolveu-me o acompanhar, fomos dali a uma igreja, onde um sacerdote nos deitou as bênçãos núpcias. No dia imediato, fizemos saber a meus pais que nos tínhamos casado, e lhes pedimos perdão de termos feito contra sua vontade. Minha fuga foi sempre ignorada do público; meu pai publicou o nosso casamento como do seu agrado e consentimento; em particular, porém, nunca mais me tratou com a afabilidade antiga. Minha mãe se mostrava também ríspida em presença de meu marido, mas quando ficava só comigo, então derramava ardentes lágrimas, chorava o meu erro, e como que queria indenizar-me com carinhos, do rigor que em outras ocasiões empregava. A falta dos carinhos paternais foi o meu primeiro suplício, o segundo foi a morte de minha mãe, acontecida pouco mais de um ano depois. E como a chorei eu! Minhas lágrimas eram sinceras; era a única pessoa em cujo seio depositava os meus segredos.

Dois anos se passaram, sem que os sentimentos de meu marido mostrassem a menor alteração; pelo contrário, seu amor parecia crescer cada vez mais. Apenas casado, comprou uma boa carruagem, além de um excelente carrinho que já tinha; um elegante cavalo foi destinado para os meus passeios, uma ótima chácara foi alugada, bailes, teatro, passeio, eram a nossa única ocupação; nossa casa estava cheia dos asseados móveis; bronzes, mármores, cristais, lindas bagatelas, tudo anunciava profusão e luxo. E donde tirava meu marido dinheiro para tudo? Eis aí o que eu ignorava; mais de dois anos se passaram sem que soubesse donde provinham as suas rendas, nem me atrevia a lhe perguntar, porque o amava em extremo, e ao mesmo tempo lhe tinha um respeito como se tem a um pai, e ele tinha tomado comigo um tom decisivo, que nunca eu tinha que replicar a suas palavras.

Dois anos se passaram, e, a não ser a falta do carinho paternal, e a morte de minha mãe, fora eu verdadeiramente feliz. Foi passado este tempo que, tendo ele saído uma manhã, e entrando eu ao acaso no seu gabinete, vi o bilhete seguinte aberto, que provavelmente tinha esquecido:

Fernando. Ontem perdi dez contos para o Silveira; como não tinha vintém, e as dívidas do jogo devem ser sagradas, vê se me podes arranjar essa quantia entre os nossos amigos. – O teu Felício.

O efeito que em mim produziu este bilhete tu o não podes imaginar, ninguém, ninguém, somente aquela que se tiver achado em semelhante posição. Meu marido jogador! ... perdendo dez contos em uma só noite! ... E sem ter um vintém! ... Quem era este Fernando, cujo nome não me lembrava de ter nunca ouvido pronunciar? Quem eram estes amigos, entre os quais se deviam arranjar a soma perdida? ...

Às três horas voltou, e trazia consigo dois sujeitos, que me disse ficariam para o jantar. Esforços foram me necessário fazer para não deixar ver o que sentia, e creio que o consegui, pois Felício não mostrou ter visto alteração sensível. Ele foi amável como sempre, se não mais: encheu-me de carinhos e atenções, dir-se-ia que íamos casar em o dia seguinte. No fim do jantar me anunciou que, como minha saúde se achava fraca, e o campo parecia me agradar, tinha comprado a chácara que tínhamos até então de aluguel.

Nova surpresa acresceu à minha surpresa; nunca eu dera mostras de me comprazer na chácara, minha saúde era boa, e demais, quando ele tinha sofrido perda tão considerável, e quando não tinha um vintém, a compra de uma propriedade que devia custar não poucos contos de réis e que nada rendia! ... A tanto não pude resistir, e dirigindo-me a ele lhe disse: – eu creio que não era esta à ocasião... – Um olhar seu, daqueles que sabia lançar a tempo, fizera-me emudecer. Os dois hóspedes deram grandes elogios aos que chamavam amor e delicadeza de meu marido, que assim buscava me agradar. Pouco depois saíram os três.

