Tem negro nas letras do Jornal de Feira de Santana:

Aloísio Resende e a poética da ancestralidade

 

Denilson Lima Santos*

 

Resumo

Ao traçar um caminho entre a produção literária e as discussões sobre religiosidade, nos debruçamos sobre o estudo da obra de Zinho Faúla — como também era conhecido o nosso poeta evidenciado nessa dissertação —, com o propósito de analisar os elementos de africanidade nos poemas de Aloísio Resende (1900-1941) que tratam da questão do Candomblé e sua relação com a estética poética. Para isso, analisamos as poesias da temática da africanidade — esta aqui encarada tanto como realidade mítica da tradição africana na sociedade brasileira, quanto como valorização do culto de matriz africana, seja ele de qualquer nação: Angola, Jeje, Nagô ou Caboclo. No desvelar da palavra, a tradição e o texto se projetam da mente e pena do poeta e se desenham nas paredes das memórias, elaborando assim o intercurso de reativação das heranças africanas que o poeta feirense se constituirá como voz dos que foram sufocados.

Palavras-chave: jornal; poesia; identidade; candomblé; mito.

 

1. A cidade, o jornal e o homem: um negro nas letras de Feira de Santana

Tenho um tambor

Tenho um tambor

Tenho um tambor

Tenho um tambor

Dentro do peito

Tenho um tambor

(Carlos de Assumpção).

Como possibilidade de compreensão do poeta como sujeito empírico, trataremos de analisar o seu entorno, levando em conta a sociedade e os aspectos culturais de seu tempo. No que se refere a Aloísio Resende, procuramos investigar o contexto, desde a sua formação até os elementos sócio-econômicos e culturais que o rodeavam. Para isso se fez necessário pensar a cidade onde ele teve quase todas as suas poesias publicadas. Essa cidade, Feira de Santana, não só foi sua terra natal como também propiciou momentos de trabalho, boemia e criação poética.

Pesquisando sobre a cidade e o poeta em estudo, encontramos, em livros, jornais de época, dissertações, teses e depoimentos de quem conviveu com o poeta, questões pertinentes sobre o panorama social e cultural de Feira de Santana, sobretudo nas décadas de 30 e 40 do século XX.

Sendo assim, decidimos refletir sobre o que rodeava Aloísio Resende para que possamos compreender seu legado poético afro-brasileiro.

2. A Santana dos Olhos d’água na década de 30 do século XX

Como boa parte das cidades que se formaram no Brasil, principalmente as que estão localizadas no interior, longe da capital ou até mesmo do litoral, Feira de Santana também se encaixa no perfil de lugares formados a partir da colonização portuguesa e povoamento para a criação de gado. As fazendas, a criação de animais para consumo, a mão-de-obra escrava no século XIX, entre outros elementos econômicos e sociais, serão, por exemplo, temas recorrentes nas artes plásticas, bem como na literatura.

A cidade de Feira de Santana se origina de uma fazenda, Sant’Ana dos Olhos d’Água, que ficava na freguesia de São José da Itapororocas.

Foi exatamente nesse ponto, que se denominou fazenda Sant’Ana dos Olhos d’Água, propriedade, onde o casal Domingos Barbosa de Araújo e Ana Brandão constituiu uma capela, organizou uma feira, em que as trocas (compra e venda) começaram a se desenvolver. A feira semanal, realizada às segundas-feiras, tornou-se uma parte da vida econômica e social de toda circunvizinhança. A feira teve seu início no primeiro quartel do século XVII, a princípio como “Feira de Sant’Ana dos Olhos d’Água”, dando o seu nome à atual Feira de Santana (MORAIS, 1998, p. 23).

Essa versão da história de Feira seria o que Clóvis Frederico Ramaiana de Oliveira chama de mito de fundação do município(OLIVEIRA, 2000, p. 10). O que se esconde por trás disso é o silenciamento de outros grupos sociais que tiveram papéis fundamentais na estruturação e construção da cidade. A versão historiográfica do casal Barbosa legitimava o discurso hegemônico da antiga oligarquia feirense.

