Aloísio Resende, uma visão de negro

 

Daniela Guedes*

 

Marginal pela etnia, marginal pela classe, marginal pelo
conhecimento, o poeta fez um esforço para atualizar
seus temas, quando, entre inúmeras composições,
centrou-se na cultura negra que, empurrada para fora
da cena literária, demonstrava o interesse da elite
intelectual em purificar e branquear a raça.
Ívia Alves.

Apesar de ter a poesia marcada ainda pela forma fixa, como muitos de seus contemporâneos das classes populares, sobretudo no interior do país, Aloisio Resende explorou imagens variadas, nas quais predominam os temas da negritude e da lírica erótico-amorosa. Segundo Cristina Porto, o autor “aborda elementos da mitologia africana, em versos alexandrinos que descrevem aspectos do ritual religioso, os locais e dos participantes desses cultos afros.” (2000, p. 86).

A maioria dos sonetos de Aloísio Resende, em versos alexandrinos, segundo Rubens Alves Pereira, foi escrita em 1936, enquanto nos anos 39 e 40 surgiram os poemas da negritude e do erotismo. É interessante lembrar que existem poemas que se enquadram em mais de uma dessas vertentes, principalmente entre aqueles que tematizam ritos afro e imagens eróticas, caso do poema Candombe:

Do acetilénio à luz, no vasto pagodô,

Ágil a mulata arisca, em revolutas dança.

[...]

Agressivos e maus, os fortes seios tesos,

Sob a renda a tremer do camisu de linho,

Tentando como loiro e capitoso vinho,

Nos trazem de volúpia os íntimos acesos.

(MORAIS; PORTO; ASSUNÇÃO, 2000, p. 47).

No trecho acima percebemos claramente o erotismo do corpo da mulata em movimentos ritualísticos. Veremos a seguir que o tom erótico da poesia de Aloísio também surge explorando imagens clássicas, como no poema Demônia:

Grega estátua do amor, do derradeiro sonho

De um triste artista aflito, em bárbaros, rolando.

Sinto que sofro muito e que padeço, quando,

Nesse mármore vivo, acaso, os olhos ponho.

 

És todo o meu prazer e és todo o meu tormento,

– O meu cálix de fel e o meu cálix de gozo –

[...]

Quisera-te, por fim, no mais ardente anseio,

Dos teus dedos sentindo a carícia nervosa,

Na desesperação de um sonho de demente,

Chego até devassar os tremendos espaços.

(MORAIS; PORTO; ASSUNÇÃO, 2000, p. 32-33).

O belo poema, do qual retiramos o trecho acima, é, de acordo com Rubens Pereira, “o poema-síntese do dramático universo erótico configurado por Aloísio Resende”. Nele percebemos o gosto clássico do poeta feirense, quando este se refere à ideia de beleza incorporada num mármore de estátua grega remetendo à frieza da mulher sedutora. Vários elementos do processo de sedução são descritos aguçando o sentido erótico do poema – cálix de fel, cálix de gozo, carícia nervosa – destacando as presenças da visão, do tato, do paladar e do olfato (“Ébrio de teu odor”) como marcantes em tal processo.

Já os sonetos do poeta feirense se agrupam em um conjunto que trata uma variedade de temas, que não os referidos anteriormente, como a terra natal do poeta em “Saudade”; as paisagens em “Saara” e em “Lagoa”; a fé em “Verônica” e também um retrato sociocultural em “Cangaceiro”. Ficamos devendo uma maior atenção a tais poemas, tendo em vista que o foco deste breve estudo é mesmo sobre os poemas de Aloísio que tratam a negritude.

É importante ressaltar que a maneira como Aloísio Resende se refere aos elementos africanos é diferenciada. Em ”Iemanjá”, o poeta não economiza doçura para falar desse orixá que dá nome ao poema: “santa dos corações que sofrem de amor”, “pisa altiva e serena a sereia do mar”, “é uma moça fidalga.” O autor não se insere no grupo de escritores que se limitam aos estereótipos aplicados às negras (como mulheres-objeto) e ao descrevê-las, Aloísio as coloca em posição de prestígio, como podemos observar na construção da figura feminina no poema “Menininha”: “Quase média a estatura. A cor mulata. / Negro e faiscante o olhar inteligente. (MORAIS; PORTO; ASSUNÇÃO, 2000, p. 65).