Querida amiga, é agora que principia o inferno da tua Carolina. Dois anos se tinham passado, sem que me tivesse demorado um só momento a pensar na minha sorte; arrebatada sempre por um turbilhão, nem tinha podido, nem mesmo me tinha lembrado de pensar na minha posição; porém, agora! ... agora imaginava que cada superfluidade que Felício me tinha comprado, havia sempre sido subsequente a alguma grave perda; agora eu me achava a mulher de um jogador, e esperava que ele e eu teríamos o fim dos jogadores.

Ao menos não tinha filhos. Com quanto ardor os tinha desejado! E, nesse dia, o não tê-los me servia de alívio. Mal poderia me lembrar que brevemente choraria pôr não os ter. Como são inconstantes as coisas humanas!

As visitas de meu pai eram raras; no dia seguinte, ele me veio felicitar por nossa nova aquisição. Novas dores me apunhalaram; milhares de vezes o segredo fatal esteve sobre meus lábios; porém, um pejo irrefletido, o desejo de o não querer magoar, e, sobretudo, a vaidade de não querer que ele visse realizados os seus funestos pressentimentos, me embargaram a voz. Ele conheceu que eu estava triste; uma dor de cabeça me serviu de desculpa.

Nesse mesmo dia me disse meu marido que um jantar devia ser dado na chácara, como para tomar posse dela; e, para esse fim, devia eu para ali partir no dia seguinte. Parti, e começaram os preparativos para a função, que devia ser esplêndida, no domingo próximo. Na quinta feira, porém, me disse Felício, que não podia ter lugar o jantar no dia aprazado, e que, por isso, ficava espaçado.

É chegada a ocasião de dizer-te que, quando eu estava na chácara, muitas noites dormia Felício na cidade, servindo-lhe de motivo a distância. Não me causava isso a menor perturbação; tanta confiança tinha eu nele, e eram tão deliciosos os momentos de suas chegadas, que a sua ausência de um ou dois dias era para mim um prazer. Depois do dia fatal de que acabei de te falar, a causa destas faltas me foi conhecida; e agora, quando a noite não aparecia, eu ficava na mais viva agitação; via-o sentado à mesa do jogo, nessas casas infames, cuja descrição tenho lido e ouvido; figurava-o entre homens das classes mais vis, disputando a quem mais ligeirezas faria; com os olhos fitos sobre o dado fatal, ou sobre a mão do terrível banqueiro, minha imaginação o pintava, já saltando de contentamento, já pálido como um cadáver de três dias... Supõe tu na ideia quanto puderes de mais triste, nada equivalerá aos tormentos da tua amiga.

Quinze dias passei nesta ansiedade; durante eles, quatro vezes vi Felício; o infame cada vez redobrava seus carinhos, eu o acreditava sincero nessa parte; mas, a ideia terrível do jogador não podia me deixar, e minha saúde começou a sofrer. Em uma tarde, uma violenta febre se me declarou; ele estava na cidade; o mal crescia; era pouco mais de meia noite, os cavalos foram postos na carruagem, e eu a caminho; às três horas, estava à porta do quarto em que costumávamos dormir. Esperava encontrá-lo, pois, nunca se recolhia depois da meia noite. Entro; à luz duvidosa da lamparina vejo sobre meu leito o vulto de uma pessoa que, acordando à bulha que fiz, solta estas palavras:

– Ainda agora, Felício? Já estou cansada de dormir.

Era Isabel, a minha mulata, a minha escrava Isabel, que, deitada em meu próprio leito, esperava por meu marido que, disputando, entretanto, os acasos da fortuna, ou antes, os da arte, devia vir depois em seus braços, ou alegrar-se de seus lucros, ou esquecer-se de suas perdas... Caí sem sentidos sobre o soalho.

Era alto dia quando volvi a mim. Aos pés da cama em uma cadeira, estava sentado meu pai; à cabeceira, Felício, com uma de suas mãos pegando em uma das minhas, e com a cabeça encostada na outra com sinais de profunda aflição. – Meu pai! – foram as minhas primeiras palavras, Felício deu como um salto; suas feições exprimiram o prazer, e imediatamente chegou a mim um copo com uma bebida, e me recomendou tranquilidade e silêncio. Silêncio... oh! sim, eu o guardava; meu pai estava presente, e não era diante dele que eu desafogaria o meu coração.