Há na vocação comercial de Feira de Santana, desde a sua origem, o estigma da exclusão social. Percebemos que, na formação social desse município baiano, a oligarquia rural sempre imperou como detentora da riqueza e poder. Os primeiros europeus ao chegarem à região que hoje é denominada de Feira de Santana, encontraram-na habitada por índios Aimorés e Paiaiás. Depois da invasão portuguesa nessas terras alguns indígenas fugiram, evitando o contato com os invasores de Portugal. Outros permaneceram e fizeram contatos com os colonizadores, assimilando a cultura e religião portuguesas. Quanto ao contingente negro — trazido de África na condição de escravos — e a relação com o povoamento por meio da resistência quilombola, Rollie E. Poppino, no livro Feira de Santana, nos informa que:

Havia também uma apreciável quantidade de negros nas vizinhanças da serra das Itapororocas e em Orobó. As colônias de negros ou quilombos tinham sido formadas pelos escravos que escaparam do Recôncavo, fugindo para o interior. Desde que os quilombos eram hostis à penetração dos brancos não poderiam sobreviver. Durante o século dezessete esses núcleos vizinhos de São José da Itapororocas foram destruídos pelos criadores de gado. Os negros morreram ou foram escravizados nas fazendas. Um quilombo distante, em Orobó, durou até o século seguinte. (POPPINO, 1968, p. 79, grifo do autor).

Já mencionamos no capítulo primeiro deste trabalho as questões sobre a situação do negro na sociedade brasileira. Aqui também precisamos refletir sobre a questão étnica na formação da cidade de Feira de Santana, caso queiramos compreender melhor o local do qual Aloísio Resende proferirá sua voz poética. Desde sua formação, Feira de Santana segue os caminhos da perseguição aos quilombos que representavam resistência ao sistema escravagista, arquitetando assim, “a construção de mecanismos de coerção dos negros e a dominação simbólica, visando estabelecer limites nas ações dos descendentes de escravos”. (OLIVEIRA, 2000, p. 32).

Índios e negros foram subjugados ao poderio português no início da colonização, sem dúvida o colonizador usou muitos artifícios para destituir de humanidade o colonizado. Os descendentes dos colonos perpetuaram a mesma lógica na distribuição e concentração de riqueza monetária e cultural. Um bom exemplo da exclusão social é quando lemos as análises do estudo elaborado pelo brasilianista Rollie E. Poppino já citado nessa dissertação. Seus dados de apreciação compreendem o período de 1860 a 1950. Naquele período já havia diferenciação evidente nos papéis sociais.

Por tradição, a instrução é um privilégio, em Feira de Santana, das classes superiores e médias. A maioria da população compõe-se de pequenos lavradores, que poucas oportunidades tiveram para aprender a ler e a escrever. Além disso, nos raros casos em que funcionam escolas primárias nas áreas rurais, a maioria dos elementos dessa classe nem poderia pagar as despesas necessárias, sem retirar os filhos das roças respectivas. (POPPINO, 1968, p. 14).

Evidentemente que para o lavrador as oportunidades eram escassas, uma vez que para os filhos dos “coronéis” a educação deveria ser primordial para que se perpetuasse a dominação de classe.

A tonalidade da cor da pele identificava o pertencimento à classe social e, por sua vez, deixava evidente que tipo de oportunidades o indivíduo teria.

A ocupação do povo do município até certo ponto indica a sua origem racial. Quase todos os negros e muitos mulatos são pequenos proprietários de terras e roceiros. Por outro lado, a maioria dos brancos exerce sua atividade no comércio. Tais distinções não estão rigorosamente definidas, mas, em geral, pode-se afirmar com segurança que os negros se incluem na ordem social e econômica inferior e que os brancos predominam na classe superior. Mulatos encontram-se em todas as camadas econômicas e sociais do município. O acidente de berço favorece os brancos em Feira de Santana, mas quase não há barreiras para impedir que um negro ou um mulato ambicioso adquiram bem-estar financeiro e prestígio social. ( POPPINO,1968, p. 16, grifo nosso).

Até a primeira metade do século XX a divisão social em Feira se dá por dois pólos: lavradores e comerciários. Embora Poppino nos assevere que “tais distinções não estão rigorosamente definidas” para contrastar as classes sociais no município, percebe-se, por exemplo, na atividade literária, que uma pequena parte da sociedade feirense tinha acesso à escrita. Esta parte curiosamente tinha sua origem branca.