No trecho acima, a mulata atrai o poeta não pela sensualidade, mas pelo olhar. Este, além de “negro e faiscante”, é também inteligente. Isso revela que o autor demonstra um respeito pela mulher negra, sendo que esta era sinônimo de mulher submissa, sensual e sedutora para outros escritores. Essa reverência, da qual falamos, está ligada à questão do ponto de vista do poeta – o ponto de vista de quem considera a mulata bonita, numa época em que ser negra significava ser feia, já que o padrão de beleza era branco; o ponto de vista de quem se encanta pelos olhos de uma negra, não pelo seu rebolado excitante:

Desde a tarde violácea em que eu a vi,

Da macumba meu ser jamais duvida,

Pois fiquei preso, para toda a minha vida,

No feitiço dos olhos de Dami!...

(MORAIS; PORTO; ASSUNÇÃO, 2000, p. 71).

Nos versos acima, o poeta declara-se enfeitiçado pelos olhos da mulata encantadora, o que confirma o olhar diferenciado de Resende sobre as negras. Há, também no exemplo anterior, uma breve menção à cultura afro-descendente, quando fala da macumba. Outras referências aos cultos afros são feitas em vários poemas do autor. Em uma época na qual tais cultos eram malvistos, para não dizer proibidos e até perseguidos no Brasil, os autores que escreviam usando esses temas o faziam, na grande maioria das vezes, de modo distanciado. No entanto, Aloisio mostra uma proximidade e uma intimidade ao abordar esses temas, chegando inclusive a tratar mães-de-santo com respeito outrora reservado às santas da igreja católica:

Velha casa de santo, de Pulquéria,

De Júlia e de muitas outras de renome

Que Hoje repousam na mansão sidérea,

Teu passado de glórias se consome.

(MORAIS; PORTO; ASSUNÇÃO, 2000, p. 65).

O poeta se refere as ialorixás Pulquéria e Júlia como mulheres de renome e de passado glorioso, que falecidas, descansam em “mansão sidérea”. Observa-se aqui o uso de uma expressão muito cara aos escritores de nossa tradição canônica para tratar de um tema por estes desprezado. Além disso, é interessante ressaltar que o poeta demonstra ser consciente de que a religião e cultura afro são vistas, aqui no Brasil, como estranhas, causadoras de espanto:

Apaga-se distante o sol. A tarde

Morre. Súbito a noite estiada cai.

Da gente alegre que ao terreiro sai,

Pouco e pouco, a fogueira, aos gritos, arde.

 

Queima. Crepita e se abre em chama viva.

Rubra língua de fogo, que se estende

Pelo ar macio, ao vento, baila. Esplende.

E o espaço, em torno, de fagulhas criva.

[...]

Ronca fundo o tabaque. O samba ferve

Acompanhado de africana orquestra.

Bate aos meneios da mulata destra,

Cuja dança, ao Brasil, de espanto, serve.

(MORAIS; PORTO; ASSUNÇÃO, 2000, p. 60-61).

No trecho acima, o poeta faz a descrição de um ritual afro-brasileiro, como um frequentador do terreiro e não como um retratista que descreve a cena com o olhar externo, ou seja, Resende fala do ponto de vista de quem não se espanta com a tal dança da mulata, fala do ponto de vista de quem se identifica com aquele ritual negro e acredita nele. Além disso, vale ressaltar que o poeta utiliza a palavra samba, não para falar do samba comercial, da forma como este se popularizou nas décadas seguintes, mas de uma dança que faz parte do ritual religioso de origem africana.

Pelos exemplos citados, percebemos o engajamento de Aloísio em fazer a inclusão tanto da mulher quanto do negro de maneira privilegiada dentro da literatura. É importante lembrar, que devido às condições da época, o autor escreveu dentro de muitas limitações sociais, o que não permitiu que seu posicionamento de afro-descendente ficasse sempre de modo explícito. Mas, nem por isso devemos deixar de situar Aloísio Resende em meio aos escritores da literatura Afro-brasileira.

Referências

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. SETOR DE FILOLOGIA. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

MORAIS, Ana Angélica Vergne de; PORTO, Cristiane de Magalhães; ASSUNÇÃO, Lucidalva Correia (Org.). Aloisio Resende: poemas; com ensaios críticos e dossiê. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana / Departamento de Letras e Artes / Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural / Projeto Resgate de Memória Literária de Feira de Santana, 2000. 161p.

 

* Graduada em Letras pela UFMG.

Texto para download