Pouco depois, Felício tocou a campainha, e Isabel, a mulata Isabel, me trouxe um caldo. Se viras a maneira humilde com que se apresentou! Debalde tive constantemente os olhos fitos nela; nunca se puderam encontrar com os seus; meu marido pareceu a nada dar atenção. Tomava eu o caldo, quando bateram com força na escada a procurar Felício; era, diziam, um corretor; Felício foi ver o que lhe queriam, e voltou alguns momentos depois, dizendo que lhe era absolutamente necessário sair para negócio da maior urgência, o que fazia por me ver já livre do perigo; que, entretanto, recomendava a meu pai, a quem suplicava ficasse comigo até a sua volta; e a Isabel deu as instruções mais miúdas sobre o que tinha a fazer para o meu tratamento. Ninguém poderia ter mais cuidado nos preceitos; ninguém os podia executar mais à risca do que os executou a minha escrava.

Eis-me absorvida em minhas reflexões; meu pai as não perturbava, para me não fazer quebrar o silêncio. Já eu não via o jogador, não via o esposo infiel; era o ultraje de ver meu leito manchado por minha própria escrava.

– Que homem vil! dizia eu; se ao menos fosse fascinado por algumas dessas mulheres brilhantes que enchem nossos salões! Se ao menos a formosura o deslumbrasse! Se em uma de suas orgias noturnas se deixasse vencer por alguma dessas imundas prostitutas, que vendem seu corpo por dinheiro! ... eu o pudera desculpar... Mas, que seduções, que atrativos pode ele encontrar em sua própria escrava? Mulher que nunca pode elevar até a si, e, por consequência, que o obrigava a descer até ela!

Tanta baixeza de sentimentos me custava a conceber. E era o homem da moda, o homem do grande tom que, à porfia, era buscado para todos os salões! Quando Isabel aparecia, tinha vontade de mandá-la pôr de rastos [sic] fora de meu quarto; porém meu pai ali estava, meu pai que me prendia. E podes tu imaginar os meus tormentos? Se cada um me arrancasse uma lágrima, os olhos da tua amiga não bastariam para chorá-las.

Davam três horas quando entrou meu marido; pareceu-me em extremo abatido; foi jantar, e meu pai com ele; findo o que, este se retirou. Chegando-se ele então a meu leito, interrogando-me sobre o meu estado, e vendo que estava fora de todo o perigo, me disse:

– Nunca uma infelicidade vem só; além de tua doença, outro infortúnio, menor por certo, pesa sobre mim; estou ameaçado de uma grave perda, e meu crédito de quebra.

Esta notícia foi aterradora para mim; mas ele continuou:

– Não te assustes; ainda tenho grandes recursos; e, mesmo, se vencer esta dificuldade, e se puder fazer que esta notícia não transpire, a minha fortuna ficará segura para sempre.

Não sei hoje, querida amiga, se estas palavras eram verdadeiras, ou se eram apenas um meio de distrair a minha atenção; então eu as considerei sinceras. A infidelidade de meu marido desapareceu da minha ideia; vi Isabel sem lhe dar atenção; meu entendimento só se ocupava com o infortúnio que ameaçava, não a mim, mas ao homem a quem me achava ligada por um laço indissolúvel. Eu aborrecia o jogador, porém amava meu marido; eu sabia fazer abstração destas duas qualidades, e o perigo em que ele se achava me fazia esquecer da sua infidelidade.