Um dado também curioso é que o brasilianista atribui à etnia branca o “acidente de berço”, quando um branco se destaca em riqueza material e qualifica a ascensão social por parte do mestiço “mulato” de ato ambicioso. Tais afirmações beiram a ideia da democracia racial tão difundida na segunda metade do século XX. Embora Poppino use em seu trabalho o termo origem racial, eu opto em sempre discutir essa problemática pelo viés da etnicidade, pois se configura numa tentativa de enfatizar que “os grupos eram um fenômeno histórico e cultural e não categorias de pessoas biológicamente determinadas exibindo traços hereditários comuns em termos morais e intelectuais”. (MARTÍNEZ-ECHAZÁBAL, 1996, p. 110).

E assim, o mestiço que terá o papel, na região, de cuidar do gado, ou seja, ser vaqueiro — atividade tão benquista no início da colonização e na progressão da futura feira de gado — passará a ser esquecido e depreciado. Essa lógica se dá a partir da década de 20 do século XX. A atividade econômica feirense se acentua no comércio e na lavoura devido o desenvolvimento da antiga feira local, a antiga Santana dos Olhos d’Água se torna referência comercial da região. A partir da década de 30 do século XX, políticos alçarão discursos e esforços para o progresso da cidade e escritores utilizarão os jornais com a finalidade de reforçarem a vocação de Feira de Santana para o crescimento econômico.

A cidade pode ser compreendida pelo prisma da feira local.

Essa feira, que semanalmente transformava o itinerário da cidade, além de modificar o cenário que se fazia colorido, diversificado, alterado a rotina do dia-a-dia, ia abrindo espaço para um ambiente mesclado e barulhento com carroças, carros e caminhões e alguns cavalos que serviam de veículo para alguns cavaleiros. (MORAIS, 1998, p. 27).

Tomemos para compreensão do texto literário de Aloísio Resende a metáfora da feira, esta tão cheia de vida e contrastes. Se a cidade de Feira de Santana se desenvolveu a partir da feira semanal, então não se descartaria a possibilidade desse ambiente cidade/feira comportar uma multiplicidade de tipos humanos.

No cenário intelectual e cultural, os periódicos foram essenciais na vida social de Feira de Santana. O jornal O Feirense se destaca em 1862 como órgão oficial o governo municipal.

Ainda se encontra em publicação regular de 1867 a 1876 do jornal O Comercial. De tantos outros periódicos publicados no município, o jornal Folha do Norte — criado em 17 de setembro de 1909 — desempenhou o papel de difusão não somente de informações locais como também de atividades literárias de toda a região do interior baiano (POPPINO, 1968, p. 220). O primeiro dono do jornal Folha do Norte foi o Coronel Tito Rui Bacelar que fundou o periódico para propalar discursos contra seus adversários. Após sua morte, herdam o jornal três irmãos: Arnold, Raul e Dalvário, sendo os filhos do último os responsáveis na atualidade.

Os jornais do município de Feira de Santana estruturavam-se de forma simples. As notícias poderiam ser classificadas em coluna social — aqui se evidencia a vida da elite feirense do final do século XIX até o XX —, literatura, crimes, outros acontecimentos e propagandas. As três primeiras páginas são dedicadas às notícias, ficando a última para propagandas.

A aproximação das diferentes formas de construção do jornalismo, poesia e notícias tinham uma relação bastante estreita com o perfil dos leitores e principalmente a visão de que a empresa jornalística era um empreendimento de divulgação das luzes, sob as mais variadas formas. A relevância dessa assertiva coloca em questão as formas de compreensão dos discursos elaborados nos jornais. (OLIVEIRA, 2000, p. 70).

Quando o autor cita “os discursos”, ele se refere ao pensamento dos autores de textos dos jornais da época em que pregavam a necessidade de modernização da cidade, sobretudo a alfabetização de centenas de pessoas que ainda beiravam a ignorância — esta é vista como sinônimo de atraso cultural.

O Folha do Norte foi vital para a publicação das poesias de Aloísio Resende. Como funcionário, publicava seus poemas. “Na realidade, Aloísio Resende não teve, em sua curta vida, possibilidade de editar sua produção, embora fosse um funcionário do jornal Folha do Norte, porque nasceu muito próximo da abolição da escravatura e do advento da república”. (ALVES, 2000, p. 11).