Alguns dias se passaram, e a serenidade voltou ao rosto de Felício. Eu também fui melhorando sensivelmente; e, no meu espírito, se foram equilibrando as ideias do jogador, do homem infiel, daquele que sofrera perdas, e de meu marido; elas se combatiam mutuamente; e, umas vezes, odiava aqueles; outras, amava a este ou me compadecia dele, segundo a ideia que na ocasião prevalecia. Mas, nunca meu coração desabafou; com quem o faria? com meu pai? a vaidade, a louca vaidade me embaraçava. Com Felício? o momento da exaltação tinha passado, a timidez tinha volvido. Cheguei mesmo em breve a esquecer-me de que fora infiel; era tal a maneira por que me tratava, que o supus verdadeiramente arrependido; perdoei-lhe, e disso o procurei convencer. Quanto a Isabel, uma só palavra lhe não disse para não despertar em Felício a ideia de que meu perdão não era total e absoluto.

Algum tempo se passou neste estado; os médicos me aconselharam o ar do campo. Foi assentado por meu marido que voltaria eu para a chácara; Isabel foi contada entre as escravas que deviam acompanhar-me. Na véspera da partida, à noite, houve em nossa casa brilhante reunião; o que, porém, me admirou mais foi que me comprasse meu marido nesse dia uma nova carruagem, muitos diamantes e uma porção tal de enfeites, que parecia que eu ia ser pela primeira vez apresentada em alguma Corte. Soube-se isto na minha sala; todos me felicitaram pela ventura de minha união com Felício, e a este, as senhoras pela maneira delicada com que me tratava. E eu estava triste; lembravam-me os dez contos de réis perdidos em uma noite, minha ignorância sobre a origem dos fundos de meu marido; meu coração me pressagiava desastroso futuro. Meu marido se mostrava demasiadamente satisfeito; sempre ele se mostrou alegre com os elogios que recebia.

Parti para a chácara, e Felício ali ia pernoitar todas as noites, voltando ao romper do dia para a cidade, a cavalo ou no seu carrinho. Meses eram passados; a ideia de me ver associada a um jogador me perseguia sempre; mas, ao menos, tinha-me esquecido a sua infidelidade. Isabel me servia com o maior cuidado e submissão.

Uma madrugada, se despediu ele de mim com mais carinhos do que nunca; parecia que a nossa separação nunca lhe fora tão custosa; mais de uma vez voltou a dizer-me alguma coisa, a dar-me o último beijo. Afinal saiu, e eu fiquei na cama, como sempre costumava, mas não pude mais conciliar o sono; eu lamentava a minha sorte, que, tendo-me dado um marido tão amante, ao mesmo tempo, o fizera escravo de um vício tão funesto. Levantei-me e fui dar um passeio pela chácara. Mais de duas horas se tinham passado desde que meu marido se tinha despedido de mim e, todavia, por entre as árvores, eu o vi galopando pela estrada, no seu cavalo, para o lado da cidade; o portão me ficava do lado oposto. Mil reflexões me assaltaram. Esquecer-lhe-ia alguma coisa? Teria por isso voltado? Mas então, porque não me falou? Recearia talvez acordar-me e incomodar-me. Eu que volto para casa, encontro Isabel colhendo flores, que todos os dias costumava levar ao meu quarto, antes que me levantasse... um raio não seria mais pronto... supus que meu marido se demorava com ela. E podes tu conceber o estado em que fiquei? Não; nunca tu sofreste tanto; não podes imaginá-lo.

Porém, minhas suspeitas podiam ser falsas; determinei coligir provas mais evidentes. Dia de horror! Dia de angústias foi esse! E como foi demorado?! Que intervalo espantoso mediou desde esse momento até a hora de jantar! e desde o jantar até o pôr do sol! e desde ao pôr do sol até a chegada de Felício! Parecia-me que os relógios não andavam que o sol estava parado. Ele chegou enfim, e eu tive coragem bastante para nada lhe deixar perceber.

A noite se passou como sempre; a madrugada volveu; ele se levantou e preparou para sair. Tinha dito na véspera que iria de carrinho; ouvi rodar o carrinho pelo pátio calçado.