É curioso notar a voz da elite feirense que, em momentos de nostalgia, queria destituir as influências africanas na sociedade brasileira, em especial em Feira de Santana:

Ponto alto no calendário da festa de Santana, da festa da padroeira da nossa cidade, tão ansiosamente aguardada o ano inteiro, na parte dos folguedos de rua, do povo, era a lavagem da Igreja, quinta-feira, três dias antes da efeméride maior. Na quinta-feira da semana da festa, realizava-se a lavagem da Igreja. Tipo de ex-voto sui generis. Função inteiramente de caráter popular, mas sem nenhum vislumbre de feiticismo. Nada de coisa de nagô. (BOAVENTURA, 2006, p. 19).

O poeta Eurico Alves no trecho acima, deixa óbvio que “nagôs” não contribuíram para a manifestação do que se conhece como cortejos populares religiosos. No caso da festa de Santana — em que adeptos do Candomblé feirense participaram e participam, sobretudo aqueles que sincretizam a santa católica com o orixá Nana Buruku —, o negro está, aos olhos do poeta, destituído de influência na cultura local. Talvez esse posicionamento sirva para entendermos o que, em entrevista, Antônio do Lajedinho nos informa sobre a sociedade da época:

A distinção maior estava na sociedade, vamos dizer, como um todo... Nossos clubes eram três: a Filarmônica 25 de Março, Vitória e Euterpe Feirense, então, daí começava um pouco a distinção. A 25 era a classe alta, a Vitória era classe média e Euterpe era classe baixa. (LAJEDINHO, 2008).

Os papéis sociais definidos por meio do preconceito racial se tonalizavam tanto na divisão de clubes, bem como nos folguedos de carnaval e micareta. A elite branca detentora da educação formal e do poder econômico queria sempre a aproximação da Europa. Isso é perceptível nas crônicas de Eurico Alves, A paisagem urbana e o homem: memórias de Feira de Santana (2006). É importante lembrar que o pensamento da década de 30 do século XX era o de ativar e progredir programas de eugenização da população brasileira (SCHWARCZ, 1993, p. 226-231). Tais programas não deram certo como projeto de saúde do governo, mas deixaram marcas na sociedade. Daí compreender a distinção que a elite branca fazia dos negros e do candomblé, relegando-os à marginalidade, será importante para interpretar os poemas de Aloísio Resende, os quais são recheados de elementos da cultura negra.

3. Aloísio Resende: vida, obra e boemia

Nascido em 26 de outubro de 1900 e falecido em 12 de janeiro de 1941, Aloísio Resende ou Zinho Faúla, como era conhecido, foi poeta, jornalista e, sem a menor recusa, um grande polemista por optar em poetizar, defender negros e o candomblé nas letras feirenses. Filho de um soldado: Eufrázio Paulo de Souza e de D. Maria José de Souza foi criado, porém, por D. Laura Resende, de quem toma emprestado o sobrenome para assinar seus poemas.

Resende somente estudou o curso primário, mas com a ajuda do professor Antônio Garcia aprendeu a escrever poemas nos moldes clássicos. Ressaltamos aqui que esses moldes seriam as poesias de estilo simbolista e parnasiano, embora sua época coincida com o modernismo.

Zinho Faúla publicava seus escritos no jornal Folha do Norte, embora não fosse bem aceito pela sociedade da época. Ele “foi discriminado como cidadão e como poeta por único motivo: era umbandista”(LAJEDINHO, 2004, p. 93). O escritor Lajedinho usa umbanda e candomblé como sinônimos, embora saibamos que há diferenças quanto à organização e ritos de culto.

Aloísio Resende resiste à imposição eurocêntrica e lança o discurso de valorização da negritude — compreendida como valorização da herança africana:

COISA-FEITA

Caíra enferma a jovem, de repente...

Desmaiado o sorrir, pálido o rosto,

Passa as tardes, no quarto de doente,

O olhar quebrado no horizonte posto.

Quase que muda, aos poucos, definhava,

Presa, coitada, ao mais atroz sofrer.

E o próprio noivo, a quem bastante amava,

Nem mesmo o noivo ela queria ver.

[…]

Pois da Chica de Ogum, que bebe sangue,

Que dança na macumba e que tem santo,

Dela que a viu, tão lívida e tão langue,

Ouviram tudo a sufocar o pranto.

[...]

Vezes isto, ora aquilo, ora mais isso...

Uns, achavam-na tísica, outros louca;

Mas o certo é que a coisa era feitiço,

Falavam elas, pela mesma boca.

A febre de rebelde não cedia;

Era tenaz, horrível, torturante.

E, para o mal que se não conhecia,

De quando em quando, um nome extravagante.

Dos médicos, enfim, desenganada,

Depois de gasta uma fortuna inteira,

Com proveitos, então, fora levada

Às mãos bondosas de uma curandeira.

Hoje, sadia, linda como outrora,

Repele a burla, que bem mal lhe soa,

De se dizer pela cidade em fora:

— Doutor fulano que lhe pusera boa!

(RESENDE, 2000, p. 66-67).

Refletindo sobre essa “coisa feita”, podemos observar como o poeta usa a palavra para expressar o discurso do poder. Esse não é a exposição econômica, erudita, mas se instaura no conhecimento dos mistérios da ancestralidade. O mal apresentado pelo eu lírico tinha cura, não a do conhecimento da medicina de brancos; a cura vinha das mãos da “bondosa curandeira”.

Dois mundos se duelam; o da ciência médica e o do conhecimento tradicional, ancestre. As diferenças de mundo se configuram na oposição da impotência da medicina tradicional e cura pelo método místico e espiritual.

Ao estabelecer a poética a partir de elementos sociais, como a realidade religiosa feirense, ou até mesmo no sentido mais amplo, do candomblé da Bahia, Aloísio Resende reafirma os valores de uma africanidade, de uma ancestralidade que alimentava e alimenta as vidas dos afro-brasileiros. Isso nos leva a pensar sobre a (re)invenção de uma África mítica que impulsionava a ancestralidade como aspecto essencial para aqueles indivíduos.

CANDOMBE

Do acetilênio à luz, no vasto pagodô,

Ágil arisca, em revolutas, dança.

Fuzila o seu olhar, que um brilho estranho lança,

E a roda canta o congo, em preces a Xangô.

Vistosa se lhe enfuna a ampla saia de chita

Nos quebros da coréia. E o seu balangandã

De Zazi e de Omolu, de Oxossi e de Nanan,

De uma deusa nagô deu-lhe forma esquisita.

[...]

Rouco e surdo a roncar, rudo, roufenho e fundo,

Raucíssono tabaque o burgo acorda e abala.

Dá-nos toda a impressão de uma velha senzala,

Esta cena infernal de coisas do outro mundo.

[...]

Rápido e barulhento ca-xi-xi chocalha,

E louca se desmancha e toda se requebra,

Em honras de Xangô, cujo culto celebra,

Certa de seu poder imenso que não falha

(RESENDE, 2000, p. 47-48).

Podemos perceber nos versos acima de Aloísio Resende o ambiente propício, somente iluminado pelo “acetilênio” como palco da ancestralidade, esta sem primar por uma única tradição das nações do candomblé brasileiro, muito pelo contrário, elementos das nações Kêto, Jeje e Angola se mesclam para celebrar a poética ancestre. Foi junto com o povo negro de África que os nossos ancestrais foram trazidos do além mar. Hoje, pelo culto, pela memória e legado cultural podemos, por exemplo, traçar o caminho para a interpretação da poética de Aloísio Resende.

A herança da ancestralidade que permeia as vivências religiosas de matriz africana outrora estava em África. Chegou aqui como legado de uma sociedade complexa em suas tradições e que se transportou pela narrativa mítica — esta que conduz a vida pelo fio da permanência da memória. Ao mesmo tempo, os termos pertencentes ao mundo religioso servem como elementos especiais para a construção das identidades religiosas. Porém, tudo isso tem por objetivo:

a idade coletiva do grupo que se funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem, o prestígio das famílias dominantes que se exprime pelas genealogias; e o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa. ( LE GOFF, 1991, p. 43).

O corpo se torna depositário de um corpus pleno da sabedoria da ancestralidade. Na delimitação do espaço de culto é que o ritual acontece e se propaga. Este misto de rito e arte se torna ligado umbilicalmente pela linguagem que guarda os ritos sagrados. Tudo isso se instrumentaliza quando o poeta diz que o “Raucíssono tabaque o burgo acorda e abala”, propagando, assim, a tradição cultural negra.

4. Entre símbolos e regras: a fronteira literária resendeana

Para Aloísio Resende escrever dentro da forma clássica revelava a possibilidade que um negro poderia ter de galgar o espaço destinado aos eruditos, uma vez que as escolas — as mesmas que excluíam o negro do acesso à aprendizagem — primavam pela estética ainda parnasiana, tendo como representante Olavo Bilac.