Um quarto de hora seria passado; levanto-me, vou ao quarto de Isabel, e não a encontro! Minhas suspeitas crescem. Vou à direita do portão da saída; aí encontro o carrinho, que sossegadamente esperava! ... tudo é realidade. Volto, vejo a entrada do pátio, um quarto que ali havia, com a porta cerrada... empurro-a... entro... meu marido e Isabel ali estavam!!! Saio; com violência e puxo a porta... volto para casa. Meu marido me segue... Vou subir os degraus... ele chama por mim... quero fugir-lhe mais depressa... tropeço... caio... o meu sangue inunda a escada. Os escravos correm todos, e todos presenciam este espetáculo! de um lado, o bárbaro aceso em furor! ... de outro, eu nadando em meu próprio sangue! Agarra em mim, quer arrastar-me; peço-lhe que me acabe a existência. Vendo baldados os seus esforços, tomando um sangue frio aparente, diz-me:

– Ora pois, senhora, tendes-nos dado em espetáculo; parece-nos bonito? Talvez fosse melhor mandar chamar os vizinhos. Tende juízo; recolhei-vos ao vosso quarto.

– Não, nunca, enquanto não me vingar da infame, enquanto ela estiver dentro destas paredes. Agarrai, agarrai todos em Isabel; amarrai-a, levai-a já...

Os escravos pareciam dispostos; ela estava presente.

– Não, gritou Felício, ninguém lhe ponha a mão.

– Como ninguém? Disse eu; arrastem-na já daqui; nem mais um momento nesta casa; eu também sou senhora; tenho dito; arrastem a infame daqui para fora.

Já os escravos a agarravam, quando Felício se chegou a ela, e lhe fez um muro com seu corpo.

– Ninguém, ninguém lhe bula; senhora, atendei ao seu estado, respeitai a mãe de meu filho.

Atender ao seu estado! respeitar a mãe do seu filho. Estas palavras me causaram tanto horror, que, no estado em que estava, corri pela porta fora, e me dirigi ao portão. Debalde Felício corria atrás de mim, gritando; em um momento me achei junto ao carrinho, e, entrando nele, ordenei ao boleiro que partisse a todo o galope.

– Forro, se Felício me não apanha – disse eu. Em menos de uma hora me achei à porta de meu pai que me recebeu.

Foi aqui que contemplei todo o horror da minha sorte; nenhuma conciliação era mais possível com meu marido. Isabel era a mãe de seu filho! E a mãe de seu filho prevalecia à sua mulher! E eu não tinha um filho! Isabel tinha tomado o primeiro lugar, e eu não podia descer abaixo de minha escrava. Estas considerações têm minado minha existência, uma tísica pulmonar ameaça dar breve fim aos meus dias. Meu pai ignora tudo; apenas sabe que tive uma desavença com meu marido; provável é que assim fique até a minha morte.

E Felício? Goza ele ainda da consideração e estima públicas? A polícia o persegue, já como dono de um jogo de roleta, já por se lhe atribuir a falsificação de muitas firmas. Ele se acha oculto, e nossos bens vão ser divididos por um sem número de credores, não bastando para pagar o quarto de nossas dívidas.

E poderia eu desejar viver? Não, não o desejo; venha a morte, que resignada a espero; então, tu receberás esta carta, comunicá-la-ias a meu pai, e chorareis ambos a infeliz.

Carolina

P. B.

 

 


i Paula Brito escreveu três contos, a saber: “Revelação póstuma” (Jornal do Commercio, 09 e 10 de março de 1839), “A mãe-irmã (história contemporânea)” (Jornal do Commercio, 10 de abril de 1839) e “O enjeitado” (Jornal do Commercio, 28 e 29 de maio de 1839).  Em 1960, “A mãe-irmã (história contemporânea)” e “Revelação Póstuma” foram publicados em livro por Barbosa Lima Sobrinho, na coletânea Panorama do conto brasileiro - Os precursores (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira); recentemente, “A revelação Póstuma” apareceu na coletânea O sino e o relógio: uma antologia do conto romântico brasileiro (São Paulo: Carambaia, 2020), organização de Helio de Seixas Guimarães e Vagner Camilo. Sobre os três contos, ver: GRANJA, Lúcia; PORTO, Jakeline. Paula Brito, escritor esquecido. Revista SOLetras, no 34, p. 11-31, julho-dez 2017.

Acessível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/view/30142

 

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