Zinho Faúla deslocou o eixo estético brancocêntrico de musas greco-romanas para iaôs do culto do Candomblé. O ambiente da elite branca em Feira de Santana não aceitava que tal estética fosse priorizada. Pensando no que o poeta usa como material de sua poesia, podemos observar que, como minoria — no caso de sua representação identitária —, sendo ele negro, usa a linguagem: símbolos, regras, métricas e ritmos, sobretudo o prestígio da língua portuguesa, como estratégia de produzir sua obra. Podemos pensar então no que Guatarry e Deuleuze chamam de literatura menor: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização” (DELEUZE & GUATARRI, 1977, p. 25).

Trazendo a memória, o corpo e a voz dos negros numa estética peculiar, Aloísio Resende reterritorializou a herança negra e deu-lhes tom de versos clássicos em seus poemas alexandrinos, bem como nos seus sonetos metricamente elaborados.

Se compreendermos que “a literatura é uma instituição, como organização autônoma, como sistema socializador e como espelho ideológico”(BERND, 1987, p. 75), então será possível entender que o poeta feirense lança mão das mesmas regras de escrita para tecer sua poética e afirmar seu discurso de resistência contra o preconceito racial da época.

Pensamos assim porque se percebe que não há um discurso ficcional que não se aproxime, ou até mesmo venha ao encontro da realidade, mesmo que esse encontro se dê em outro nível. O uso da palavra para perpetuar a voz que no momento é excluída, torna-se o referente da linguagem cotidiana; logo, poderíamos então pensar que “ficção e poesia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser dado, mas sob a maneira de poder-ser”. (RICOEUR, 1988, p. 57).

As regras parnasianas e simbolistas rodeiam o nosso poeta negro por um motivo simples: ele aprendeu a fazer versos com o professor Garcia, segundo Antonio do Lajedinho:

Aloísio Resende foi aprender a arte da tipografia e foi quando o professor Garcia chegou e descobriu nele uma facilidade de aprendizagem. Ele (Aloísio Resende) gostava de poesia, só que se limitava à poesia de cordel, sem métrica. Então o professor Garcia ensinou a ele a métrica da poesia. [...] Enfim, ensinou o que era poesia clássica naquela época e ele aprendeu. (LAJEDINHO, 2008).

Escrever nos moldes clássicos utilizando a estética parnasiana e simbolista não foi somente privilégio de Aloísio Resende. Zilá Bernd, no livro Introdução à literatura negra, nos informa que, no meio dos poetas negros de 1960, as fórmulas parnasianas eram empregadas, apesar de há muito terem sido abandonadas pelos “autores da literatura autorizada”. Ela justifica isso ao falar que tal “procedimento pode ser interpretado não como uma imitação tardia, mas como um processo de apropriação de elementos até então reservados às elites dominantes” (BERND, 1988, p. 43, grifo da autora).

Com Zinho Faúla acontece o mesmo, uma vez que a família Silva, os donos do jornal Folha do Norte, o apadrinha e o inicia no mundo “letrado” da elite feirense. Daí, seu percurso poético será trilhado dentro das normas e regras vistas com muito prestígio no meio da sociedade de que o poeta negro fazia parte. Embora se utilize de normas parnasianas em suas poesias e isso indique uma apropriação da linguagem da classe dominante branca para falar do negro, Aloísio Resende tem uma atitude, ou seja, postura contraditória. Ele não escolhe o sobrenome Souza que é de sua família consanguínea, mas opta em usar o Resende, privilegiando a família que o criou. O motivo não sabemos, porém nos deixa intrigados pelo fato de sua poética destacar os negros e sua religiosidade.

Considerações finais

Ter o pensamento de que a literatura é um “fenômeno de civilização, depende, para se constituir e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores sociais” (CANDIDO, 1976, p. 12), porém não podemos afirmar que esses fatores sociais interfiram diretamente na obra. No caso de Aloísio Resende, as questões sociais perpassam a sua obra quando nos deparamos com sua aprendizagem de métodos e técnicas da elaboração da poesia, bem como com a temática das pessoas, espaços e palavras de origem africanas.

Em relação à obra de Zinho Faúla, poderíamos dizer que ela se encaixa na relatividade da “intemporalidade e universalidade”, desligando-se assim de fatores que a façam dependente de local ou momento determinado (CANDIDO, Idem). Assim, chamaremos de função social da literatura — especificamente referindo-a para nosso objeto de estudo —, pois há a compreensão das relações sociais e dos valores espirituais que impulsionam por mudança, no nosso caso, o poeta Aloísio Resende consegue isso levando às letras locais os negros em seu Candombe.

Talvez, a partir disso, compreendamos o deslocamento temático do parnasianismo de Aloísio Resende com negras, orixás e terreiros, ao invés de se debruçar nas curvas delineadas de Vênus ou vasos chineses. O povo que canta e dança na poesia do poeta feirense desempenha o papel social do cotidiano de estética negro-brasileira, ou melhor, ganha status de símbolo poético.

Considerada em si, a função social independe da vontade ou da consciência dos autores e consumidores de literatura. Decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela comunicação. Mas quase sempre, tanto os artistas quanto o público estabelecem certos desígnios conscientes, que passam a formar uma das camadas de significado da obra. O artista quer atingir determinado fim; o auditor ou leitor deseja que ele lhe mostre determinado aspecto da realidade. Todo este lado voluntário da criação e da recepção da obra concorre para uma função específica, menos importante que as outras duas e frequentemente englobada nela, e que se poderia chamar de função ideológica”(CANDIDO, 1976, p. 46, grifo nosso).

Essa simetria entre autor e leitor se engendra na função ideológica. Assim, o papel de poeta negro se estabelece no contexto em que o público alvo era a elite branca, porém a “função ideológica” de Resende consistia em dar aos negros o papel de ícones de uma estética com requinte clássico. O fim da poesia será perpetuar, integrar e desenhar na arte a herança africana que subsistia sob a pele, ou melhor, no corpo que dança e canta aos ancestrais.


Referências

ALVES, Ivia. Apresentação. In: MORAIS, Ana Angélica Vergne de et al (Org.). Aloísio Resende: poemas; com ensaios críticos e dossiê. Feira de Santana: UEFS, 2000.

BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. Porto alegre: Mercado Aberto, 1987.

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BOAVENTURA, Eurico Alves. A paisagem urbana e o homem: memórias de Feira de Santana. Feira de Santana: UEFS, 2006.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1976.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

FOLHA DO NORTE. Aloysio Resende, Feira de Santana, 21 de abr. 1928, ano XIX, n. 979.

LAJEDINHO, Antônio do. Entrevista para dissertação em Feira de Santana, 28 ago. 2008.

LAJEDINHO, Antônio do. A Feira na década de 30 (memórias). Feira de Santana: [s.n.], 2004.

LE GOFF, Jaques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão et al. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1991.

MARTÍNEZ-ECHAZÁBAL, Lourdes. O culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América latina: Deslocamento retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, Marcos Clior; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1996.

MORAIS, Ana Angélica Vergne. Sant’Ana dos Olhos d’Água — resgate da memória cultural e literária de Feira de Santana (1890-1930). Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Documentos da Cultura) — Instituto de Letras PPGLL, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 1998.

OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. De empório a princesa do sertão: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1893-1937). Dissertação (Mestrado em História) — Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2000.

POPPINO, Rollie E. Feira de Santana. Trad. Arquimedes Pereira Guimarães. Salvador: Itapuã, 1968.

PORTO, Cristiane de Magalhães. Notas à margem. In: MORAIS, Ana Angélica Vergne de et al. (Org.). Aloísio Resende: poemas; com ensaios críticos e dossiê. Feira de Santana: UEFS, 2000.

RESENDE, Aloísio. In: MORAIS, Ana Angélica Vergne de et al (Org.). Aloísio Resende: poemas; com ensaios críticos e dossiê. Feira de Santana: UEFS, 2000.

SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças — cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

 

* Graduado em Teologia, pelo Seminário Teológico do Nordeste (2000), Licenciado em Letras Português/Espanhol, pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2005), possui Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira, pela Fundação Visconde de Cairu/APLB- Sindicato (2007) e Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural, pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2009). Atualmente está cursando o Doutorado em Literatura (Historia intelectual en América Latina: Intelectuales indígenas y afrodescendientes, Grupo de Estudios de Literatura y Cultura Intelectual Latinoamericana/GELCIL) na Universidade de Antioquia, Medellín, Colômbia.

 

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